Filme palestino traça um comovente perfil de jovens que se voluntariam como homens-bombaProduzido por Palestina, Holanda, Alemanha e França, Paradise Now (Paraíso Agora), dirigido por Hany Abu-Assad, é de uma beleza rara. Não só pela forma como seu dificílimo tema é abordado, mas também pela formidável maneira como foi realizado.

Nele, acompanhamos as 48 horas que antecedem o atentado suicida que será feito por dois jovens palestinos, Saïd (Kais Nashef) e Khaled (Ali Suliman). Um incidente na entrada de Israel faz com que os dois – que tinham como única pré-condição morrerem juntos – se separem, desencadeando situações que acirram a tensão do filme e servem para expor toda a complexidade que envolve a opção que fizeram.

Uma opção que, ao contrário do que se podia esperar, não é mostrada como exemplo de um fanatismo doentio. Khaled e Said são cheios de vida e sonhadores. Mas, acima de tudo, são palestinos vivendo numa terra miserável, ocupada pelo Estado sionista de Israel.

Gente sem opções e que teve seu futuro roubado pelos invasores. Gente para quem o auto-sacríficio é visto como um caminho não só para o “paraíso” prometido àqueles que se matam em combate, mas também como forma de resistência ao “inferno” em que são obrigados a sobreviver.

Barreiras que separam dois mundos
A falta de opções do povo enclausurado nos territórios palestinos é mostrada no filme por meio de barreiras que surgem desde a primeira cena. São barreiras que, literal e metaforicamente, tornam os caminhos mais difíceis, as opções mais limitadas e a busca por “saídas” um ato de desespero.

Nablus, onde a ação se passa, é uma cidade sitiada. Localizada na Cisjordânia, a cidade é cercada por todos os lados, tem índice de desemprego próximo aos 80%, economia devastada e péssimas condições de moradia e de vida.

O controle exercido por Israel só não é menor do que a violência de suas tropas. Somente no período de eclosão da Segunda Intifada, em setembro de 2000, cerca de 400 palestinos, incluindo vários jovens e crianças, foram mortos pelas tropas sionistas.

Uma situação que, no filme, é representada de várias formas: as constantes citações à água poluída, a crônica falta de trabalho e os bombardeios que sacodem a cidade são exemplos disso. Contudo, o melhor retrato de Nablus é dado por seu “oposto”, a cidade de Tel Aviv, para onde Said e Khaled partem para realizar sua ação.

O contraste é gigantesco. Pelos olhares incrédulos dos jovens palestinos, vemos uma cidade “moderna”, mergulhada em símbolos de consumo e opulência, habitada por gente saudável, vivendo numa despreocupada alegria e conforto.

Construída e mantida à custa do sofrimento dos palestinos, é contra esta Israel que Said e Khaled decidem sacrificar suas vidas. Como Said define, é a “ocupação que define a resistência”. É a ocupação que os coloca diante de “alternativas” tão difíceis: conviver ou colaborar com os invasores (o “pior dos crimes”, como definem), morrer sob a ocupação ou morrer lutando.

Quando os corpos são as únicas armas
Como lembra Said, o próprio corpo é a única coisa que resta para expressar sua indignação e buscar a liberdade. Opção que, não por acaso, remete a uma declaração dada por Ahmed Ben Bella, dirigente da luta argelina contra a ocupação francesa, nas décadas de 50 e 60. Uma vez questionado sobre o porquê das cestas de frutas carregadas com bombas enviadas contra soldados franceses, Bella foi enfático, afirmando que, se caso a Resistência tivesse os aviões Mirage e as bombas incendiárias da França, não usariam cestas.

Mais do que a promessa dos prazeres que os aguardam no paraíso, o que move esses jovens é um sentimento contraditório: eles se preparam para a morte com uma “resignada indignação”. Algo que o filme nos mostra com uma suavidade que ressalta a humanidade dessas figuras, que, para muitos, são “monstros”. Assim, o ritual de preparação para o atentado é impressionante e cerca cada um de seus (últimos) atos com respeito e dignidade.

Nesse processo, entre as várias metáforas existentes, uma é particularmente curiosa: as referências ao cristianismo. Há duas passagens que são reproduções literais de passagens bíblicas. A última refeição de Khaled e Said é representada como uma cópia de “A última ceia”, de Leonardo da Vinci, com 13 personagens em torno da mesa. Já o momento em que os dois se preparam para atravessar a cerca que os separa do território israelense faz referência à passagem em que o Cristo bíblico questiona seu próprio destino no Monte das Oliveiras.

As referências, evidentemente, têm um propósito. Ciente de sua sina, o ato de Cristo é um auto-sacríficio praticado em nome de uma determinada causa, quanto o é a opção de Khaled e Said. A diferença é que a “opção” do personagem bíblico é tida como exemplar. Já a dos jovens palestinos é vista como um ato de barbárie e fanatismo.

Uma visão que, no filme, é, de certa forma, compartilhada por um de seus personagens mais complexos, a jovem Suha (Lubna Azabal), uma palestina, filha de um “homem-bomba”, que retorna a Nablus depois de anos na Europa. Vinculado a uma visão “pacifista” de mudança, Suha vê-se diante de uma situação que foge à sua compreensão, tornando-se uma personagem fundamental no filme, já que ela serve como uma espécie de “espelho” para muita gente que, na platéia do cinema, olha para tudo aquilo com um olhar “externo”.

Político e reflexivo
Paradise Now vincula-se a uma longa linhagem de filmes que, na sua forma e conteúdo, se constituem em potentes discursos políticos e já foi levado às telas por gente como Sergei Eisenstein, Costa-Gravas e Gillo Pontecorvo.

O cinema hollywoodiano e suas crias são invariavelmente construídos de tal forma a seduzir o espectador e conduzi-lo às conclusões e sensações esperadas pelo diretor. Para tal, vale tudo: personagens estereotipados, música constante para reforçar o “clima”, edição frenética das cenas e uns tantos outros artifícios.

O filme de Abu-Assad é o oposto disso tudo. Seus personagens têm contradições e dúvidas, sua câmera os acompanha sem truques ou efeitos especiais, a música é mínima e particularmente dois detalhes chamam a atenção: o silêncio e os olhares.

São vários os momentos em que a câmera se detém sobre os personagens no mais absoluto silêncio como nos convidando a “entrar” em suas mentes, acompanhar seu raciocínio.

Talvez essa seja a maior fonte da beleza do filme. Aos sairmos do cinema, há muito sobre o que pensar. Abu-Assad não julga, muito menos condena seus personagens. Pelo contrário. O filme constata e expõe uma realidade. Duríssima, mas compreensível.

Exemplares de milhares de outros jovens que deram suas vidas nas ruas da Palestina ou em ações em Israel, Said e Khaled são as verdadeiras vítimas de uma história de violência praticada pelo Estado de Israel. Vítimas que, contudo, optaram por não se entregar ao martírio sem dar seu último grito por liberdade.
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