José Padilha passa o cargo de ministro a Arthur Chioro
Agência Brasil

O último dia 3 de fevereiro marcou a troca no Ministério da Saúde. Saiu Alexandre Padilha, ministro da Saúde desde o governo Lula e entrou Arthur Chioro, até então secretário municipal de Saúde de São Bernardo do Campo (SP).

Chioro é alvo de investigação do Ministério Público de São Paulo (MPSP) pois, além de comandar a pasta municipal, é dono de uma empresa da área que prestava consultorias para prefeituras petistas. A Consaúde Consultoria, Auditoria e Planejamento LTDA., que tem Chioro como sócio majoritário, manteve contratos sem licitação com várias prefeituras de São Paulo, incluindo administrações do seu próprio partido.

Tanto Padilha, no seu discurso de despedida, como Chioro no de posse, não pouparam adjetivos para elogiar a gestão da Saúde Federal nos últimos anos. Para termos uma ideia da falta de modéstia e de autocrítica dos petistas, Chioro classificou Padilha como o melhor Ministro da Saúde da história do Brasil e o Programa “Mais Médicos” como uma autêntica revolução na saúde pública. Ambos se colocaram como defensores incondicionais do SUS (Sistema Único de Saúde).

Os fatos, entretanto, não confirmam a enxurrada de autoelogios encontrada nos dois discursos, disponíveis no site do Ministério da Saúde. Neste texto, por motivos de espaço, vamos nos limitar ao balanço político das ações do ministro Padilha e do governo Dilma, a partir do final de 2011 até a atualidade.

1. EC 29: Um fracasso retumbante para o financiamento do SUS.
No final de 2011 foi votada a Emenda Constitucional 29, que tinha como objetivo regulamentar o piso de gastos federais com saúde. Este tema foi motor de muitas mobilizações dos ativistas e entidades em defesa do SUS, pois é público e notório que o Brasil ainda investe pouco em saúde pública.

A regulamentação de piso de gastos municipais e estaduais já existia há anos. A rigor, inclusive, muitos municípios ultrapassam bastante o piso de gastos (15% do orçamento municipal) previsto em lei. O ente federal, no entanto, gasta apenas 4% do seu orçamento com saúde. Havia uma esperança que fosse estabelecido um piso de 10% da receita federal para saúde, que continuaria a ser insuficiente, mas ainda assim significaria um aporte financeiro importante.

Esta esperança foi frustrada pelo governo Dilma. O piso de gastos federais foi retirado da EC 29, com apoio amplo dos partidos da base governista, inclusive daqueles que “enchem a boca” para defender o SUS. A votação da EC 29, transformada em lei complementar 141, foi aprovada por maioria e sancionada por Dilma no dia 13 de janeiro. Serviu para quase nada no que se refere ao financiamento da saúde pública.

2. O desrespeito ao controle Social:
O golpe de Padilha na XIV Conferência Nacional de Saúde

No final de 2011 reuniu-se a 14ª Conferência Nacional de Saúde, considerada momento fundamental do assim chamado “controle social do SUS”. Enquanto os 2937 delegados votaram teses progressivas contra a privatização da saúde, o ministro Padilha, que “democraticamente” também acumulava o cargo de presidente do Conselho Nacional de Saúde, deu um golpe na conferência, com apoio de parte minoritária dos delegados. Ele lançou a “Carta de Brasília” como se fosse outra versão das resoluções da Conferência,que iam contra as políticas do Ministério e do governo Dilma. Padilha, quando perdeu nas instâncias do Controle Social, não hesitou em jogar confusão nas resoluções tomadas. Este é o “melhor Ministro da saúde da história do Brasil”,nas palavras de seu sucessor.

3. EBSHER: A privatização da rede federal
Embora claramente repudiada pela comunidade universitária, a EBSHER teve em Padilha um dos grandes impulsionadores desta política privatista. A situação atual é que, dos 47 hospitais universitários do país, 23 já assinaram contratos para serem geridos pela EBSHER ou subsidiárias, muitas vezes em oposição frontal às mobilizações importantes de professores, funcionários e estudantes destes hospitais. A maioria destes contratos foi assinada entre novembro de 2013 e janeiro de 2014, aproveitando as férias das universidades.

Nos hospitais e institutos federais a agenda privatizante foi apresentada por Padilha e sua equipe como obrigatória e inegociável. Contudo, os servidores, professores e estudantes se enfrentaram duramente com o governo. Em várias instituições, boicotes, atos e ocupações forçaram o governo a recuar. Mas o aliciamento às direções destas instituições por parte do Ministério da Saúde segue nos bastidores.

É a forma petista de privatização da saúde pública, em disputa com o jeito tucano de privatizar, que prioriza as assim chamadas “Organizações Sociais”. Ambas primam pela precarização do trabalho, pela entrega de bens públicos para entidades privadas e por operarem dentro de uma lógica regida pelo mercado e contrária aos pelos princípios do SUS (Universalidade,Integralidade,Equidade e Participação Social).

4. Incentivo aos Hospitais Filantrópicos é ataque ao SUS
No ano de 2012 o Ministério da Saúde triplicou as verbas para os hospitais filantrópicos, de R$ 340 milhões para R$ 968,6 milhões. Este dinheiro poderia ter sido gasto no aparelhamento de serviços estatais e na implantação de um Plano de Cargos, Carreiras e Salários para os profissionais do SUS. Além disso, em 2013 foi firmado um pacto entre o governo e as entidades filantrópicas, de trocar dívidas por mais atendimento. Ou seja, do governo perdoar dívidas enormes destas entidades. Não custa lembrar que os hospitais e entidades filantrópicas já são favorecidos por várias isenções fiscais, dinheiro que o governo abre mão de arrecadar e que poderia engrossar o orçamento da saúde.

Este duplo favorecimento do sistema de entidades filantrópicas se configura em um ataque aos SUS. Como bem coloca o Manifesto da Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde: “Agora quando o SUS faz 25 anos, fazemos o balanço que os governos que se sucederam neste período favoreceram a mercantilização da saúde e a ampliação do setor privado na oferta de serviços de saúde no livre mercado e por dentro do SUS”.

5. Equívocos graves na Saúde Mental
No importante capítulo do atendimento à saúde mental, os erros foram se acentuando no decorrer dos anos da gestão Padilha. A política de criação de serviços substitutivos às internações psiquiátricas foi débil e inconsequente, criando um vazio que está sendo angustiante para os portadores de transtornos mentais severos e seus familiares. No terreno do atendimento aos usuários e dependentes de drogas a atuação do Ministério foi ainda pior, capitulando à pressão do discurso conservador e, principalmente, à política de “higienização social” das grandes cidades, com o incentivo às ditas “comunidades terapêuticas”.

Por trás do nome bonito, que remete a tratamento e atuação social, as comunidades terapêuticas são locais geridos por entidades religiosas ou ligados a políticos burgueses, que ocupam o vazio deixado pelo Estado, onde os dependentes ficam meses submetidos a “trabalho voluntário” e pregação religiosa, com pouco ou nenhum atendimento de equipes de saúde mental. Tudo isso com diárias pagas pelo Ministério da Saúde.

Para piorar, já dentro do SUS propriamente dito, o Ministério resolveu pagar mais (o dobro) pela diária da internação do dependente químico em comparação com a diária dos pacientes psicóticos, criando uma dinâmica objetiva de simples troca de enfermarias para psicóticos em enfermarias para dependentes. Como a criação de equipamentos substitutivos (CAPS e outros) foi débil, a situação dos portadores de transtornos mentais graves vem piorando.

6. A não aprovação do “Ato Médico”: Uma vitória incompleta
Após anos de tramitação no Congresso Nacional, foi votado o projeto do “Ato médico”, defendido pelas entidades corporativas médicas (conselhos estaduais e federal de medicina) e repudiado pela maioria das entidades representativas dos demais profissionais da saúde (enfermeiros, psicólogos, etc..). Provavelmente, como consequência do abalo de popularidade devido às mobilizações de junho, o governo Dilma corretamente vetou os artigos do projeto que interferiam na atuação dos demais profissionais de saúde.

Foi uma vitória do movimento, porém incompleta. O verdadeiro papel destes profissionais e sua valorização só ocorrerão quando houver contratação massiva destes pelo SUS, com salários e carreiras definidos por um plano nacional. 

Para piorar, a propaganda governamental em torno do Programa “Mais Médicos” incentiva a visão equivocada de que saúde se faz só com médicos, o que é um retrocesso de décadas em relação às concepções defendidas pelos formuladores originais do SUS.

7. SUS ou Sistema Nacional de Saúde?
Antes da crise aberta pelas mobilizações de junho, o governo Dilma flertava abertamente com a ideia de dar incentivos fiscais ou desoneração de impostos para massificar os planos de saúde privados para a “classe C”. O governo deixou vazar para a imprensa reuniões da equipe econômica com os empresários do setor.

 O Brasil já tem mais de 50 milhões de usuários de planos de saúde privados, seja individuais ou coletivos (de empresas/categorias profissionais). A quantidade de reclamações contra estes planos sobe exponencialmente. Basta lembrar os prazos de carência, das negativas de cobertura, da dificuldade de marcar simples consultas e agendar procedimentos como exames e cirurgias. Não é possível esquecer também da forma como despejam os casos mais caros de seus usuários, como os pacientes psiquiátricos,politraumatizados por acidentes, portadores de doenças crônicas, são todos impiedosamente transferidos para a rede pública, em boa parte das vezes sem nenhum ressarcimento.

Outra medida da gestão de Padilha para privilegiar ainda mais os empresários da saúde incluiu a mudança constitucional que abriu o mercado nacional para seguradoras estrangeiras. Esta medida possibilitou a venda da AMIL para capital estrangeiro. Também na área de saúde privada, a rede de laboratórios Fleury está sendo disputada por empresas internacionais. A entrada de capital externo na área de assistência à saúde vai dificultar ainda mais o já precário controle governamental sobre os planos de saúde e aumentará a pressão dos empresários pela desregulamentação do setor, deixando os usuários dos planos completamente fragilizados.

O flerte descarado com os planos de saúde foi deixado momentaneamente de lado, pois o governo resolveu colocar todas as suas fichas no Programa “Mais Médicos”, para tentar vencer as eleições de 2014 a nível federal e abocanhar alguns estados, particularmente São Paulo, aonde Padilha é o candidato de Lula-Dilma para buscar derrotar o PSDB.

Uma vez passada esta eleição, é possível que o governo volte a tentar aplicar a política de subsídios/isenções fiscais dos planos de saúde privados. Por isso falamos aqui em “sistema nacional de saúde”. Poderá ser uma forma de manter o SUS focalizado só para os muito pobres e o resto da população com os planos privados. Se o processo de privatização acelerado da saúde persistir nos próximos anos, esta hipótese, que hoje parece apenas ficção, vai se transformar em realidade.

8. Farra nos gastos com publicidade
O Ministério da Saúde aumentou seus gastos com publicidade em nada menos que 19,7% de 2012 para 2013, três vezes mais do que a inflação do período. Enquanto falta investimento para acabar com as mazelas nos equipamentos públicos de saúde, jorra dinheiro para fazer propaganda do Ministro. Alguma coisa a ver com as eleições de 2014?

9.Mais Médicos: a manipulação da opinião pública
De início, foi planejado para dar um tema de polarização eleitoral para as eleições para o governo de São Paulo, aproveitando a péssima gestão de Geraldo Alckmin (PSDB) na saúde do estado. Pressionado pelas ruas, o governo Dilma apostou todas as suas fichas neste programa, apresentado como uma “verdadeira revolução” na saúde pública.

Foi montada uma grande ação de marketing em conjunto entre o Ministério da Saúde e da Educação, com o intuito de convencer a população de que o governo federal atuaria em várias frentes ao mesmo tempo.

O programa parte de uma análise unilateral de que o principal problema da saúde pública é a falta e má distribuição geográfica dos profissionais médicos dentro do SUS. A proposta de solução do problema foi a abertura de milhares de bolsas de intercâmbio, no valor mensal de dez mil reais, para preencher a carência de profissionais nos rincões mais necessitados do país. Estas bolsas, com duração de três anos, poderão ser prorrogadas por mais três anos. Como os médicos brasileiros não se mostraram entusiasmados pela proposta, Padilha propôs “importar” médicos de outros países, particularmente de Cuba, que tem um superávit destes profissionais e exporta médicos para mais de setenta países.

Atualmente, há 6658 médicos bolsistas no programa, a ampla maioria de cubanos. Há mais 2891 profissionais em fase de treinamento.

O programa também se propôs a “revolucionar” o ensino de medicina no Brasil, abrindo escolas de medicina nas regiões mais carentes, ampliando para oito anos a duração do curso, para os estudantes terem mais tempo de contato com o SUS e aumentando as vagas para a residência médica. Em dezembro de 2013 o Ministério da Saúde publicou em seu site a lista de 49 municípios (em quinze estados) que poderão abrir novos cursos de medicina.

Esta abertura de vagas será essencialmente em instituições privadas. Atualmente a maioria das vagas para iniciar o curso de medicina já está nas faculdades pagas (56,6%). Estas entidades privadas já são muito elitizadas, formam médicos piores do que as universidades públicas e, se não forem muito lucrativas, correm o risco de repetir o que acabou de acontecer na Gama Filho do Rio de Janeiro que anunciou sua falência e deixou os estudantes que estão no meio do curso a ver navios.

O programa “Mais Médicos” é uma coleção de erros e manipulações da opinião pública. Em primeiro lugar, o diagnóstico de que faltam médicos é superficial. Faltam médicos assim como faltam uma série de profissionais como enfermeiros, psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas e um longo etc. Esta falta de profissionais está diretamente ligada ao baixo financiamento do SUS, que impede a fixação dos profissionais pela inexistência de um adequado Plano de Cargos, Carreira e Salários e também a quase inexistência de concursos públicos frequentes por RJU(regime jurídico único).

O baixo financiamento do SUS tem várias causas, mas certamente a principal delas é a política de gastar quase 50% do orçamento federal para o financiamento da dívida pública. Nestes onze anos de governo da frente popular petista, nenhuma ação de política econômica foi feita para modificar este descalabro.

A importação de médicos, essencialmente cubanos, está se demonstrando uma precarização dos direitos trabalhistas. Como são bolsas, vários direitos não são garantidos pelo programa. Para piorar, que paga estas bolsas é a EBSHER (privatização!). Para piorar ainda mais, os médicos cubanos estão ganhando na realidade apenas 400 dólares (mil reais), o resto fica para o governo cubano. Isto é ou não é precarização?

Outro aspecto é o da distribuição geográfica destes profissionais. Ao contrário do que defendiam os apoiadores do programa, a maioria dos médicos está sendo alocada nas grandes cidades. São Paulo e Minas Gerais estão entre os principais estados que estão recebendo estes profissionais, que podem ser encontrados nas regiões periféricas destas grandes cidades.

10. Enquanto Chioro tomava posse, servidores iniciavam greve no Rio
A gestão de Alexandre Padilha foi marcada por intensos ataques ao funcionalismo da Saúde Federal. Inicialmente, Padilha engavetou a já assinada equiparação da tabela da Saúde Federal ao Seguro Social, mantendo a categoria com a tabela mais defasada do Executivo Federal.

Ainda em 2012 promoveu uma verdadeira “caça às bruxas” dos servidores que possuíam mais de um vínculo empregatício. No ato da comprovação da compatibilidade dos vínculos, os R.H. das unidades emitiam declarações mentirosas de carga horária com 40 horas semanais, quando há mais de 30 anos os servidores cumprem 30 horas. Desse modo, muitos servidores foram obrigados a reduzir suas cargas horária e, consequentemente, seus salários. Ou ainda, pedir exoneração de um dos dois empregos.

Ao final de 2013,  forçou a implantação do ponto eletrônico. Mais do que um controle de frequência para os servidores da Saúde Federal, o ponto biométrico representará redução salarial, pois a jornada de trabalho aumentará em 10 horas semanais, sem aumento de salário. Tal medida poderá levar vários profissionais a sair do serviço, esvaziando o serviço público, prejudicando a população e preparando o terreno para a EBSERH.

A justificativa utilizada pelo governo para tais ataques é a moralização da saúde pública. O governo quer jogar sobre as costas dos trabalhadores da Saúde Federal a sua incompetência e impor a esses a perda de direitos. Estes ataques são necessários para que o governo cumpra seu compromisso com o capital internacional, associado a medidas como corte do orçamento de 2014 em mais de R$ 40 bilhões, a manutenção de isenções fiscais aos empresários e principalmente, a destinação religiosa de quase 50% do orçamento da União para o pagamento de dívida (interna e externa).

A greve da Saúde Federaé resultado daatuação desastrosa de Alexandre Padilha como gestor da força de trabalho do SUS.

11. Balanço da gestão de Padilha: A saúde pública continua caótica!
Os anos de gestão de Padilha no Ministério não foram nem sombra do balanço que ele fez em seu discurso de saída. A última pesquisa do IBOPE, feita em 727 cidades, aponta que a maioria (58%) dos brasileiros considera a saúde como o “mais grave problema do Brasil”.

A verdade é que a gestão de Padilha impôs uma série de retrocessos, tais como a ampliação da privatização da saúde pública, a não criação do Plano de Cargos,Carreiras e Salários para os profissionais do SUS, o crescimento dos planos de saúde privados (principalmente os de qualidade duvidosa), a precarização do trabalho, o desmantelamento dos equipamentos públicos, a deficiência crônica do financiamento da saúde, ataques ao funcionalismo da Saúde Federal, etc.

 Infelizmente, o discurso de posse do novo Ministro, Arthur Chioro aponta para continuidade destas políticas. Apenas a mobilização popular poderá alterar este rumo. Só a luta dos trabalhadores da saúde, em união com os trabalhadores e a juventude,em luta pelo SUS 100% estatal, público e de qualidade para assegurar o direito universal à saúde sob o real controle dos trabalhadores. Mas isto só será possível com a aplicação de no mínimo 10% do PIB para a saúde pública estatal e o fim das privatizações.

* Ary é da Secretaria Nacional de Saúde do PSTU e do Fórum Popular de Saúde de São Paulo. O artigo contou com a colaboração de Alessandra Camargo (RJ)