“Estranhem tudo aquilo que não for estranho.
Tomem por inexplicável o que parecer habitual.
Sintam-se perplexos diante do quotidiano.
Tratem então de achar um remédio para o abuso.
Mas não se esqueçam: o abuso é sempre a regra.”

Bertold Brecht, em A Exceção e a Regra, 1930.

Em vigorosa antítese à pasmaceira que informa a recente produção cultural brasileira, por exemplo, em televisão e cinema – com a ressalva de que também nestes espaços, felizmente, existem (raras e) desabusadas exceções à regra –, já há alguns anos pode-se dizer que um espectro revolucionário ronda as companhias do teatro coletivo de São Paulo. Mais do que isso: Bertold Brecht vive. A atualidade e a vigência de seu teatro dialético – resumindo brutalmente, a crítica da crítica de séculos inteiros de história do teatro, tal como se convencionou entendê-lo – faz com que Brecht, em torno aos problemas sociais e estéticos que levantou à sua hora histórica, caminhe outra vez – espinha ereta, passos largos – no chamado mundo dos homens. A relação do teatro de Brecht com a formação social brasileira, a bem da verdade, remonta já desde a década de 1950, tendo fervilhado no quente caldo cultural dos anos 60 e 70. Mas, não cabe aqui contar esta história. (A não ser que, curiosamente, a primeira montagem brechtiana em solo nacional – através da tradicional Escola de Arte Dramática, a EAD de São Paulo – referia-se justamente a esta mesmíssima peça.) O que cabe registrar – para todos os efeitos – é que, aqui sim, vale a periodização histórica em torno ao que seria uma verdadeira retomada: olhar para o passado, reinventar o presente para, então, construir o futuro. (“Aos que estão por vir”.)

Uma peça-didática para o chão de um teatro-fábrica
O Núcleo Dois [1] da Cia. Teatro-Fábrica de São Paulo (a alusão à categoria fundante do trabalho material, social e necessário – tratando-se de uma ex-fábrica, re-ocupada –, não poderia ser mais sintomal da perspectiva marxista), responsável pela montagem ora em questão, se insere no contexto histórico mais amplo do Movimento Arte contra a Barbárie. Tampouco, exíguo é o espaço, pode-se historicizar, aligeiradamente, projeto político-cultural de tamanha envergadura. O essencial é dizer que, a partir de um profundo questionamento à concepção burguesa do processo cultural – cuja negatividade a lógica do capital elevou à enésima potência, na contemporaneidade capitalista – e uma proposta prático-crítica que mobilizou o que há de melhor no teatro paulista, logrou-se o acúmulo social e político que, subseqüentemente, detonou a alteração na “correlação de forças”: da pujança das ruas até o parlamento dos “de cima”, a favor da função social de um teatro popular à altura dos interesses imediatos (e necessidades históricas) da maioria da população de São Paulo.

Como o caiçara que lê o ambiente em que vive, pode-se afirmar o prenúncio transitório de uma virada de tempo a se postar ao horizonte o qual – em seu presságio, a forma cultural – anuncia uma reviravolta de conteúdo político. Por fora dos holofotes do “sistema estelar” (o tal star system) das produções globais (ou globalizantes), desenvolveu-se toda uma vertente preocupada com questões tais como: pesquisa estética, formação crítica de um circuito popular, controle coletivo sobre a totalidade social do processo de trabalho criativo – desde a socialização da produção, até a ampliação do público – e, além de muito, muito mais: a não-alienação entre ator e espectador. (A continuidade e a sistematização, aqui entendidas como princípios-vetores, vão para além da miserável, presentista e descartável concepção de “projeto” – encerrado este em um só “produto” – contida nas leis de renúncia fiscal que norteiam a política cultural deste país. Brecht, como se pode notar, não se trata de uma escolha aleatória.)

A Exceção e a Regra, a sua vez, caracteriza-se por se inserir naquilo que Brecht chamou “peças didáticas”, aspecto este pouco sistematizado pela primeira apropriação de Brecht no país. A proposta de peça-didática, segundo se conta, nascera depois de um conflito legal envolvendo o autor e os respectivos responsáveis pela versão filmada da Ópera dos Três Vinténs (peça esta que viria a inspirar o clássico teatral de Chico Buarque, A Ópera do Malandro, transplantada para o solo fértil de contradições do desenvolvimento capitalista do Rio quarentesco da ditadura Vargas). Com a peça escrita no final dos anos 20 e, depois, levada às telas de cinema – após penosa querela jurídica – o autor d’A Exceção apercebe-se então, e vividamente, da profunda necessidade de produzir arte à maior distância possível da fantasmagórica fetichização do que viria a se denominar “indústria cultural”. E, ao contrário do que a outra denominação possa sugerir, a “peça-didática” não serve à instrumentalização de uma suposta “doutrina” – como costuma (pré) supor a, apressada, “crítica profissional” –, ou seja, não objetiva o “espetáculo-mercadoria” (e, menos que menos, seu “público-consumidor”) –, mas sim àqueles e àquelas que se propõem a parteggiare tal experiência de vida (e, por que não?, de luta, partigianna). Não se trata de uma “profissão de fé”.

Senão, vejamos. O termo “peça-didática” vem do alemão Lehrstück – que o próprio dramaturgo traduziu ao inglês como learning-play –, qual seja, um processo de ensino-aprendizagem que se dá enquanto expressão viva e momento constitutivamente orgânico da própria produção estético-social. No teatro de Brecht vale o enunciado, de inspiração gramsciana, que o camarada Edmundo Dias – intelectual orgânico da classe trabalhadora brasileira – tanto gosta de usar (quando em audiências operárias): ensinar como quem faz política, fazer política como quem ensina. A peça-didática seria, enfim, um exercício de dialética. Eis que de repente o leitor atônito puxa o freio de emergência e interrompe o fluxo, o continuum mesmo da narrativa. Tudo se move de lugar – e, em alta velocidade –, ouve-se intenso e agudo barulho: “O que seria afinal – de onde vem, para aonde vai – essa tal ‘dialética’”? Muitos estudiosos rastrearam a gênese histórica de sua expressão literária moderna já em Mefistófiles – personagem-demônio de Fausto, romance alemão de Goethe – que, ao abrir a voz, faz o tempo cantar: “Tudo o que nasce merece perecer” – diz o ser-diabólico – “Eu sou o espírito que tudo nega”. O princípio da contradição – um pressuposto, salvo (ledo) engano, do próprio teatro dialético de Brecht – fora já esmiuçado em brincalhona expressão da teatróloga trotskista Iná Camargo Costa, em pleno chão de teatro-fábrica, conversando com o jovem público do ciclo de palestras Diálogos com Brecht. Diz Iná: “[o] que eu gosto de chamar de espírito de porco”[2] (Costa, 2005, grifo nosso). É. Isso. É preciso cultivá-lo. E fazê-lo chafurdar, na real-nervura das contradições vivas.

Da peça-didática ao teatro-fórum: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido
Na peça-didática incita-se a participação do espectador, como ator e co-autor do próprio texto. Sem pretender ensinar um conteúdo “pronto e acabado”, trata-se da construção dialética de um espaço estético – essencialmente coletivo – para a trans-criação de motivos-geradores, da ação cênica à práxis política: a serem experimentados, questionados, CRITICADOS. A “aura” que envolve a questão autoral – de tão sólida que é – se desvanece no ar. Diz o próprio Núcleo Dois, “[trata-se de peça] onde espectadores e atores participam, ativa e conjuntamente, na construção de um conhecimento – histórico-cultural – dos temas abordados”. Trata-se, enfim, de uma estrutura formal que – enquanto método de trabalho – prima pela “unidade na diversidade”. (Em base a pequenos fragmentos, ou mesmo tão-só a algumas linhas, desenvolve-se ponto de partida para o labor de companhias coletivas do teatro paulistano tais como, por exemplo, a Companhia do Latão.)

Nesse momento, adentramos o universo estético-social do dramaturgo brasileiro Augusto Boal e seu longo caminho para Brecht, criativo e renovador, no interior da internacionalmente reconhecida proposta de Teatro do Oprimido. (No período pós-64, a expressão “oprimido” – lembrar é resistir: nunca é demais recordar – adquiria nítida conotação: super-exploração econômica e opressão político-ditatorial.) A montagem recente incorpora a dinâmica mesma do teatro-fórum, sistematizada por Boal a partir da premissa brechtiana. Ao fim do “espetáculo”, os espectadores são convidados a “refazer” as ações da peça, propondo novas soluções cênicas para os conflitos em trama que são – regularmente e sem exceção, ao menos no teatro brechtiano – as contradições imanentes à Ordem do Capital.

A força-motriz do teatro brechtiano é, então, desenvolvida na perspectiva de Boal. Trata-se de construir um teatro popular enquanto espaço estético, questionando a alienação espectador/ator – através de um sistema de exercícios físicos, jogos estéticos, brincadeiras corporais e técnicas de imagem/improvisação, mediante a linguagem teatral –, e, parafraseando Gramsci, fazer valer a expressão de que todo homem é um artista. O teatro é pensado como forma de sensibilização, criação e discussão de dimensões sócio-culturais, ético-políticas e existenciais, pelos próprios grupos sociais, embora o espaço teatral (estético) mantenha-se destacado das demais instâncias – como “lugar de representação” –, mas no qual ator e espectador se confundem na mesma persona. Nesse sentido, é um modo através do qual diversas expressões artísticas – música, dança e etc. – podem estar dialeticamente articuladas, possibilitando a destruição-conservação-superação do espaço estético, que permita então a reflexão social, política e corporal; desmecanizando o quotidiano de pensar e sentir. Diz Boal:

“O espaço estético existe sempre e quando ocorre a separação entre os dois espaços: o do Ator e o do Espectador. Ou a dissociação de dois tempos: hoje, eu, aqui, e ontem, eu, aqui mesmo; ou, hoje e amanhã; ou, agora e antes; ou, agora e depois. Eu coincido sempre comigo mesmo no momento presente, pois o estou vivendo e o ato de vivê-lo é lembrar o passado ou imaginar o futuro. O Teatro (ou Tablado, na sua expressão mais simples; ou Espaço Estético, na sua expressão mais pura) serve para separar o Ator do Espectador, aquele que atua daquele que vê. Estes dois podem ser pessoas diferentes, ou podem coincidir na mesma pessoa.” (Boal, 1996, p. 33, grifos no original.)

De Boal a Brecht, de Brecht a Boal: por um teatro dialético
O efeito-distanciamento (o Verfremdungeffekt ou, simplesmente, efeito-V) e a não-identificação (‘empático-simpatética’), entre personagens em cena e espectadores do público – a suas vezes – são recursos tipicamente brechtianos, para um teatro que não visa a contemplação e a catarse mas, sobretudo, a construção dialética de uma ponte – estético-social – que vá da atuação até a ação. O narrador, na peça-didática de Brecht, e o “coringa”, no teatro-fórum de Boal, apresentam-se tal como são: mestres-de-cerimônias cuja principal missão é desmistificar a “ilusão” – ou, enfim –, profanar toda e qualquer sacralização do teatro. No Teatro-Fórum o “espetáculo” (ideal) é baseado em “fato” (material), no qual personagens, Oprimidos e Opressores, são estimulados a entrar na cena do conflito – de forma clara e objetiva – em defesa de seus desejos e interesses. Neste confronto, o Oprimido ‘fracassa’ e o público é convidado, pelo Coringa (o ‘facilitador-mediador’ do Teatro do Oprimido), a entrar em cena; substituir/improvisar o Protagonista-Sujeito (o Oprimido) e, então, buscar alternativas – outra vez, estético e social inter-transubstanciados, em dialética relação – para o problema encenado. Aqui, não há qualquer indício de maniqueísmo pétreo entre “opressores” e “oprimidos” mas, antes que isso, a representação estética das relações dinâmico-causais que lhes são subjacentes.

O apelo à manipulação das emoções, em Boal e Brecht, é substituído pelo predomínio do recurso à razão, sem nunca perder de vista o humor – e, até mesmo, a aproximação afetiva – enquanto instrumentos de interpretação crítica (e transformação revolucionária) do que é ali re-apresentado. Além da necessidade de expressar-se política (e “didaticamente”) através da linguagem teatral, a nova proposta procura evidenciar também a necessidade de uma (relativa) autonomia estética na produção artística: deve continuar plenamente teatral e, enquanto tal, divertir o público. Nas palavras de Brecht, conciliar a preocupação estética com a inquietude política, sem nunca submeter uma à outra mas, justamente, encontrando um novo e surpreendente significado para ambas. Em tal universo estético-social, contudo, a aproximação entre arte e vida – no interior do processo histórico – adquire uma impostação programática cuja poética exige a derivação de um futuro em aberto. A função social da arte não se reduz a reproduzir a sociedade de seu tempo. O principal objetivo – quer pelo conteúdo, quer pela forma – trata-se de desempenhar um papel transformador a um só tempo cultural e político, ou seja, a arte e a revolução. E, acima de tudo – e tanto mais n’A Exceção –, trata-se de desnaturalizar aquilo que é histórico. Sendo rigorosos: (quase) tudo. (O espírito que tudo nega afirma: se nasce, deve morrer.)

A Exceção é a Regra ou, afinal, Qual Remédio?
A peça – escrita esta em 1926 – narra a saga de um homem de negócios que empreende uma viagem através do deserto – com dois empregados, um guia e um carregador – para conseguir formalizar uma concessão para a exploração de petróleo. O businesman não mede esforços (meios) para alcançar seu objetivo financeiro (fim) – trata-se, enfim, de vencer a concorrência – mesmo que para isto tenha que abstrair a natureza humana de seus imediatamente subordinados. Em uma situação-limite, o patrão assassina o carregador de suas bagagens à queima-roupa – em um ato-reflexo, instintivo e de “auto-defesa” – pensando que este fosse atacá-lo quando, na verdade, o carregador tencionava tão-só ajudá-lo. A suposta pedra era um cantil: água. A segunda parte da peça é o julgamento deste assassinato e o modo como a justiça dos homens – a realmente existente, burguesa – enxerga, em um ato criminoso, algo como uma “legítima defesa”, favorecendo os “de cima” em detrimento dos “de baixo”. A peça mostra como os mecanismos, o funcionamento e a lógica da exploração do homem pelo homem são considerados “regra”, em uma crítica aguda de como se dá a sua produção social e histórica.

Há, aqui, uma relação cifrada entre a ilusão do palco e o verdadeiro enigma de efígie da sociedade capitalista. A cena burguesa – em sua representação político-jurídica – é concebida em referência a uma determinação que se encontra fora de si mesma. Expliquemo-nos. A cena política nas sociedades capitalistas – o lugar social da luta mesma entre partidos e organizações políticas, onde se “representam” os interesses de classes – não pode ser considerada, a partir de sua própria realidade imediata, enquanto “transparente”. Da representação política à emulação jurídica se apresenta a divisão hierárquica entre as classes. O cenário político – e as metáforas teatrais, tomadas de empréstimo ao drama burguês por Marx, são perfeitamente apropriadas (ato, entreato, personagem, proscênio e etc.) – não se revela aos sentidos diretamente segundo o que é: espécie de instância (ou “superestrutura” ideológica) da luta de classes em torno a seus interesses socioeconômicos (ou “base” material). A cena política revela-se “opaca”. A peça-didática – assim como o teatro-fórum – visa fazer evidenciar não simplesmente a falsa consciência sobre uma realidade falsa mas, ao revés, a consciência verdadeira de uma realidade falsa. Implodir a “representação” (política e teatral) – tornando-a auto-evidente – demonstraria, à luz solar, a violência estrutural que reveste a “legalidade” capitalista. A “regra”, para os trabalhadores não-proprietários é a “exceção”, para os proprietários não-trabalhadores. Não se trata – ao final – de uma sociabilidade de equivalentes. Em uma palavra: não são iguais. A liberdade é, nada mais, do Capital e sua Ordem.

Crônica de uma morte anunciada, não se faz qualquer segredo do desfecho trágico que aguarda o espectador. Afinal, não se trata de surpreender alguém – levando-o às lágrimas – com uma morte inesperada. Quando é necessário recorrer a algum procedimento “ilusório” – como, por exemplo, apagar as luzes para simular o breu da noite – os atores tratam de sublinhar o efeito, satirizando-o. E tudo começa com a explanação geral do “coringa” – ‘exegese’ narrativa em ação e movimento – sobre as “regras do jogo” que compõe o “teatro-fórum”. Até aí, tudo como reza o figurino: no ~~~~script~~~~. As séries de “Diálogos com Brecht”, as oficinas abertas de teatro-fórum e os seminários sobre Marx – lá do Teatro-Fábrica – se vertem em estado prático: são agora instrumentos. Porém, à medida que se representam as relações contraditórias entre capital e trabalho – ou, entre patrão e empregado – vão aparecendo alguns problemas (cênicos). Há uma superexposição do patrão que, além do mais, é o “coringa”. O patrão funciona como uma espécie de deus ex-machina – narrador omnisciente, omnipresente e, virtualmente, omnipotente –, e, enquanto isso, na maioria das vezes, os trabalhadores são colocados como não-sujeitos, sempre passivos (ou quase). A relação ator-espectador se estabelece e, chegado o momento, passa-se a palavra – o verbo-de-ação – para o público. Agora se sabe. A Exceção é a Regra. Qual Remédio?… Que fazer?

Entre a intenção e o gesto: por uma conclusão “espírito de porco”
As primeiras soluções passam pelo privilégio do acaso, algo de sarcasmo e saídas individuais. O trabalhador que se recusa à HUMILHAÇÃO, porém, é intercambiável por aquele que deve vender sua força de trabalho. A justiça burguesa não pode ser benevolente com uma pobre viúva, proletária. Policiais não servem aos mais fracos. Não há reconciliação possível entre patrões e empregados. E tampouco se pode humanizar um sistema social que, por definição, carece de humanidade. Eis então que alguns jovens – alguns deles já sexagenários – vão ressurgindo com saídas que passam pela ORGANIZAÇÃO dos de baixo, contra os de cima. O Capital e sua forma por excelência, a mercadoria, ocultam detrás de si – sob a aparência da coisificação, natural – relações sociais e, sobretudo, históricas. São muitos os que intervêm no sentido de desnaturalizar o que é histórico, historicizando o que não é natural. Agora, se é possível agrupar arranjos temáticos e soluções cênicas, são eles, sobretudo, COLETIVOS. Há uma função social para a arte – que não apenas a de mercadoria e entretenimento – sobretudo enquanto instrumento de formação humanística e crítica. Fala-se (e se faz, em cena) muito sobre eixos e momentos de humanização, desalienação, emancipação e, enfim, liberdade. Os módulos de “Marx em Brecht” – atividade última lá do Teatro-Fábrica – re-aparecem aqui com força: (i) não há razão neutra, (ii) a propriedade privada é um roubo, (iii) o Estado serve aos “de cima”, (iv) as idéias dominantes são as da classe dominante, (v) capital e trabalho se negam mutuamente e, ao fim e ao cabo, (vi) a liberdade capitalista se sobrepõe à emancipação humana. Há um princípio-norteador de construção (dialética) coletiva para o espaço estético. Os fios da trama são desatados, para formar novos nós. Há troca e debate. O processo, de fato, avança.

Mas o silêncio angustiado de alguns tarda, mas não falha. São “a voz da experiência” – intelectuais, versados em crítica pós-marxista – a dizer que o comunismo dos anos 20 e 30, de um Brecht ‘iludido’, “já não servia mais”.[3] Tratar-se-ia de algo por demais esquemático, unilateral, datado e, quiçá, irremediavelmente anacrônico. Afinal, já não existiria a contradição fundamental entre Capital e Trabalho, ao menos não tal como Brecht a conheceu. Tudo estaria diferente. A jovem plebe se rebela contra a intelectualidade indiferente. Mas são ainda um coro desafinado. “Mas e o Iraque?”, pergunta-se um. “Se não há exploração, como subiste o Capital?”, retruca outra. Querem se fazer ouvir democraticamente. Do outro lado, monopólio da fala. (Aonde foi o Coringa?) Longas exegeses sobre Marx, e Brecht, e O Capital. Como típicos intelectuais, tendem a “sintetizar em si mesmos”, em absoluta soberba, a totalidade do devir. Já sabem o que foi, o que é e o que será. São, contudo, benevolentes: querem explicar-nos. (Estes sim, são “doutrinários” – no pior dos sentidos –, “professores de uma fé”.) A regra do jogo porém, é bem clara: atuar para agir. As soluções cognitivas devem vir acompanhadas de sua respectiva representação cênica. Mas, os assentos são por demais confortáveis. A exposição seria o ridículo… coisa de jovens exaltados! A experiente intelectualidade tem tanto a dizer que “o horário” do teatro-fábrica (inexorável, como é, o tempo) chega ao fim. É preciso fechar.

As caras amarradas não se contentaram com a ‘sabedoria’ dos mais velhos, fossem eles realmente ‘experientes’ ou, mesmo, velhacos – como muito se vê por aí – de vinte-e-poucos-anos. Não é uma questão cronológica, não em sentido estreito:

“A indiferença é o peso morto da história. É o grilhão de chumbo [T.: “palla di piombo”] para o inovador, é a matéria inerte em que se afogam amiúde os mais esplendorosos entusiasmos, é o fosso que circunda a velha cidade e a defende melhor do que as mais sólidas muralhas, melhor que o peito dos seus guerreiros; porque engole em seus pântanos lamacentos os seus assaltantes, os dizima e desencoraja e, às vezes, faz com que desistam da ação heróica. (…) A maioria … [Os Indiferentes], ao contrário, diante de acontecimentos consumados, prefere falar de falhas ideais, de programas definitivamente esmagados e de outras fanfarronices semelhantes. Recomeçam assim o seu absenteísmo de qualquer compromisso. E já não por não verem claramente as coisas e, por vezes, não serem capazes de divisar belíssimas soluções para os problemas mais urgentes, ou para aqueles que – embora requerendo uma [mais] ampla preparação e tempo – são todavia tão urgentes quanto. Mas essas soluções são belissimamente inférteis; mas essa contribuição à vida coletiva não é animada por qualquer luz moral: é produto de curiosidade intelectual, e não do senso pungente de um compromisso histórico que quer a todos ativos na vida, que não admite desconhecimentos e indiferenças de nenhuma espécie.” (Gramsci, 1917, grifo do tradutor.)

Os doutos senhores, “moderados”, não quereriam uma versão “mais” atual e vigente de Brecht e Marx. Desejariam tão-só quebrar o espírito “radical” de uma juventude exaltada. Não podem (ou não querem) enxergar que a valorização do Capital, de poucos, ainda passa pela exploração, mais-valia, de muitos. Criticam impiedosamente a “Revolução” com “R” maiúsculo. Será em favor da “indiferença”, com “i” minúsculo? Mal-sabem que a situação na qual produziu Brecht muito se assemelhava a que vivemos hoje. Em meados dos anos 20, a República de Weimar – sob governo de colaboração de classes, dos social-democratas – constituiu, mediante des-organização (a ilusão) operária, a ante-sala para a ascensão de Hitler ao poder, após incêndio do parlamento (a representação da ilusão). A revolução “de baixo”, proletária/decapitada – Rosa Luxemburg, Karl Liebknecht e spartakistas entre a cruz e a espada –, realizou-se pelo avesso: uma contra-revolução “de cima”, nazista/triunfante. A barbárie do Capital mobilizou em especial às classes médias – intelectuais, inclusive – e então levou ao holocausto. Mas os senhores já não têm o que aprender, só a ensinar. Que dizer?… “À juventude se censura amiúde por acreditar que o mundo começa apenas com a mesma. Mas os velhos acreditam, ainda mais piamente, que o mundo finda com eles. O que é pior?”. (Hebbel, Friedrich, citado por Gramsci, idem.)

NOTAS
[1] “O Núcleo Dois tem coordenação de Sérgio Audi, Luiz Casado e Elidy Moreira. Surge para tratar das formas do teatro social, pesquisa sobre a prática do circuito popular de teatro desenvolvida pela companhia desde 1990, aprofundando a reflexão sobre a linguagem, gêneros, formatos de espetáculo e a comunicabilidade dos códigos utilizados na situação da formação de público. Este eixo de pesquisa pretende direcionar seus estudos visando aprofundar a experiência dos textos de Brecht e o estudo da ‘arena’ como espaço de espetáculo, reflexões e ciclos de estudos sobre a função da arte no mundo contemporâneo, a ruptura, de perspectiva moderna, à luz do estudo do pensamento de Karl Marx. A primeira montagem foi ‘A Exceção e a Regra’, unindo o texto de Brecht à dinâmica do Teatro-Fórum de Augusto Boal.” (Disponível em: http://www.fabricasaopaulo.com.br).

[2] Costa, Iná Camargo. “Brecht e o Teatro Épico” (Ciclo de Palestras “Diálogos com Brecht”). São Paulo, Cia. Teatro-Fábrica de São Paulo, 2005. Disponível em: http://www.fabricasaopaulo.com.br/download/brecht_1.doc.

[3] O argumento, contudo, não é inédito (a expropriação do trabalho alheio, aí sim, é indevida!). Segundo Schwarz (1999) – baseado, este, em Adorno – a obra de Brecht careceria hoje de revisão e crítica, dado que premissas centrais de seu trabalho teriam perdido força. Um ‘pressuposto caduco’ seria o de que o mundo caminharia para uma ordem socialista. Outra premissa, referir-se-ia ao arsenal de técnicas “épicas” (ver Costa, 2005), que pareceriam desgastadas. Por fim, os recursos de ruptura da ilusão cênica (e, por extensão, política) – tomados tal qual Brecht os compreendeu –, supostamente deixariam de ser ‘eficazes’. Schwarz afirma também, no entanto, que o re-exame de peças isoladas pode reconduzir a “bons achados”: tal o ácido retrato de um capitalismo amoral, como que absoluto / isento de culpas e/ou recalque; como o exposto – por exemplo – em Santa Joana dos Matadouros (paródia da literatura clássica alemã, que a faz falar a jerga de businesmen). Tratar-se-ia de reduzir a verdadeira revolução de Brecht, estético-política, a mera questão de conteúdo – não propriamente ético, mas – tão-só moral. Ora, reduzi-la a isso a tornaria pó. Como dizia a nonna boa e velha: porca miséria.

REFERÊNCIAS
BOAL, Augusto. Arco-Íris do Desejo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.

GRAMSCI, Antonio. Indifferenti, in: Cittá Futura, 11/feb./1917 (in: Scritti Giovanili 1914-1918. Torino: Einaudi, 1972). Exercício de livre-tradução de Roberto Della Santa Barros. Cotejado com a versão de P. C. U. Cavalcanti (Convite à Leitura de Gramsci. Rio de Janeiro: Achiamé, 1985) e conferido junto à tradução de C. N. Coutinho (Escritos Políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004). Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/064/64tc_gramsci.htm.

SCHWARZ, Roberto. Os altos e baixos da atualidade de Brecht, in: Seqüências Brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.