O dia 4 de novembro, ao invés de “entrar para a História”, como havia prometido, colocando no ar o primeiro beijo gay da teledramaturgia, a Rede Globo preferiu acrescentar mais um capítulo ao seu currículo de desserviços prestados, no caso, a gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros (GLBT).

Há tempos, divulgava-se que o personagem Júnior (Bruno Gagliasso) e o peão Zeca (Erom Cordeiro) iriam emplacar um ardente beijo no final da novela América. A autora Glória Perez e a emissora não falaram em outro assunto durante dias. Contudo, o que se viu foi algo entre o patético e o fraudulento: depois de olhares apaixonados, o tal beijo foi interrompido por um corte brusco.

Esperado como final de Copa do Mundo, particularmente pela comunidade GLBT, o beijo que nunca existiu colocou em foco o debate sobre as relações entre as telenovelas e a sociedade brasileira e, particularmente, sobre a representação de gays e lésbicas no mais influente produto dos meios de comunicação de massa do país.

Muito barulho por nada, a não ser grana
Enquanto gays e lésbicas urravam de raiva (via internet ou em boates e bares que haviam programado festas para acompanhar a cena), os únicos que deveriam estar com amplos sorrisos nos lábios eram os donos da Globo e seus patrocinadores.
A promessa do beijo foi uma das principais responsáveis por ter feito com que o último capítulo de uma novela medíocre tenha batido todos os recordes, atraindo 70% da audiência.

`ArteDepois da fraude e diante da péssima repercussão da história, inclusive na imprensa internacional, a emissora e a autora entraram num jogo de empurra digno da novela de péssimo gosto que eles produziram. Glória jura que não vetou a cena e a emissora afirma que nunca recebeu o capítulo.

Ao que tudo indica, a partir do depoimento dos dois atores, a única coisa em que se pode acreditar de fato é que a cena realmente foi filmada.

Uma fraude cujo conteúdo e forma, diga-se de passagem, são totalmente condizentes com o desenrolar da novela. Baseada na colonizada idéia da busca da felicidade em Miami e no não menos colonizado universo country, a trama foi um show de futilidades e incongruências na narrativa. Símbolo da confusão que instaurou na história foi a perda de rumo dos protagonistas (os insuportáveis Tião e Sol, vividos por Murílio Benício e Deborah Secco), que praticamente desapareceram da trama.

A lógica do mercado, de novo
O beijo que nunca rolou tem muito a ver com essas dificuldades da novela. Na falta de uma boa história, a autora e a emissora apelaram a personagens e tramas secundários, além de uma série de “factóides”, numa tentativa de “esquentar” a audiência (e satisfazer os patrocinadores, que investiram pesado na novela, vendendo de tudo nos chamados merchadisings – cenas absurdas em que os atores viram vendedores de qualquer coisa).

Foi assim, por exemplo, com as cenas de uma falsa beata, de bailes funks de gosto pra lá de questionável, de um apelativo programa voltado para deficientes físicos e de uma alucinada ponte-área que fez com que Miami parecesse ter virado um bairro carioca.

O “suspense” em torno do beijo era a cereja desse bolo mal feito. A “polêmica” criada (ou fabricada) serviu para levar milhões para frente da TV no último capítulo. O desfecho, por sua vez, é mais uma demonstração da perversa lógica dos meios de comunicação nesta sociedade hipócrita.

Valeu tudo, vale o que quiser, só não vale…
Que novelas não podem nem devem ser retratos fiéis da realidade, é algo evidente. Até mesmo porque sua essência – e grande parte de seu poder – é tocar no imaginário do povo, seus sonhos e desejos.

Exatamente por seu enorme poder em influenciar tendências, e comportamentos (da moda à linguagem, passando pela divulgação de conceitos e preconceitos), as novelas, particularmente para uma sociedade onde a TV é quase a única opção de lazer para milhões, têm um enorme poder para ditar o que é “normal” ou não. E, conseqüentemente, poderiam cumprir um importante papel no combate aos preconceitos enraizados na população.

Nesse sentido, a “mensagem” final deixada pela Globo é lamentável. Meio que recriando os lamentáveis versos popularizados pelo saudoso Tim Maia – “vale tudo, vale o que quiser, só não vale dançar homem com homem, nem mulher com mulher” –, a emissora, movida por razões mercadológicas (a inegável existência de um público GLBT cada vez mais exigente) decidiu incorporar personagens homossexuais, roubando-lhes, contudo, o direito a uma vivência “normal” e plenamente digna.

Os homossexuais que têm espaço nas tramas são os gays e lésbicas que o mercado quer ver. Para patrocinadores das milionárias novelas é até possível admitir que casais homossexuais lindos, ricos e loiros sejam exibidos nas telas, já que eles podem ajudar conquistar a simpatia de consumidores em potencial, que tenham o mesmo perfil.

No entanto, também se tornou quase uma pré-condição que esses personagens sejam praticamente assexuados ou manifestem sua orientação sexual com tal “sutileza” que ela se torne quase imperceptível (eles jamais freqüentam locais GLBT).
O “caso América” também foi exemplar. Houve um momento em que a indecisão e as dúvidas do personagem Júnior (plausíveis na vida de qualquer homossexual) chegaram a criar a expectativa de que ele sequer fosse gay (ou pudesse ser “curado”).

É importante lembrar que, ao mesmo tempo que a representação de gays e lésbicas como gente “normal” é sistematicamente negada, todos os sábados, um detestável programa de humor, logo após a novela, da mesma Globo, coloca no ar um esteriótipo de gay destinado ao riso e ao achincalhe.

E pior: para justificar essa postura, não falta nunca quem venha com o lamentável argumento de que “o público ainda não está pronto para ‘esse tipo de coisa’ e que, principalmente, nesse horário, as crianças ainda estão na sala”. Haja hipocrisia!
É “normal” que as famílias (e suas crianças) convivam com assassinatos mirabolantes, com relações afetivas e sexuais travadas apenas por interesse e até mesmo com cenas “apimentadas” (e muitas vezes vulgares) de sexo heterossexual.

O que “não vale”, aquilo que o público jamais pode admitir como “normal”, é um simples beijo entre dois homens ou duas mulheres. Mais homofobia do que isso é difícil de se encontrar.

Protestar é preciso, mas não só isso
Diante de tudo isso, grupos do movimento GLBT estão se organizando para repudiar o corte da cena. No dia 8, durante Encontro Brasileiro de Gays, Lésbicas e Transgêneros, realizou-se um “beijaço” (promoção de um beijo coletivo). Ato semelhante ocorrerá também no dia 12, desta vez na portaria da Globo, no Rio de Janeiro.

Esses atos e as demais manifestações que possam ser feitas são mais do que bem-vindas. Contudo, cairão no vazio caso se limitem à denúncia, desvinculando-a da verdadeira e única luta que nós, gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros devemos travar para acabar com o preconceito e a discriminação e para que, de fato, sejamos tratados com a dignidade que desejamos: a luta contra o sistema capitalista e sua inata hipocrisia.

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