`Violência é não ter comida`
Agência Cromafoto

Cartas do Haiti – 7º diaEste é o último dia inteiro no Haiti. Amanhã voltamos ao Brasil.

Durante a tarde, Batay Ouvriere planejou uma atividade com organizações de direitos humanos. Avisaram-nos que era provável que estivessem presentes, também, grupos e organizações que estão a favor da ocupação da Minustah e que polemizariam conosco.

A discussão foi numa grande escola de Porto Príncipe. Começou atrasada por uma tempestade tropical daquelas que já nos acostumamos aqui. Umas cem pessoas ouviram Toninho ler mais uma vez a Carta.

No debate que seguiu, Padre Joseph polemizou com os que defendem a presença da Minustah para combater a violência. Ele fala que a primeira violência é não ter comida, e o plano neoliberal sustentado pela Minustah fomenta a violência.

Um camponês denunciou o massacre de 139 pessoas em 1987 pelos latifundiários que nunca foi apurado. Nenhum partido burguês e nenhum governo se dispôs a enfrentar os mandantes do crime nesses vinte anos. Despediu-se de nós com uma saudação em vudu.

Várias intervenções do plenário atacaram as tropas. Esperamos, mas não apareciam os que defenderiam a ocupação.

Finalmente, já no apagar das luzes, toma a palavra uma historiadora. É uma das fundadoras do Partido Comunista haitiano e defende a presença das tropas até que existam as condições para a reorganização das forças armadas.

Toninho lhe responde que, se ocupação assegurasse a melhoria do país, o Haiti deveria ser o país mais desenvolvido do mundo. O que acontece é o oposto, o desastre é fruto das ocupações e das ditaduras pró-imperialistas que governaram nestes anos.

A discussão termina tarde. Saímos rápido, porque temos um compromisso cultural de primeira ordem em nossa última noite no Haiti: conhecer o vudu. O pai de Raquel Dominique, a representante de Batay Ouvriére, que esteve recentemente no Brasil, é o principal sacerdote vudu do país e nos convidou para uma apresentação.

A cultura negra haitiana gira ao redor do vudu. Daí vem a dança e a música, assim como uma parte importante de suas tradições culturais. Parte do vudu é a religião, mas apenas parte, porque todo o restante é a base da cultura haitiana.

O vudu foi parte importante da resistência dos negros na luta contra a escravidão e pela independência. Faziam reuniões para organizar a luta, camufladas pela celebração religiosa. A reunião que organizou a primeira grande revolta negra em 1791 foi realizada por Burckman, um negro gigantesco, nos arredores de Le Cap, numa cerimônia vudu.

Como toda religião, o vudu também foi utilizado pela classe dominante, como por Papa Doc, que a usou amplamente para atemorizar a população. Para qualquer um que possa imaginar que isso é uma expressão do atraso cultural dos negros, basta lembrar a utilização que o capitalismo mais avançado, os EUA, fazem da religião judaica para sustentar Israel.

Max Bouvoir tem os cabelos brancos, um porte altivo e um jeito encantador. Gegê, professor de São Paulo e também negro, lhe pergunta sobre a imagem que se difunde do vudu, com bonecos sendo espetados com agulhas para fazer mal às pessoas. Max ri e diz que isso só existe em Hollywood, que é uma invenção do imperialismo. Fui confirmar essa informação com vários haitianos que me responderam a mesma coisa: não existe nada no vudu que tenha a ver com isso. Trata-se de uma mentira grosseira para demonizar a cultura negra haitiana.

As roupas usadas lembram muito o candomblé no Brasil. Todos e todas de branco, as mulheres de saia rodada com babados. Tudo se passa ao redor de uma grande árvore, como todas as cerimônias vudu. Os tambores tocam em ritmo acelerado. O canto e a dança começam, para celebrar Simbi Ogum, divindade das águas, como no Brasil.

O enredo conta uma história, que vem desde a África. Mostra a travessia nos navios negreiros e sua chegada. Depois, o trabalho escravo. Em creole, eles cantam de forma ritmada: “não entendo como Deus não entende como eles nos humilham”. Depois: “no dia em que ficaremos com cólera, vomitaremos em cima deles o nosso sangue”.

Aí aconteceu o que no candomblé brasileiro conhecemos como a incorporação de um espírito. Aqui no vudu, o “espírito” é o despertar da consciência, o nascimento de um líder para a luta. A mulher roda ao redor da árvore. Lenços são colocados em seus braços, um facão em sua mão.

Já estamos vendo o vudu de forma completamente diferente. Caiu por terra mais uma mistificação branca e preconceituosa, a serviço da dominação contra os negros. O vudu é uma cultura rica e está sendo usada, novamente, como forma de resistência de um povo, agora contra a ocupação da Minustah.

Os tambores enchem os ouvidos de um ritmo forte e envolvente. Rachel , dirigente do Batay Ouvriére, dança no meio das mulheres de branco. De repente, nos convida para dançarmos também. Logo toda a delegação está dançando, alguns mais desajeitados, outros que entram com facilidade nos passos do vudu.

Depois da dança, Gegê fez um agradecimento emocionado em nome da delegação, como um negro brasileiro. Max Bouvouir, o maior sacerdote vudu do Haiti, o abraçou e cantou “ibosé” (irmãos). As mulheres e homens de branco vieram nos abraçar cantando “ibosé”.

Última noite no Haiti, melhor impossível.