Mancha recebe homenagem durante julgamento da anistia
Redação

Há quem diga que a nossa vida é guiada pelos projetos de vida que estabelecemos, pelos planos que fazemos para nosso futuro e pelas escolhas que realizamos em função deles em nosso presente.

Mas a vida não é só isso. Também estamos num permanente processo de acerto de contas com o nosso passado. Perguntamo-nos a todo o momento se faríamos isso ou aquilo novamente e se as escolhas que fizemos valeram a pena. Antes de olhar para frente, examinamos o passado. Ninguém caminha adiante sem saber de onde veio.

Neste dia 8 de dezembro foi celebrado um desses acertos de contas com o passado. De um lado, o Estado brasileiro. De outro, um homem negro e operário, que não fez da sua condição de explorado e oprimido um pretexto para se resignar. Ao contrário, tornou-se socialista.

Seus antagonistas, que nunca nutriram simpatia por sua cor e condição social, em circunstâncias de aparente democracia, poderiam até tolerar suas apostas políticas. Mas, tornar-se socialista em plena ditadura, seria imperdoável.

Ficharam-no, monitoraram-no, aviltaram-no e perseguiram-no. As portas se fecharam. Fazia parte agora de uma seleta “lista” que foi batizada acintosamente com a cor das vítimas históricas, dentre as quais não espantaria se inscritos estivessem também seus avôs e bisavôs. Como disse o filósofo: a história se repete como farsa o que outrora foi tragédia.

No lugar de chibatas, pau-de-arara. Veraneios em lugar de caravelas. Se pego fosse, sua nova senzala seria o porão do DOPS.

Operário, negro e… socialista. Exemplos como esses não poderiam prosperar. “Insolente”, deve ter ocorrido a Romeu Tuma, há pouco homenageado por Lula,quando resolveu manter aquele homem na cadeia, mesmo quando todos seus pares já estavam liberados.

Tuma morreu. O regime ditatorial acabou, mas a classe que prendeu e torturou continua no poder. Pior, hoje absolvida por ex-exilados, ex presos políticos e ex-guerrilheiras, que, cada qual em seu governo, passaram de vítimas a principais responsáveis pela impunidade dos criminosos de Estado, que por sua vez não pouparam esforços em perseguir mesmo depois que as canetas da democracia prendiam tanto quanto as baionetas do exército.

Mas nem todos mudaram. Nem todos se arrependeram. Nem todos se curvaram.

Dia 8 de dezembro o Estado foi obrigado a prestar contas com um homem negro, operário e socialista. Através da anistia, o Estado pediu desculpas para um dos maiores dirigentes operários deste país. Mancha agora foi oficialmente reconhecido como perseguido pela ditadura militar.

Em seu discurso, mostrou outra vez que sua vida não é mais do que a continuidade de um projeto, que não é só seu, mas que fez dele um guia, um farol, diante do qual hoje é um de seus principais porta-vozes no movimento sindical.

Mancha não foi só receber sua anistia. Foi também prestar contas com nosso passado, com nossa história. Ele foi dar voz aqueles que ainda olham para o futuro como uma obra inacabada, como um livro que ainda não teve todos os seus capítulos escritos. Mancha foi dizer que enquanto os negros, mulheres e homossexuais continuarem oprimidos, enquanto os trabalhadores forem explorados, nenhuma democracia existirá de verdade. Sua anistia não provou que a democracia pôs fim a esses problemas. Mostrou apenas que a luta não acabou e que o projeto socialista permanece mais vigente do que nunca.

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