O filme brasileiro escolhido para disputar uma vaga ao Oscar de melhor produção estrangeira é “Última Parada 174”, de Bruno Barreto. O filme é baseado num episódio que ficou conhecido como o seqüestro do ônibus 174, que ocorreu no Rio de Janeiro, em julho de 2000. A desastrada e criminosa ação do Bope resultou no assassinato de uma refém, a professora Geísa Firmo, e do seqüestrador, Sandro do Nascimento (numa “lambança” semelhante ao episódio recente, com a menina Eloá).

Barreto afirma que seu filme foi inspirado pelo documentário “Ônibus 174” (2003), dirigido por José Padilha (mais conhecido pela direção de “Tropa de elite”). Até por isso, é impossível comentar o filme de ficção sem falar do documentário.
Representações distintas sobre uma tragédia em que se mesclam histórias de abandono, descaso social, racismo e a lógica assassina dos órgãos de repressão, os dois filmes, contudo, diferem em muito mais do que o fato de que um é “documentário” e outro “ficção”.

Na verdade, ao “recontar” a história com o sempre admitido objetivo da família Barreto de alcançar sucesso comercial, “Última Parada” produz uma versão que joga o grosso da história para o campo das tragédias pessoais. A ficção atribui o absurdo final da história de Geísa e Sandro a uma espécie de sucessão de erros causados (no filme) tanto pelo acaso quanto pela dura realidade que cercava a vida destes seres humanos transformados em personagens.

Baseado numa história real?
Pra começo de conversa, é necessário lembrar que as manifestações artísticas não podem ser avaliadas pela fidelidade ou não à realidade. Este não é um critério nem para documentários nem para filmes de ficção.

Ambos devem ser vistos como “discursos” ou reflexões sobre a realidade, sempre impregnados pela complexa e dialética relação que os diretores e artistas envolvidos numa produção mantém com a ideologia dominante e com a própria realidade.

Como exemplo, basta lembrar que documentários como os de Michael Moore (“Tiros em Columbine”, “Fahrenheit 9/11”) são muito mais reflexões sobre a “Era Bush” do que “relatos” sobre um tiroteio numa escola secundarista ou os atentados às Torres Gêmeas. Por sua vez bons filmes, inteiramente ficcionais (como “Blade Runner: o caçador de andróides, de Ridley Scott) nos dizem muito sobre a época em que foram produzidos e angústias do ser humano do que qualquer outra coisa.

No cinema, geralmente, este “discurso” fica evidente na própria estrutura do filme e nas escolhas feitas pelos diretores. Neste sentido, vale a pena lembrar as cenas que abrem e fecham os filmes de Barreto (e, depois, de Padilha) para entendermos melhor a que eles vieram e que tipo de reflexão propõem.

Crônica de uma morte anunciada
Neste sentido, não pode ser considerado como um “acaso” o fato de que a primeira imagem de “Última Parada 174” é a de uma “novela global”. Só depois vemos que a TV está num barraco imundo, onde uma mulher negra, completamente “chapada”, amamenta um garoto em meio a garrafas de bebida e baforadas de cigarro. Não demora muito, um traficante armado, invade o barraco e toma a criança.

Esse garoto, como saberemos depois, é Alessandro, um personagem fictício que, no decorrer do filme, vai servir como uma espécie de “irmão” do personagem “real”, o Sandro, que a câmera, depois de atravessar a “cidade maravilhosa”, localiza na negra e miserável cidade de São Gonçalo, onde o garoto assiste a própria mãe ser degolada no bar em que trabalhava.

A partir daí, o filme de Barreto acompanha a “via crucis” de Sandro – um dos sobreviventes do “Massacre da Candelária”, em 1993, quando sete meninos de rua foram mortos por “justiceiros”. O ritmo e o tom do filme são muito próximos aos das novelas. Tem um pouco de tudo: fugas mirabolantes, troca de identidade, romance e, até, momentos de crítica à injustiça social e às instituições.

Fiel ao que declarou quando do lançamento do filme, Barreto constrói “uma história humana, na qual o ônibus 174 é apenas o clímax”. Uma concepção que poderia ser considerada louvável se, no filme, o tal clímax não fosse apontado como uma lamentável sucessão de eventos dispersos e casuais, banalidades, que acabaram em tragédia.

Neste sentido, a seqüência que antecede o seqüestro é reveladora. No caminho para o ônibus, uma decepção amorosa, um copo quebrado, uma sirene do carro da polícia e muita cocaína detonam em Sandro o “monstro incontrolável” que o Brasil acompanhou pela TV nas intermináveis horas do seqüestro.

Como que num folhetim barato, Sandro caminha para seu “clímax”, como se conduzido por uma sucessão de coincidências e erros. Ele caminha para cumprir um “destino” pré-determinado do qual não poderia escapar, a não ser por pura sorte ou pela intervenção de “alguém” (um amor, uma mãe, um irmão, bem ao estilo das novelas).
Como todos sabem, a vida real foi bastante mais cruel. Geísa foi morta por um disparo infeliz de um soldado do Bope. Sandro foi covardemente asfixiado dentro do camburão. Todos os policiais envolvidos foram inocentados e meninos e meninas de rua continuam se multiplicando aos milhares, transformando-se, cotidianamente, em sujeitos e vítimas de todo o tipo de violência.

Pra além das câmeras
Com uma história como essa, nem mesmo Bruno Barreto poderia insinuar um final feliz. Mas a última imagem que vemos, reunindo mãe e filho há muito separados, parece ter a nítida intenção de deixar uma pontinha de esperança em meio ao desolamento de um cemitério.

O documentário de Padilha também tem a sua cena final em um cemitério. Contudo, em “Ônibus 174”, o que vemos é o caixão solitário de Sandro, carregado apenas pelo coveiro, e acompanhado por Dona Elza, que o havia adotado como filho.

O desolamento da cena faz ecoar as vozes de crianças de rua, que, no início do documentário, comentam, enquanto a câmera sobrevoa o Rio, “que não tem mais jeito de ser feliz”. Uma constatação que, como lembra Yvonne Bezerra, a assistente social que acompanhou boa parte da vida de Sandro, tem tudo a ver com a realidade. Das 62 crianças que sobreviveram ao Massacre da Candelária, 39 foram assassinadas nos anos seguintes e muitas estão desaparecidas.

Fruto da concepção de mundo de um cineasta que sempre teve o mercado como “parâmetro” (basta lembrar que são de Bruno Barreto filmes como “Dona Flor e seus dois maridos” e o particularmente ruim “O que é isso companheiro?”), “Última Parada 174” é um daqueles filmes que só precisa ser visto “nas entrelinhas” e o fato de ter sido escolhido para representar o Brasil na “corrida para o Oscar” fala muito mais sobre suas pretensões comerciais do que sua qualidade. Conseqüentemente, é bastante frágil como reflexão sobre um mundo em que histórias como as de Sandro e Geíza se repetem todos os dias.

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