O Katrina, que devastou Nova Orleans, deixou suas marcas também no governo Bush. Mas essas são as mais evidentes. Bush só se abalou com o Katrina porque já vinha com os alicerces fragilizados havia um bom tempo. Na Casa Branca, que o Katrina mostrou ser mais branca do que nunca, a tensão está ficando ainda mais alta. Uma crise vem tomando conta dos Estados Unidos, e parece que ultrapassa muito os efeitos do furacão.

Há muitos anos, os americanos não viam tão de perto as fraquezas de uma sociedade na qual sempre depositaram uma confiança cega e que se dizia a mais preparada para governar o mundo e dar lições aos outros. O american way of life (modo de vida americano) mostrou claramente seu caráter de classe, deixou claro que a boa vida de lá é para poucos.

Hoje o povo americano está ligando a TV e dando de cara com um cenário de Terceiro Mundo: uma cidade submersa em águas fétidas, com cadáveres boiando nas ruas da outrora cidade do jazz. Um cenário que o imperialismo americano sempre reservou aos outros povos, dizendo que era sua tarefa cuidar dos pobres e desventurados da humanidade (como no último tsunami), ainda que o principal fosse estar garantindo uma boa vida para os americanos. Mas esse discurso está caindo por terra. A pobreza, a discriminação deslavada contra os negros e um Estado omisso e impotente para socorrer seus habitantes, desprezando os marginalizados, mostraram a verdadeira face do capitalismo nos EUA.

A mídia ressalta a indignação, referindo-se ao 11 de Setembro e ao World Trade Center: “Há quatro anos, todos eram iguais diante da morte, financistas e secretárias. Agora as divisões de raça e classe ressurgiram”.

Política central se esfacela
A catástrofe do Katrina contudo apenas expôs as feridas que já vinham corroendo os EUA. Depois do 11 de Setembro, o Partido Republicano e o governo Bush abriram uma política de redução nos impostos para os ricos, ao mesmo tempo que investia pesadamente na guerra, garantia subsídios que praticamente sustentavam a poderosa burguesia agrícola americana, penalizando a população mais pobre. Essa política provocou ataques aos direitos sociais e aumentou o desemprego, além de cortar qualquer investimento no meio ambiente, como a sustentação dos diques que protegiam Nova Orleans das águas do Mississipi, tudo justificado pela necessidade de sustentar a guerra contra o terrorismo. Se num primeiro momento, após o 11 de Setembro, essa política teve apoio, agora desperta a gritaria geral. Os americanos vêem o governo perder o controle na guerra do Iraque, vêem crescer o ódio aos EUA no mundo inteiro, o que, em vez de protegê-los contra o “terror”, faz deles um alvo cada vez mais provável de novos atentados.

Com isso, a principal política de Bush, a que o levou a ganhar o segundo mandato, que lhe dava sustentação para impor sua posição junto às outras potências, em que se autoconferia o título de “guardião da humanidade”, está caindo em descrédito total.

Perder o pé aí é muito grave para os EUA, porque, entre seus estragos, o Katrina destruiu algumas plataformas de extração de petróleo, fazendo aumentar ainda mais o preço do barril, que, no fim de agosto, atingiu o recorde de US$ 70,85, puxado pela crise no Iraque. Isso prejudica o crescimento do país, eleva a taxa de inflação e obriga as empresas e os consumidores a pagar mais caro pelos combustíveis, deixando menos dinheiro disponível para adquirir os outros produtos e serviços, comprometendo o comércio internacional. O FMI está preocupado: “Isso poderá levar a uma desaceleração da economia no terceiro e quarto trimestres, nos EUA”, disse Gerd Haeusler, diretor de mercados de capital do Fundo. Se, a toda essa crise política, for juntada uma queda na economia, aí o governo Bush vai afundar no pântano, como aconteceu com a população de Nova Orleans.

Iraque está colocando Bush contra as cordas
Diante da crise, a burguesia começou a buscar opções para evitar um colapso. Kerry foi a primeira, mas não era uma real oposição à política de Bush. Na verdade, os democratas apóiam a política imperialista de Bush no Iraque, apenas se propõem a “fazer melhor”, e cobram mais energia perante Irã e Coréia do Norte. Apesar do apoio dos democratas ao governo, a população vai girando cada vez mais a um repúdio a Bush em todos os terrenos.

As baixas (mais de 1.900 mortos e dezenas de milhares de feridos) e as denúncias de torturas, os desvios de dinheiro, as mentiras antes e depois da invasão todavia tornaram a guerra completamente impopular. As massas vão se colocando na oposição a Bush de forma crescente. A última pesquisa CNN/Gallup mostra que apenas 44% da população apóia a guerra de Bush e 54% é contra enviar tropas ao Iraque – eram 44% em março.

O movimento contra a guerra vai tomando força. Cindy Sheehan, mãe do cabo Casey Sheehan, morto em combate no Iraque, exige ser recebida por Bush e montou um acampamento ao lado de sua fazenda, no Texas, polarizando o país e reunindo em torno de sua iniciativa a raiva crescente de parentes, veteranos, juventude, e até mesmo soldados da ativa. Camp Casey, o nome do acampamento, recebe a visita de artistas famosos. Até Joan Baez, cantora que ficou associada às grandes manifestações da época do Vietnã, apareceu por lá.

Os movimentos contra a guerra proliferam, furando o bloqueio da mídia. O próximo desafio ocorrerá no dia 24 de setembro em Washington e São Francisco, chamado por todas as principais organizações e coalizões contra a guerra.
Também se dá uma batalha contra as medidas bonapartistas de Bush em todos os terrenos, seja o das liberdades democráticas para protestar e agir contra o governo, seja o do casamento entre pessoas do mesmo sexo, direito ao aborto, prisões ilegais, como Guantánamo e Abu Graib. A própria CNN, uma das grandes empresas de comunicação, chegou a ser proibida de filmar os mortos de Nova Orleans e depois ganhou na Justiça esse direito.

Para tentar salvar o navio que se afunda, Bush foi três vezes a Nova Orleans prometer ajuda. Mas já era tarde. Dois dos principais jornais dos EUA, porta-vozes da poderosa burguesia do país, fazem previsões sombrias para ele. “Conseguir reverter os baixos índices de aprovação irá determinar não apenas o curso de seu segundo mandato, mas a força de seu partido que, tendo controle da Casa Branca e do Congresso por mais cinco anos, não consegue jogar a culpa em outro lugar!” (The New York Times). “Bush tem pouco tempo para rejuvenescer sua capacidade de governar, dada a realidade da condição de “pato manco” (no jargão americano, um dirigente sem forças) que o espera em um futuro não muito distante. A questão é se, em sua enfraquecida posição, ele poderá continuar a persuadir o país a segui-lo” (Washington Post).

A crise está aberta. Se o Katrina foi o empurrão que faltava, a enorme resistência iraquiana e a luta de todos os povos vêm fazendo a sua parte, dia a dia, pondo fermento na polarização dentro dos EUA e colocando no horizonte um novo Vietnã para o imperialismo americano.

Post author Cecília Toledo, da redação
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