“A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é, na verdade, a regra geral.”
Walter Benjamin

O ataque militar com bombas de gás, bombas de concussão e tiros de borracha ao prédio da FFLCH, na Cidade Universitária, é tão chocante quanto emblemático. É chocante, pois os professores, reunidos em assembléia no prédio dos cursos de História e Geografia, nunca representaram ameaça à ordem pública. Emblemático, pois violentou uma escola que se notabilizou internacionalmente por sua produção acadêmica crítica, reflexiva e, por isso mesmo, tradicionalmente insubmissa aos poderosos de plantão e seus projetos antidemocráticos de universidade.

Evidentemente, trata-se de uma violência interessada. O governador de São Paulo, José Serra, e a professora Suely Vilela, reitora da USP, sabem o que se encontra em disputa hoje: dois projetos antagônicos de universidade enfrentaram-se em 2007, quando então o governador buscou eliminar a autonomia universitária por meio de seus mal-afamados decretos. Naquela ocasião, a ação de forças de oposição fizeram-no recuar, impondo-lhe uma incontestável derrota. A reação não tardou e o armistício simbolizado pelo decreto declaratório de maio daquele ano parece estar sendo revogado aos poucos.

A Universidade Virtual do Estado de São Paulo, a nova carreira docente, a política de moderação salarial permanente, a demissão de um dirigente sindical em pleno mandato e o recurso à Polícia Militar para reprimir um protesto pacífico de estudantes desarmados mostram, inequivocamente, que o ataque à autonomia universitária voltou. O objetivo de Serra e Suely Vilela é aprofundar a fratura que já existe na universidade, entre cursos desprestigiados e destinados a formar força de trabalho semiqualificada em larga escala e cursos prestigiados e organicamente, vinculados a empresas interessadas em obter conhecimento tecnocientífico subsidiado pelo Estado.

Uma das principais ameaças à autonomia universitária consiste na progressiva submissão dos pesquisadores ao despotismo de mercado. A heteronomia acadêmica se impõe como regra, limitando a natureza criativa e inovadora do campo científico. Assim, a prática do pesquisador se vê degradada e sua liberdade, cerceada. Um novo regime disciplinar de produção e difusão do conhecimento científico vai se consolidando na universidade que responde, sozinha, por cerca de 28% da pesquisa científica brasileira. Um regime cujo sentido consiste em fazer com que a pesquisa científica se submeta às estratégias do modelo de acumulação vigente no país.

Contra esse projeto, setores universitários insubordinaram-se novamente este ano, sendo duramente reprimidos pela PM. Não causa espanto: tal projeto é incompatível com qualquer forma, ainda que incipiente, de democracia. Não é sem razão que no colégio eleitoral que escolheu o nome de Suely Vilela como primeiro da lista tríplice a ser levada ao governador, os votos dos representantes de entidades empresariais de agricultores, pecuaristas, comerciantes e industriais eram equivalentes em número aos votos de todos os representantes dos servidores não-docentes da USP.

A falta de participação da comunidade atenta contra o Artigo 14 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que trata dos princípios da Gestão Democrática. O colégio do segundo turno contou com apenas 300 votantes entre 97.000 professores, estudantes e funcionários. Ou seja, 0,3% daqueles que participam da universidade indicaram o dirigente máximo da instituição. Mas mesmo isso já não é suficiente. Serra e Suely Vilela mostraram-se dispostos a aprofundar essa situação: cinco das últimas nove reuniões do Conselho Universitário foram realizadas no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN). Por se tratar de uma instituição estratégica para o programa nuclear brasileiro, toda a área é fortemente militarizada.

Pela mesma razão, a nova carreira docente da USP, que submete promoções por mérito ao arbítrio da reitoria, foi aprovada de forma sumária em uma votação reconhecida pela própria assessoria jurídica da universidade como ilegal. Em síntese, temos acordos salariais não cumpridos, demissão de sindicalistas, recusas em negociar com entidades representativas, reuniões em áreas militarizadas, votações ilegais… Para realizar seu projeto, a reitora, apoiada pelo governo do Estado, necessita atentar contra a LDB, os acordos, as normas e as regras da própria universidade.

Suely Vilela não agiu irrefletidamente ao chamar a PM para ocupar o campus. E Serra sabia o que estava fazendo ao autorizar o ataque à USP. A repressão aos piquetes não passa de mero pretexto. Na verdade, esse projeto não tolera nenhuma forma de dissenso, de conhecimento crítico, reflexivo, por isso fomos encerrados em um verdadeiro “estado de exceção” não-declarado, sob o ataque de bombas de gás, bombas de concussão e tiros de borracha.

* Artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo, no dia 22 de junho de 2009