Evo Morales com o exército em instalação da Petrobras na Bolívia
Agência Boliviana de Informações

No dia 1º de maio, o governo de Evo Morales promulgou o Decreto Supremo nº 28.701, de nacionalização dos hidrocarbonetos (gás natural e derivados do petróleo). A notícia rodou o mundo. Por quê?

Há cerca de dez anos, as empresas transnacionais do petróleo – entre as quais a brasileira Petrobras – organizaram o roubo do gás e do petróleo do segundo país mais miserável da América Latina. De forma cínica e selvagem, sem respeitar a Constituição Nacional Boliviana, nem o meio-ambiente e, além disso, desrespeitando os direitos dos povos indígenas que vivem nas várias regiões petrolíferas do país, uma dezena de empresas internacionais exportaram milhões de metros cúbicos de gás e petróleo, sem qualquer benefício para a Bolívia.

As empresas reclamaram da medida porque seu roubo organizado seria brecado. O povo boliviano festeja, porque a nacionalização seria uma das medidas centrais pelas quais vem lutando durante os últimos três anos.

Mas de que trata a nacionalização dos hidrocarbonetos na Bolívia? Será realmente uma verdadeira nacionalização? O governo boliviano está expropriando as transnacionais, como anunciam alguns órgãos da imprensa?

Um pouco de história
A Bolívia é o país com mais reservas de gás na América Latina, depois da Venezuela. Por isso, as transnacionais sempre se interessaram em explorar e ter o controle sobre as reservas: para garantir sua exportação a preço de banana.

Durante o século 20, o povo boliviano conseguiu duas vezes a nacionalização dos hidrocarbonetos: em 1937, depois da Guerra do Chaco*, expulsando a corporação Standard Oil Company; e em 1969, expropriando a transnacional Gulf Oil.

Essa nacionalização permitiu o fortalecimento da YPFB (“Yacimientos Petroliferos Fiscales Bolivianos”), como empresa estatal que monopolizou a produção, transporte e comercialização dos hidrocarbonetos e se transformou numa das empresas mais importantes do país, garantindo o capital necessário para a estabilização econômica nacional.

Em 1996, o governo neoliberal de Sánchez de Losada privatizou completamente os hidrocarbonetos da Bolívia e repassou a exploração, produção, transporte e distribuição dos hidrocarbonetos para as mãos das transnacionais, desmantelando a estatal YPFB.

As transnacionais assinaram – com o governo boliviano – contratos altamente prejudiciais para o país, porque lhes entregavam total controle sobre o conjunto das atividades em gás e petróleo. Certas transnacionais inclusive utilizaram o “direito” de declarar como suas as reservas do subsolo boliviano e colocá-las na Bolsa de Nova Iorque, apesar de absolutamente ilegal, segundo a Constituição Nacional Boliviana.

Em 2003, estes contratos assinados pelo governo de Sánchez de Losada foram denunciados e reconhecidos como ilegais pelo Supremo Tribunal Constitucional, por não terem sido aprovados pelo Parlamento. No entanto, as empresas transnacionais seguiram explorando ilegalmente. Os governos neoliberais anteriores não tiveram força suficiente para impor uma negociação com estas empresas, que seguiam impunes.

A nacionalização é a exigência central da revolução boliviana
Frente à pilhagem e à miséria crescentes – e à impunidade de que gozam as empresas estrangeiras no país –, cresceu uma forte consciência social sobre a necessidade de recuperar os recursos naturais em beneficio da população boliviana.

Em duas oportunidades o povo da Bolívia insurgiu-se, exigindo a nacionalização dos hidrocarbonetos, sem indenização: a revolução de outubro de 2003 conseguiu derrubar o presidente Sánchez de Losada, principal agente dessa política entreguista. As mobilizações de maio-junho de 2005 levaram à queda do presidente Carlos Mesa, por não ter mostrado vontade de realizar a nacionalização.

Durante mais de 10 meses, em 2004, foi discutida no Parlamento uma nova Lei de Hidrocarbonetos. Essa lei, de n0 3.058 – proposta majoritária do MAS (Movimiento al Socialismo, partido de Morales) –, aprovada em maio de 2005, coloca como pontos centrais:
a) 50% de impostos sobre a produção das transnacionais;
b) obrigação para as transnacionais de assinar novos contratos com o Estado;
c) prazo de seis meses para a renegociação com as transnacionais.

Esses pontos não foram aplicados depois da proclamação de tal lei.
Hoje a nacionalização segue sendo um tema muito sensível aos bolivianos. O povo não esqueceu os mortos de outubro de 2003 e as mobilizações de junho de 2005, quando centenas de milhares de pessoas estiveram nas ruas, exigindo a nacionalização. E disso Morales sabe. Por um lado, existe muita expectativa da população face ao novo governo, mas, por outro, tem que cumprir o prometido. Caso contrário, o povo pode voltar às ruas para exigir tais mudanças.

A reação das transnacionais e do imperialismo
A nacionalização foi notícia destacada, e duramente criticada, na imprensa internacional. O anúncio da medida teve tal impacto porque o grande capital está preocupado com a possibilidade de mudanças nas regras do jogo que quer impor o governo Morales: nos impostos a serem pagos, nos preços do gás – ainda que nada esteja já anunciado sobre isso –, e mudanças na porcentagem de ações nas mãos do Estado.

Volta ao primeiro plano a questão da nacionalização. Fala-se de outras nacionalizações possíveis. E Morales chama à vigília do povo para o cumprimento da medida! Por tudo isso, as transnacionais estão furiosas. Inclusive, a Petrobras ameaça levar o caso diante dos tribunais internacionais e painéis arbitrais de Nova Iorque.

O que quer dizer “nacionalização”?
Trata-se da recuperação da propriedade e do controle por parte do Estado, sobre um recurso natural ou uma empresa, para ser explorado por uma empresa estatal e seus benefícios serem diretamente geridos e controlados pelo Estado. Os socialistas lutam pela nacionalização com expropriação das transnacionais, sem indenização para as transnacionais, que já vêm roubando durante anos a fio os recursos do país.

As armadilhas do decreto de nacionalização de Evo Morales
O artigo 10 diz: “O Estado recupera a propriedade, a posse e o controle total e absoluto destes recursos”. Mas o Decreto Supremo não promulga a expropriação das transnacionais e seus bens. Como recuperar, então, o controle? Renegociando os contratos com as empresas?

O Decreto prevê um prazo de seis meses para renegociar com as transnacionais (art. 30). No entanto, é preciso mencionar que se trata da terceira vez que um governo boliviano dá seis meses de prazo às transnacionais para regularizar sua situação, mediante a assinatura de novos contratos, que terão de ser negociados…
Durante o período de negociação, está previsto que para os dois maiores campos de exploração localizados ao sul do país, província de Tarija, que são explorados pela Petrobras, o Estado recupere em impostos 82% do valor da produção para o Estado boliviano e só 18% para as transnacionais. (art. 4.1).

Mas para os menores campos de exploração – a maioria das jazidas – permanecerá a atual distribuição (ou seja, 18%).

O MAS de Evo Morales só propõe uma participação acionária majoritária do Estado (50 % + 1) na empresa a cargo da produção e comercialização do gás da YPFB. Não ratifica o monopólio da YPFB sobre o conjunto da cadeia produtiva, que foi a força da empresa estatal no passado.

Finalmente, o Decreto não é claro enquanto à possível indenização às transnacionais por recuperar parte de suas ações. O artigo 4 assinala que “se determinará mediante auditorias a retribuição ou participação correspondente às companhias nos contratos a serem firmados.”

De fato, este decreto repete vários temas já previstos na Lei 3.058, do ano passado, e que não foram aplicados.

Os objetivos ocultos desta medida
Evo Morales e o MAS têm dois objetivos ocultos: pressionar as transnacionais para negociar em melhores condições os futuros preços de gás, e retirar a questão da nacionalização da discussão da Assembléia Constituinte, que se iniciará em agosto deste ano.

A Constituinte era outra grande reivindicação das organizações camponesas e indígenas durante as mobilizações de 2003 e 2005. Com esta medida, as organizações têm a esperança de poder mudar o país, “refundar” a Bolívia sobre novas bases. E ter um espaço onde possam ser discutidas todas as questões importantes para o futuro da Bolívia, entre as quais, a nacionalização.

Para evitar este debate, o MAS tenta “solucionar” o problema da nacionalização antes de agosto, para que não entre na agenda de discussão da Constituinte.
Evo Morales e sua equipe realizaram um grande golpe midiático com a medida de nacionalização, justo no 10 de maio, dia internacional dos trabalhadores. Ninguém sabia que esse decreto iria sair. A “tomada pacífica” das refinarias pelo exército – com a presença do presidente – serviu para mostrar o apoio das forças armadas ao governo.

Não havia qualquer necessidade para tal medida. Afinal, contra quem é a ocupação? Bandeirolas de nacionalização foram colocadas em todos os postos de gasolina do país, uma propaganda – com os dizeres, em letras garrafais, “EVO CUMPRE” – passou durante todo o dia na televisão e outras comunicações de massas demonstraram a intenção do governo de aumentar ainda mais a popularidade do MAS e do presidente e, de fato, lançar a campanha eleitoral para a Assembléia Constituinte, cuja eleição de candidatos se realizará no dia 2 de julho.

Um passo adiante contra as transnacionais
O governo de frente popular de Morales necessita mostrar ao povo que o elegeu que vai realizar as grandes mudanças prometidas. Este decreto de nacionalização, apesar de não propor a expropriação das transnacionais, pretende ser um passo para uma nova negociação com as transnacionais, pressioná-las e forçá-las a negociarem – onde realmente se decidirá a porcentagem de impostos cobrados pela exploração e exportação dos hidrocarbonetos.

Para uma verdadeira nacionalização
Quando se quer recuperar a propriedade dos recursos naturais, não há como propor meios caminhos. O capitalismo transnacional é cruel e não quer compartilhar seus fabulosos lucros, que há anos suga da Bolívia. O capital vai dar uma dura batalha ao governo de frente popular contra as medidas adotadas. Não vai permitir negociações de igual para igual.

Em vez de negociar, o governo de Evo Morales teria que expropriar as transnacionais que exploram os hidrocarbonetos e todos seus bens, repassando tudo à YPFB, como empresa estatal, sob controle dos trabalhadores. Essa é a única maneira de garantir o que o povo boliviano reclamou nas duas revoluções dos primeiros anos do século 21: recuperar o controle sobre seus recursos naturais.

* Conflito armado, que teve início em junho de 1932, entre a Bolívia e o Paraguai. Tendo como uma das causas a descoberta de petróleo nos Andes. A Guerra que durou três anos, deixou um saldo de 60 mil bolivianos e 30 mil paraguaios mortos.

Post author Candy Vargas, de La Paz
Publication Date