Serra da Barriga tem área VIP
Redação

Símbolo da resistência negra à escravidão, hoje conta com área VIP para ricos e políticosEm visita à minha terra natal, durante o período que compreende o dia 20 de novembro, resolvi que não havia melhor forma de passar o Dia da Consciência Negra do que conhecendo a Serra da Barriga, lugar de natureza paradisíaca, ladeiras íngremes e um sol escaldante, que foi palco da maior, mais viva e poética resistência negra nesse país: o Quilombo dos Palmares.

Apesar de ter nascido e me criado em Alagoas, nunca havia visitado a Serra. Na verdade, antes nunca tinha me passado pela cabeça ir, pois o incentivo das escolas, governos e, portanto, da sociedade a esse respeito é praticamente nulo. Aprendemos a história do Quilombo dos Palmares – situado a menos de 75 km da capital Maceió – com a mesma indiferença e distância com que tratamos o bandeirantismo paulista, a noite das garrafadas carioca ou os farroupilhas sulistas.

Porém, mesmo sabendo da falta de incentivo a cultura e história em nosso país, mais especificamente em nosso belíssimo estado, não consegui evitar certas esperanças que, infelizmente, se mostraram bem vãs.

Esperava eu entrar em contato com a história viva de meus irmãos quilombolas, conhecer como viviam, onde moravam, como dormiam, como moíam seus grãos, colhiam seu alimento, se banhavam, se relacionavam amorosamente, lutavam e resistiam.

Esperava eu encontrar diversos movimentos sociais e organizações políticas, com suas bandeiras e faixas de júbilo (pela importância da memória que o dia traz, o dia da morte de Zumbi) e denúncias pela situação em que os negros ainda vivem hoje em todo país.
Contava com a presença de diversos guias e professores em excursão com seus alunos, contando e ensinando sobre a história daquele lugar tão rico, fértil e traiçoeiro para os que tentavam invadir, tão acolhedor para os que nele buscavam a liberdade.
Em suma, estava na expectativa de conhecer mais sobre Zumbi, Ganga Zumba, Dandara, mocambos, orixás, macumbas e búzios.

Mas para minha decepção, o que se passava no alto da íngreme serra barriguda não fugia muito de uma grande festa temática ou um “showmício”. Já no pé da Serra, nos deparamos com um grande outdoor com uma foto de Zumbi ao lado de um político da direita tradicional e coronelista da região. Político cujos cabos eleitorais distribuíam santinhos a todos e todas que adentravam o espaço que um dia foi o Mocambo do Macaco, antigo centro político do quilombo.

No palco, montado no meio de uma praça, algumas curtas apresentações de capoeira, batuques e danças. Em seguida, passou a ser executadas músicas carnavalescas de micaretas. Os políticos tradicionais do estado passeavam e acenavam para a população como celebridades. Tiravam fotos, fingiam certo requebrado ao som do berimbau e, pasmem, furavam a fila pra comprar acarajé!

Na melhor localização da Serra, foi construído um restaurante muito confortável a preços nada populares, onde estavam o Secretário de Cultura do estado, dois ex-prefeitos de Maceió, políticos do município de União dos Palmares, turistas europeus, e a pequena burguesia excêntrica alagoana. Infelizmente todos os pais e mães de santo e jogadores de búzios estavam “aprisionados” nesse restaurante, compartilhando sua cultura única e exclusivamente com os de cabelos loiros e claros olhos que possuíam dinheiro e prestígio.

Para estes últimos também foi reservada, no que um dia foi o maior símbolo da resistência negra no país, uma área VIP. Área VIP para políticos, ricos e brancos, na Serra da Barriga! Chega a ser ofensivo!

A moça que impediu nossa entrada nesse espaço não sabia nada sobre a história do prédio que eles escolheram para reservar.

Se nunca tivesse ouvido falar do que foi o Quilombo dos Palmares, sairia da Serra da Barriga achando que fui numa micareta. O povo negro que lá estava em massa, genuinamente atrás de suas raízes, ficou preso numa cortina de fumaça de estereótipos distorcidos, lembrancinhas com a cara de Zumbi, e políticos ocupando os melhores espaços – as áreas VIP´s.

É nefasto como os governos da burguesia retiram do proletariado até sua identidade mais intrínseca e clara. A história do Quilombo é a história do povo negro e pobre que refez, no dia 20 de novembro de 2011, a trilha íngreme e tortuosa da alta Serra da Barriga. É a raiz e berço de todos nós. Porém, toda e qualquer referência verdadeira do que foi o processo de resistência de Palmares é completamente esvaziado.

Zumbi virou estampa de camiseta – assim como Che Guevara – broches, marca de Cachaça e cabo eleitoral de político coronel da direita tradicional, Todos descendente todos políticos de Domingos Jorge Velho, bandeirante paulista que destruiu Palmares.

A omissão e o descaso dos governos federal e de Alagoas com esse tesouro histórico que possuímos na cidade de União dos Palmares não acontece por acaso. Trata-se de uma decisão consciente e voluntária. Eles sabem que lembrar o povo massacrado por anos e anos de coronelismo político e econômico, subemprego, trabalho semi-escravo, péssimas ou nenhuma condição de vida e sobrevivência, do verdadeiro significado do Quilombo dos Palmares e Zumbi é por demais perigosos, pois como sabemos “o exemplo arrasta” e novos Quilombos podem surgir!