Osvaldo Maneschy (*)

As eleições gerais de outubro serão infiscalizáveis – apesar da importância delas para os destinos do Brasil e dos 115 milhões de eleitores brasileiros – por causa do exíguo prazo de cinco dias que a Justiça Eleitoral deu aos fiscais dos partidos para que examinassem todos os programas das urnas eletrônicas. Do dia 5 ao dia 9 de agosto, foi impossível aos fiscais – com o uso apenas dos dedos e da própria memória, regra imposta pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), passar a limpo os 6.700 programas das urnas, que somam 3 milhões de linhas de código-fonte.

Para se ter uma idéia da complexidade da tarefa, a Universidade de Campinas (Unicamp) gastou seis meses analisando esses programas – em seu ambiente de estudo, ao contrário do permitido aos fiscais dos partidos. E concluiu que as urnas seriam realmente seguras se o TSE cumprisse oito recomendações que enumerou, especialmente uma auditoria completa dos programas por agentes independentes, além de que fosse permitido aos partidos conferir a carga dos computadores na ponta do sistema, usando programa próprio. Do jeito que a urna é hoje, na opinião de um de seus críticos, o professor Pedro Rezende, da Universidade de Brasília, basta alterar três ou quatro linhas entre as milhões dos códigos-fonte para que uma parte ou a totalidade dos votos do candidato “A“ seja desviada para o candidato “B“, fraudando totalmente o resultado de uma eleição.
Nos anos de 1996, 1998 e 2000 a única garantia de que as eleições foram limpas foi a palavra do TSE de que “as urnas eletrônicas são 100% seguras“. Nestas três eleições o tribunal não permitiu que 25% dos programas – exatamente a parte elaborada pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) – fossem conferidos, por serem “de segurança nacional“. Mas, diante da grita dos técnicos de informática do Fórum do Voto Eletrônico , que há cinco anos assessoram, entre outros políticos de expressão, o presidente nacional do PDT, Leonel Brizola, e outros críticos da falta de transparência das urnas eletrônicas, o TSE achou prudente abrir o programa elaborado pela Abin, porque progressivamente a sociedade começa a questionar o sistema.

Fiscal da cidadania

Mas, ao mesmo tempo em que abriu esses programas à fiscalização, espertamente o TSE introduziu o sistema operacional Windows CE no último modelo das urnas – cerca de 50 mil – que estão sendo fabricadas pela Unisys. O novo sistema operacional, muito mais sofisticado do que o Virtuos usado antes e que equipa as 350 mil urnas fabricadas pela Procomp, multiplicou por sete a dificuldade de fiscalizar os softwares da urna. Um detalhe importante: ninguém, nem os professores da Sociedade Brasileira de Computação (SBC), convidados pelo TSE para acompanhar a apresentação dos programas, conferiu o conteúdo do Virtuos. A Microbase exigiu que os partidos pagassem R$ 250 mil para ter acesso ao programa a título de direitos autorais. Ninguém pagou, ninguém fiscalizou, embora um vendedor do Virtuos tenha circulado livremente pelo TSE oferecendo a “mercadoria“.
Além de proibir que os técnicos levassem para o local onde disponibilizou os programas qualquer ferramenta de informática, o TSE exigiu que cada um deles assinasse um termo de sigilo sujeitando-se até às penas da Lei de Segurança Nacional, que muitos consideravam extinta, numa clara intimidação, contrariando a máxima de que, nas auditorias isentas, o fiscalizado deve sempre dar ampla liberdade para o fiscalizador trabalhar.

Via “termo de manutenção de sigilo“, que foram obrigados a assinar, os fiscais se submeteram às penalidades “e demais conseqüências“ previstas em um número enorme de artigos da Lei de Segurança Nacional, do Código Penal Brasileiro, do Código de Processo Penal, das Normas de Conduta dos Servidores Públicos Civis, do Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo, da Lei dos Arquivos, da Lei dos Documentos Públicos Sigilosos e, ainda, das Normas para Salvaguardas de Documentos, Materiais e Sistemas.

Tanta lei e tanta restrição que nem os advogados presentes souberam explicar aos técnicos do que exatamente tratava o “termo de sigilo“ porque o TSE – no primeiro dia – sequer permitiu que os que assinaram pudessem reter cópia do documento.
Dois peritos credenciados pelo PDT, diante de tal barreira, optaram por não assinar, argumentando que o documento era uma clara tentativa de manter tudo sob sigilo, inclusive as críticas que se avolumam na sociedade. Um deles, o professor de Criptografia do Centro da Ciência da Computação da Universidade de Brasília, Pedro Antonio Dourado Rezende, PhD em Matemática pela Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, argumentou: “Entre ser fiscal de um partido por algumas horas e ser fiscal permanente da cidadania fico com esta última opção“.

Auditoria do contra-senso

O outro técnico que não se sujeitou ao “termo de sigilo“ foi Marcio Teixeira, “pai“ do modelo de urna eletrônica desenvolvida pela IBM e um dos maiores especialistas brasileiros em software básico. Márcio, como o professor Rezende, voltou da porta, apesar de ser um dos pouquíssimos profissionais de informática do país a dominar o sistema Windows CE. “Optei por não assinar o documento porque o que tivemos aqui em Brasília, esta semana, não foi uma auditoria de informática. Tivemos um avanço em relação aos anos anteriores; mas ainda está longe de ser uma forma de dar segurança aos partidos políticos de que teremos uma eleição realmente confiável“, argumentou Márcio, que, em 2000, examinou os programas da urna – só que como fiscal do PT.

O PDT é o único partido político brasileiro que questiona sistematicamente a informatização total das eleições brasileiras – do cadastro à totalização dos resultados – que, na opinião de Leonel Brizola, tiraram a transparência do processo, tornando-o algo distante e incompreensível para o cidadão comum. Brizola fala com a autoridade de ter sido vítima da primeira tentativa de fraude eletrônica já ocorrida no país, o escândalo da Proconsult, em 1982. Naquele ano o TRE do Rio de Janeiro contratou a empresa de informática Proconsult para totalizar os resultados da eleição, mas um programa malicioso transformava os votos de Brizola em nulos e brancos – até a fraude ser descoberta.

Em Brasília, este ano, outra absurda limitação foi a proibição de que os peritos levassem para o local qualquer programa ou ferramenta de trabalho, como explica Marcio Teixeira, um dos críticos da urna devido à sua complexidade. Na sua opinião, a urna eletrônica poderia ser uma máquina simples, sem usar sequer sistema operacional, porque sua finalidade é totalizar cerca de 500 votos, o máximo em média de uma seção eleitoral. “A simplicidade da urna facilitaria muito a fiscalização“, explica.

Márcio, como Pedro Rezende e demais técnicos do Fórum do Voto Eletrônico, é defensor intransigente da impressão do voto – melhor forma de assegurar integralmente a lisura dos resultados -, porque cada um dos eleitores, automaticamente, se torna fiscal do próprio voto, não dando espaço para softwares desonestos. Ainda sobre este ponto, Marcio Teixeira alerta para fato que considera verdadeira aberração: o TSE anunciou que as 23 mil urnas que vão imprimir os votos este ano, como teste, terão seus resultados em papel somados por urnas eletrônicas, no sistema de voto-cantado.

Na sua opinião, isto é um contra-senso: a urna, o equipamento a ser auditado, jamais deveria ser empregada. O correto seria contar os votos manualmente, por exemplo. O voto impresso é fundamental para a lisura do processo porque o modelo de informatização adotado no Brasil é único no mundo e desmaterializou o voto, tornando-o simples registro eletrônico na memória volátil (RAM) das urnas. Um registro que desaparece quando as máquinas, no final do dia, emitem boletins com a soma total dos votos. As partes dessa soma se perdem, não ficam registradas em lugar nenhum, porque a memória da máquina só grava os totais – que também imprime em papel.

Garantia, só do TSE

Além de Márcio Teixeira e Pedro Rezende, outros 15 técnicos aproximadamente se credenciaram para acompanhar a apresentação dos programas na semana retrasada em Brasília, inclusive três ligados a universidades federais do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Santa Catarina.

Na sexta-feira, dia 9 de agosto, em rápida solenidade na presença do ministro Fernando Neves, do TSE, foi encerrada a conferência dos códigos-fonte e começou a ser feita, por volta das 18h, a compilação dos 6.700 programas da urna eletrônica. Inexplicavelmente, na parte mais sensível de todo o processo de fiscalização, a compilação e a gravação dos executáveis (os códigos-fonte em linguagem de máquina) em CDs, o representante do PT, Moacir Casagrande, passou a assistir a filmes em um telão cedido pelo TSE, usando um DVD acoplado a seu laptop, introduzido na sala especial – embora isto fosse proibido.

E, por mais de uma vez, diante da inusitada e improvisada “sessão“ de cinema, acompanhada por funcionários do TSE, os poucos fiscais presentes que tentavam acompanhar a delicada operação técnica – que por diversas vezes foi interrompida por erro de sistema – tiveram que pedir que o alto volume do DVD fosse baixado.
Às duas e meia da madrugada de sexta para sábado a operação de compilação ainda não tinha terminado, o que só aconteceu no final da madrugada, embora o fiscal Casagrande já tivesse assistido a três filmes – o último deles, O Senhor dos Anéis e, no intervalo entre um e outro, seu computador projetasse na tela, instalada dentro da sala de compilação do TSE, a mensagem “Lula Presidente“.

Aos fiscais o TSE garantiu que o programa gerado após a conferência, gravado nos CDs, seria assinado digitalmente, e o código deles entregue para que os partidos, na ponta do sistema, tivessem condições de conferir se eles realmente são os que vão equipar cada uma das 404 mil urnas eletrônicas das eleições gerais de 6 de outubro. Isso realmente aconteceu, e os códigos foram disponibilizados no sítio para quem quisesse pegar. [O TSE, em recente sessão plenária, decidiu cancelar decisão anterior que anulava seis opções do eleitor no “voto interrompido“. Agora, pelo menos nas urnas que não imprimem o voto, o que o eleitor digitar será contabilizado como voto válido. Por conta disso, os programas das urnas serão – mais uma vez – disponibilizados para os partidos políticos. A data ainda não foi marcada.]

Mas quem garante que na balbúrdia da compilação dos executáveis foram gravados nos CDs os programas realmente vistos – apenas vistos – pelos partidos? Mais uma vez, só o TSE garante. Esse é o pulo do gato.

(*) Jornalista; esteve no TSE acompanhando a apresentação dos programas das urnas eletrônicas como fiscal de partido