A esquerda revolucionária, no passado, sempre denunciou a farsa da democracia burguesa. Mas, depois da restauração do capitalismo no Leste Europeu, a maioria dela passou a aceitar as migalhas do Estado burguês

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    `Malevich`Em pouco tempo, o governo Lula está provocando uma enorme frustração em milhares de ativistas do Brasil e do mundo.

    Ocorre que as pessoas têm memória e lembram quando Lula subia nos palanques para atacar os patrões e seus governos. Quem pode se esquecer das greves metalúrgicas dos anos 70, ou da campanha eleitoral de 1982, quando Lula dizia: “patrão da situação ou patrão da oposição é tudo patrão”. Hoje, Lula não sobe nos palanques operários e quando o faz é para defender o grande capital.

    Milhares de ativistas, fundamentalmente aqueles que confiam no potencial dos trabalhadores, na revolução e no socialismo, estão atônitos e procuram uma explicação.

    Uma primeira resposta nos levaria a dizer que tudo isso ocorre porque Lula nunca foi, nem se considerou, um dirigente revolucionário.

    Esse argumento, ainda que verdadeiro, explica parcialmente as atuais posições de Lula, mas como explicar o que ocorre com vários de seus colaboradores que se consideravam socialistas e revolucionários?

    José Genoíno, presidente do PT, foi preso e torturado pelos militares por integrar a guerrilha do Araguaia, dirigida pelo maoísta PCdoB, do qual atualmente faz parte o ministro Aldo Rebelo. Depois, Genoíno rompeu com esse partido para fundar um mais à esquerda, o PRC, do qual também foi dirigente o ministro Tarso Genro. Por muitos anos, os ministros Palocci e Gushiken integraram o CORQUI, uma organização trotskista internacional e, como parte dela, também diziam que a única saída para o Brasil e o mundo era a Revolução Socialista. O ministro Rosetto, do Secretariado Unificado (SU), se reivindica da IV Internacional, o partido que Trotsky fundou com a intenção de dar um comando à Revolução mundial.

    Dirigentes da esquerda reformista e da esquerda revolucionária, que apóiam ou fazem parte de governos burgueses, não são uma particularidade brasileira.

    Existem dezenas de países no mundo onde se dá essa situação. Basta ver a experiência da Argentina, onde uma boa parte da esquerda apoiou e integrou o governo do ex-presidente Fernando De la Rúa. Podemos ver o caso da Venezuela, onde quase toda a esquerda está dividida entre os que apóiam o governo burguês de Hugo Chávez e os que fazem parte da frente burguesa golpista financiada pelos EUA. Há ainda o Peru, onde Alejandro Toledo chegou ao governo com o apoio de uma boa parte da esquerda; ou mesmo na Bolívia, onde o presidente Carlos Mesa se mantém graças ao apoio do MAS, integrado por um bom número de dirigentes que até há pouco tempo encabeçavam a esquerda revolucionária desse país como, por exemplo, Filemón Escobar e Pablo Sólon.
    Esses breves dados evidenciam que os ativistas não têm só que descobrir o que aconteceu com Lula e sim o que aconteceu com a esquerda. Porque uma coisa é evidente: já faz alguns anos, fundamentalmente a partir da queda do muro de Berlim, que a esquerda, em geral, e a esquerda revolucionária, em particular, estão irreconhecíveis.

    “Democracia” para enfrentar a revolução

    Para entendermos esta profunda mudança na esquerda, temos de tomar como referência o ano de 1975. Nesse ano, a principal potência do planeta, os EUA, foi derrotada pelas massas de um pequeno país, o Vietnã.

    A partir disso, o imperialismo americano não teve mais condições de enviar, de forma indiscriminada, seus exércitos para invadir qualquer país do mundo. As massas de seu próprio país o impediam. Foi o que se chamou de “síndrome de Vietnã”. Por outro lado, as ditaduras militares se mostravam incapazes de conter o ascenso das massas. O imperialismo americano se viu obrigado a mudar de política. Para manter sua dominação colonial e enfrentar os processos revolucionários deixou em segundo plano os golpes e as invasões militares, passou a utilizar o voto, os parlamentos, a legalidade dos partidos, ou seja, o conjunto das instituições da democracia burguesa. Foi uma política de “reação democrática”.

    Essa tática defensiva imperialista se transformou em ofensiva ao se converter no principal instrumento de um feroz plano de recolonização, que teve como seu mais expressivo resultado a restauração do capitalismo nos ex-Estados operários.
    Essa política, já antes da restauração do capitalismo, fez enormes estragos na maioria das organizações de esquerda no mundo.

    Após tomar o poder na Nicarágua, a guerrilha sandinista não expropriou a burguesia, pelo contrário, por meio dos mecanismos da democracia burguesa, acabou por entregar o poder a Violeta Chamorro, e por essa via o devolveu ao próprio imperialismo. A guerrilha salvadorenha se integrou aos “Planos de Paz” e parou de lutar quando tinha o controle de dois terços do país. A OLP, dirigida por Yasser Arafat, também em nome dos “Planos de Paz” do imperialismo, abandonou definitivamente a luta pela destruição do Estado de Israel e a construção de uma Palestina laica e democrática. Vários PCs da Europa e de outras partes do mundo (inclusive do Brasil), com um discurso “democrático” se transformaram em “eurocomunistas”, o que não significou outra coisa senão iniciar um processo de social-democratização, buscando maior independência do Kremlim e maior dependência dos Estados imperialistas europeus. Na ex-URSS, Gorbachov se converteu em um agente direto do imperialismo e deu passos decisivos em direção à restauração capitalista ganhando, com um discurso democratizante, a simpatia de boa parte da esquerda revolucionária. Por fim, no Brasil, grupos de esquerda, que de forma heróica surgiram nas lutas contra a ditadura, deixam as fábricas, os bancos, as escolas e o trabalho rural para se tornarem prefeitos, parlamentares, dirigentes de aparatos sindicais ou assessores de todo tipo. Assim, pouco a pouco, o imperialismo, via PT, conseguiu ir domesticando a maioria da esquerda brasileira.

    Esses fatos mostram que a velha esquerda capitulava ao imperialismo, o que haveria de dar um salto qualitativo com a restauração do capitalismo nos ex-Estados operários.

    Vendaval oportunista

    A restauração do capitalismo, na maioria dos casos, não veio através de golpes, mas das instituições da democracia burguesa. Isso deu bases objetivas à campanha ideológica do imperialismo, que tentava mostrar a superioridade do capitalismo sobre o socialismo ou da “democracia como valor universal” sobre as “ditaduras”, sejam estas burguesas ou proletárias. Essas idéias entusiasmaram os reformistas, e também muitos revolucionários, que, de repente, descobriram que as diferenças entre eles eram coisa do passado e que se tratava agora de construir novos partidos com “reformistas honestos”. Em outras palavras, esses “revolucionários”, dos quais se destaca em nível internacional o SU (Democracia Socialista, no Brasil), haviam virado reformistas.

    Lenin soube demonstrar que todo Estado tem um caráter de classe, que todo Estado capitalista, ainda que com formas democrático-burguesas, é uma ditadura e, mais ainda, que o Estado dos operários também será uma ditadura, só que da ampla maioria contra a minoria privilegiada. Essa grande verdade, a história se encarregou de confirmar uma e outra vez, como recentemente na Bolívia, onde mais de 80 pessoas foram assassinadas pela “democracia”. A burguesia sempre tentou demonstrar que sua “democracia” não era uma ditadura, senão o “governo do povo”.

    A esquerda revolucionária, no passado, sempre denunciou a farsa da democracia burguesa e contra ela defendeu o Estado dos operários, ou seja, a ditadura do proletariado. Mas, a partir da restauração do capitalismo, a maioria dela também descobriu o “valor universal da democracia” e começou a fazer o que os reformistas fazem há dezenas de anos: realizar algumas poucas reformas no capitalismo e deixar o socialismo para os dias de festas. Em outras palavras, a ampla maioria da esquerda revolucionária (ou ex-revolucionária) tirou uma conclusão fundamental: a classe operária não poderia, ou não deveria, tomar o poder.

    Gorriarán Merlo, um dos máximos dirigentes guerrilheiros do ERP argentino, que ficou famoso por assassinar o ex-presidente da Nicarágua Anastácio Somoza, resumiu, em poucas palavras, o pensamento da maioria da ex-esquerda revolucionária, no marco da reação democrática e da restauração capitalista.

    “Visto desde a ótica do movimento revolucionário, o propósito era tomar o poder para nos somarmos ao bloco socialista, que considerávamos próximos de nossos princípios. E o método de luta, ao estarem fechadas as possibilidades eleitorais, consistia na utilização de todas as formas de resistência, inclusive a armada. Dito período terminou entre o fim dos 80 e princípios dos 90, com a queda do Leste Europeu”.

    Depois da restauração do capitalismo nos ex-estados operários, a maioria dos ativistas de esquerda começou a procurar novos rumos; para muitos, a única política “realista” era tentar reformar o Estado burguês e suas instituições pela via eleitoral. Nascia, assim, um neo-reformismo (sem reformas) que haveria de ter sua expressão organizativa em milhares de Organizações não – Governamentais (ONGs), em uma série de partidos revolucionários transformados em aparatos eleitorais e, à frente de tudo isto, os grandes Fóruns Sociais Mundiais que descobriram que, sem fazer a revolução socialista, “um outro mundo é possível”.

    Para justificar o abandono das posições revolucionárias foram revividos todos os tipos de ideologia. Assim velhas consignas que iluminaram a revolução burguesa: “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” foram glorificadas por ex-guerrilheiros, ex-stalinistas e também, lamentavelmente, por milhares de ex-trotskistas. Elas serviram, e estão servindo, para justificar traições como a participação da esquerda revolucionária em governos capitalistas. Essa pressão da reação democrática é tão grande que a ela sucumbem inclusive setores da esquerda revolucionária que não apóiam esses governos.

    Por exemplo, na Argentina, uma importante organização que se reivindica trotskista, o Movimento Socialista dos Trabalhadores (MST), vem enfrentando todos os governos burgueses, no entanto, isso não o impediu de se enfrentar com às massas quando estas se negaram a votar. Para esses setores, quando as eleições estão ameaçadas, é como se desaparecesse o chão sob seus pés. Ninguém pode duvidar de que se trata de setores de esquerda, mas não vão mais além de ser a esquerda do regime.

    No Brasil, os “radicais” do PT romperam com o partido e enfrentam o governo. No entanto, esse setor, composto em sua maioria por pessoas que se reivindicam socialistas e revolucionárias, não consegue romper com o regime, por isso decidiu construir um partido junto com os “reformistas honestos”. Isto, que seria impensável há vinte anos, se transformou numa rotina depois da restauração do capitalismo nos ex-Estados operários e tem a ver justamente com o abandono da luta pela revolução socialista e pelo poder dos trabalhadores.

    Porém, apesar da negativa destes setores de lutar pelo poder, o problema de entrar por ele se coloca, em mais de uma oportunidade, na ordem do dia (Equador, Argentina, Bolívia etc). Frente a essa situação, na maioria dos casos, esses setores se vêem obrigados a dar uma resposta. Só que, coerentes com sua estratégia, nunca é uma resposta de classe: sempre é no terreno do regime: eleições ou, na melhor das hipóteses: eleições para Assembléia Constituinte.

    Em síntese, a partir da restauração capitalista dos ex-Estados operários, um vendaval oportunista arrasou as esquerdas, reformista e revolucionária.

    As perspectivas

    Certamente, muitos ativistas frustrados com Lula e com os dirigentes de esquerda que o acompanham, estarão se perguntando: Há possibilidades que esta situação mude? Quando vier o ascenso das massas não é possível que esses dirigentes se ponham à cabeça da luta revolucionária para dirigi-la até a vitória?

    Para responder a essas questões é necessário ser categórico. Não há nenhuma possibilidade de que isso ocorra. Se explodir a revolução brasileira, o que veremos da parte desses dirigentes será mais e não menos traições. Isto é o que já estamos vendo na Argentina e na Bolívia.

    Tudo isso ocorre porque não se trata de revolucionários confusos e, sim, de setores ganhos pelo regime capitalista a partir dos privilégios materiais que este lhes outorga e o marxismo, com muita razão, nos ensinou que nenhuma classe ou setor social renuncia aos seus privilégios.

    Essa geração de ex-revolucionários representada pelos Dirceus, Genoínos ou Paloccis é uma geração de dirigentes definitivamente perdida para a revolução. No entanto, esta conclusão não nos leva a sermos pessimistas, porque, no Brasil, como no resto do mundo, existem milhares de revolucionários que preferiram ser fiéis a sua classe negando-se a aceitar as migalhas do poder burguês. São muitos os que estão ativos, outros estão cansados, mas nem estes nem aqueles se corromperam.

    Por outro lado, a revolução brasileira que se está gestando (de fato já o está fazendo) o surgimento de uma nova geração de lutadores que saberão se colocar à cabeça dos novos acontecimentos. Trata-se de batalhar para que essas duas gerações se encontrem.

    Nesse sentido, só nos resta repetir a afirmação do velho Trotsky contida no Programa de Transição: “Somente o entusiasmo fresco e o espírito ofensivo da juventude podem assegurar os primeiros sucessos na luta; somente estes sucessos farão voltar à via da revolução os melhores elementos da velha geração. Foi sempre assim e continuará a sê-lo. Abaixo o burocratismo e o carreirismo! Lugar à juventude! Lugar às mulheres trabalhadoras!”.

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