Dizer que o Oscar é uma celebração, bastante brega, do cinema norte-americano e de sua indústria é chover no molhado. O que, contudo, não deve nos impedir de dar uma espiada nas tendências apontadas pela “academia”. Bem como, aproveitar a oportunidade parPara quem viu o Oscar e vive na linha debaixo do Equador, o melhor momento da cerimônia foi, sem nenhuma sombra de dúvidas, a poética vingança do músico uruguaio Jorge Drexler, quando ele recebeu o Oscar de melhor canção pela belíssima música “Al Outro Lado del Rio”, tema central de “Diários de Motocicleta”, o belo filme sobre a vida do jovem Che Guevara, dirigido pelo brasileiro Walter Salles.

`OComo, agora, já quase todo mundo sabe, os organizadores do Oscar vetaram o nome de Drexler por acreditar que ele derrubaria a audiência, por ser um “desconhecido” cantor de um país ainda mais “desconhecido”. Para coroar a arrogância imperialista, a “Academia” ainda decretou que a música deveria ser apresentada por dois ídolos latinos atrativos para o público: o ator espanhol Antonio Banderas e o guitarrista mexicano Carlos Santana.

O que não se esperava é que, depois de Banderas ter protagonizado uma performance digna de um karaokê de quinta categoria e a música de Drexler ser premiada, o cantor uruguaio subiu ao palco e, ao invés de fazer os agradecimentos de sempre, cantou o refrão da música à capela, disse “tchau” e saiu com a alma lavada.

O episódio serviu como uma agradável vingança e contraponto para um “espetáculo” que, salvo raras exceções, foi pautado pela breguice gringa de sempre, com as inevitáveis doses de patriotada, as quais, este ano, ficaram a cargo do presidente da “Academia”, que dedicou a cerimônia para todos os combatentes norte-americanos que se encontram em outros países. Ou seja, todos os que estão ocupando, bombardeando ou oprimindo algum povo em algum canto do planeta.

Negros na academia
Ao inaugurar a cerimônia, o apresentador negro Chris Rock afirmou “nesta cerimônia temos quatro atores negros competindo“ e completou ironicamente: “é bom ver negros na sala, sem que sejam os funcionários da limpeza“.

O comentário de Chris deveu-se ao fato de que, além dos premiados Jamie Foxx (melhor ator, por sua impressionante interpretação do músico Ray Charles e, ainda, concorrente como coadjuvante, por “Colateral”) e Morgan Freeman (melhor coadjuvante, em “Menina de Ouro”), o Oscar tinha mais dois negros indicados: Don Cheadle, que disputava como melhor ator pelo papel de um gerente de hotel que salvou a vida de milhares de refugiados em “Hotel Ruanda”, e Sophie Okonedo, indicada na categoria melhor atriz coadjuvante pelo mesmo filme.

As premiações, pra lá de merecidas, de Foxx e Freeman, e a comemoração efusiva da população negra, merecem, contudo, ao menos uma reflexão. Se é verdade que elas representam um fato “histórico”, também é um fato que isso se deve à lógica perversa do racismo no interior da indústria cinematográfica.

Em outras palavras, ao invés de comemorarmos alegremente o fato de dois negros terem sido premiados em 2005, deveríamos denunciar enfaticamente o fato de que, em 77 anos, a “Academia” premiou um pequeno punhado de atores negros – 10 para ser exato – dentre os quase 290 que já receberam a estatueta, desde 1929.

Além dos dois premiados este ano, a lista inclui: Hattie McDaniel (atriz coadjuvante, em 1939, por “E o Vento Levou…”, Sidney Poitier (ator, 1963, em “Uma Voz na Sombra”), Louis Gossett Jr. (atriz coadjuvante, 1882, em “Força do Destino”), Denzel Washington (coadjuvante, 1989, por “Tempo de Glória”), Whoopi Goldberg (coadjuvante, 1990, “Ghost”), Cuba Gooding Jr. (ator Coadjuvante, 1996, Jerry Maguire). Somente em 2002, dois negros ganharam nas principais categorias (ator e atriz): Denzel, por “Dia de Treinamento” e Halle Berry, por “A Última Ceia”.

Sobre alguns dos filmes
Para quem quiser dar uma olhada nos filmes premiados, cabem algumas observações pois, para variar é pouca coisa que se salva em meio a uma série de produções que apelam muito muito mais para o “glamour”, os efeitos especiais e histórias mirabolantes.

Neste sentido, o vencedor como melhor filme, Menina de Ouro, é realmente uma exceção à regra. Dirigido por Clint Eastwood (melhor diretor) e protagonizado por Hilary Swank (melhor atriz, que já havia ganho outro Oscar por “Meninos não choram”), o filme utiliza-se da história de uma garota que quer se tornar campeã de boxe para navegar fundo nas relações, nos sentimentos humanos e seus descaminhos. O filme ainda tem o mérito de ter levantado uma enorme polêmica (sendo duramente atacado pelos conservadores) por tocar num tema tabu: a eutanásia.

Curiosamente, o direito de escolher uma morte digna e assistida, também está no centro do filme premiado como melhor produção estrangeira, Mar Adentro , do espanhol Alejandro Almenábar, que tem como ponto forte a impressionante interpretação de Javier Bardem.

Entre os demais premiados, há um pouco de tudo, em produções que vão de filmes irregulares a verdadeiras bombas.

Ray, por exemplo, peca pela falta de ritmo e suingue que caracterizaram a vida do músico que inspirou o filme. Apesar disto, há reconstituições magníficas das apresentações de Ray Charles e uma representação honesta de sua trajetória (que inclui desde seu histórico banimento do estado da Geórgia, depois de se recusar a fazer shows para platéias segregadas, até seus muitos problemas com a heroína e a relação machista e utilitária que ele manteve com as mulheres que conviveu).

Honestidade é exatamente o que falta a O Aviador, que, paradoxalmente, foi o grande premiado da noite, tendo ganho cinco Oscar, mas acabou saindo como o maior perdedor, por não ter recebido nenhum prêmio nas categorias mais importante. Dirigido por Martin Scorcese, que nunca ganhou uma estatueta (apesar desta ter sido sua quinta indicação), o filme “baseia-se” na vida de Howard Hughes, um milionário que acabou virando produtor e diretor de cinema.

O maior problema do filme, como muita gente já disse, é sua total falta de honestidade. Decidido a criar um mito sobre o poder empreendedor do povo norte-americano, Scorcese falseou a história de forma absurda: transformou Hughes em uma espécie de “super-homem” sem capa; omitiu completamente sua bissexualidade, amplamente registrada e conhecida e fez um filme que não diz ao que veio (a não ser arrastar uma multidão de pessoas a busca de novos heróis para as filas).

Dois outros filmes, premiados pelos seus roteiros, merecem destaque. Sideways – Entre Umas e Outras foi premiado como melhor roteiro adaptado abordando a história de dois amigos que saem, num tipo de despedida de solteiro, em uma jornada de degustação de vinho pelas fantásticas vinícolas da Califórnia e acabam envolvendo-se com mulheres locais. Bem humorado e bastante reflexivo sobre as relações humanas, o filme é um verdadeiro brinde para os apreciadores de vindo.

Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças venceu o prêmio de melhor roteiro original contando uma curiosa história, sobre um sujeito que tenta esquecer a namorada que o abandonou utilizando-se dos serviços de uma empresa especializada em apagar memórias dolorosas.