Após deixar a 81ª edição do Oscar com oito estatuetas (inclusive as de melhor filme e melhor diretor), o filme “Quem quer ser um milionário?” ganhou, definitivamente, ares de narrativa espetacular. Produzido com US$ 15 milhões, valor baixo para os padrões de Hollywood, o filme do diretor inglês Danny Boyle (“A praia” e “Cova Rasa”) conta a inebriante história de amor de Jamal (Dev Patel) e Latika (Freida Pinto), vivida numa amarga e miserável Mumbai, na Índia.

As primeiras cenas mostram a figura sofrida de Jamal Malik, um jovem de 18 anos que serve chá num centro de telemarketing, cara a cara com seu torturador, um policial inescrupuloso que tenta a todo custo arrancar uma confissão. Horas atrás, o rapaz torturado estava a uma pergunta do inacreditável prêmio de 20 milhões de rúpias (moeda indiana), entregue pelo programa de TV “Quem quer ser um milionário?” para o vencedor do disputado show de perguntas.

Ao responder corretamente a todas as perguntas, Jamal desperta a desconfiança do cínico e preconceituoso apresentador Prem Kumar (Anil Kapoor). O jovem estaria trapaceando? A suspeita de Kumar se baseia no seguinte questionamento: como é possível que um jovem pobre e sem estudos possa responder a perguntas que nem mesmo advogados e intelectuais conseguiram contestar? É a partir desse ponto que Jamal começa a contar a história de sua vida e a razão maior que o levou a participar do programa milionário.

Numa estrutura de volta ao passado, Jamal vai revelando como as respostas para todas aquelas perguntas estavam, de alguma forma, presentes em sua história de vida. Pouco a pouco, o interrogatório vai mostrando o caminho incrível e miserável trilhado pelo garoto. Ele e seu irmão mais velho, Salim, nasceram e foram criados numa abominável favela de Mumbai, onde os barracos se equilibram sobre fezes e montanhas de lixo.

Ainda crianças, tiveram a mãe assassinada num ataque contra mulçumanos e passaram pelas mãos de um explorador do trabalho infantil. Jogados num mundo desgraçado e violento, Jamal e Salim aprenderam a se virar sozinhos, mesmo que para isso fosse necessário roubar comida ou enganar turistas com histórias inventadas sobre o Taj Mahal.

Do real à fantasia
“Quem quer ser um milionário?” é, de fato, um conto de fadas. Mas não uma história inteiramente convencional. O primeiro mérito do filme é expor uma Índia completamente diferente da que é apresentada, por exemplo, no patético folhetim de Glória Perez, “Caminho das Índias”, da Globo. Na novela, o país asiático é mostrado com foco no “incrível” crescimento econômico dos últimos anos, sem mencionar, claro, que este é resultado de uma superexploração da mão-de-obra barata de milhões de trabalhadores.

O filme do diretor Danny Boyle, que chegou a ser comparado ao brasileiro “Cidade de Deus”, sob o aspecto da violência e da miséria, revela uma Mumbai de pobreza assustadora, onde mais da metade dos 19 milhões de habitantes vive, literalmente, em cima das próprias fezes. “Quem quer ser um milionário?” não esconde a maneira como a vida se desenrola para a maioria dos indianos.

Tragédias sociais e econômicas de toda a espécie surgem diante do espectador como um soco no estômago, trazendo à tona o contraste de uma Índia que cresce economicamente e, ao mesmo tempo, aprofunda a miséria de seu povo. É brutal perceber e impossível negar o horror da violência exercida pelos exploradores do trabalho infantil no filme.

Tudo isso não impede que a história tenha fortes traços dos contos de fadas. Há um grande apelo em torno ao destino das personagens, no estilo de “estava escrito nas estrelas”. Não faltam ao filme, também, intensas cenas de ação para prender o espectador, música dançante e sequências contagiantes. Além, é claro, de uma história de amor com final feliz e muito dinheiro no bolso.

Um dos pontos que mais suscitou críticas ao filme foi, justamente, o tratamento que o diretor deu ao modo como Jamal e Salim encaram sua miséria absoluta. Para alguns críticos, “Quem quer ser um milionário?” parece criar a imagem de que, por pior que seja a situação, os dois garotos não perdem as esperanças e insistem numa alegria de quem acredita que o destino guarda algum tipo de recompensa.

Outros críticos não suportaram a ideia de que Boyle fez um filme que fala de miséria e violência, mas sem as costumeiras lamentações e até bem-humorado. O jeito malandro que os meninos encontraram para sobreviver é capaz de arrancar risadas. A história até pode ser acusada de tentar suavizar o sofrimento, mas não de escondê-lo. A narrativa oscila entre a crueldade da vida indigente e uma alegre aventura pela sobrevivência.

Uma história improvável, mas bonita
“Quem quer ser um milionário?” é um filme otimista, verdade seja dita. Talvez contagiado pela onda esperançosa de algo que parecia impossível, a eleição de um negro para a Casa Branca. Um otimismo que, mais cedo ou mais tarde, vai acabar.
O perigo do filme é cair no erro de mostrar a história de Jamal como alternativa possível, e não como uma exceção. Há uma cena que, de certa maneira, demonstra isso. Quando Jamal está prestes a responder à última pergunta que lhe dará o prêmio máximo, os milhões de miseráveis e famintos da Índia, com os olhos vidrados na TV, se transformam nele. Todos querem ser o garoto (agora milionário), numa compreensão de que suas vidas só poderiam ser mudadas com um prêmio semelhante.

A participação no jogo de respostas, o “Show do Milhão” indiano, junta-se a outras fantasiosas formas de os oprimidos ascenderem socialmente. Em uma sociedade onde só lhes cabe trabalhar e receber o suficiente para retornar no dia seguinte, são muitos os jovens que sonham com carreiras milionárias através do futebol. O sucesso de Ronaldos, Ronaldinhos e outros jogadores é encarado da mesma maneira, como um caminho possível, viável. Mas, para a imensa maioria, a ilusão se desfaz logo e percebe-se que estes atletas são exceções, assim como Jamal.

“Quem quer ser um milionário?” é uma história improvável, para muitos impossível, mas nem por isso deixa de ser menos bonita.

Post author João Paulo da silva, de Maceió (AL)
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