Ando novamente pelas ruas de Porto Príncipe. O povo haitiano parece ter esquecido o terremoto de dois anos atrás. Passam ao lado de casas destruídas e nem olham mais. Mas basta conversar com eles para ver que as feridas continuam abertas. Cada família pobre daqui tem um morto, um mutilado.

Esse povo tem uma história brilhante. A única revolução de escravos vitoriosa de toda a história da humanidade, a primeira revolução anticolonial das Américas. Exatamente por isso, foi condenado pelo imperialismo a um esmagamento brutal por dois séculos, que levou a espantosa miséria atual.

Uma luta operária em preparação
Falo em uma reunião de operários têxteis. Estão preparando uma marcha no dia 7 de outubro, em defesa de um salário mínimo de 200 gourdes.

Essa foi a reivindicação da grande greve de 2009, que parou as indústrias têxteis do Porto Príncipe (principal setor industrial do país) por duas semanas. Foi uma greve radicalizada, com passeatas diárias que reuniu entre 10 a 15 mil pessoas por dia. Terminou com uma repressão duríssima das tropas da Minustah, comandadas por soldados brasileiros, que mataram duas pessoas e prenderam outras 22.

Com a derrota da greve, se impôs a manutenção do salário de 125 gourdes naquele ano, que seria elevado gradualmente até 200 em 2012. Nem isso foi cumprido: eles ainda ganham 150 gourdes por dia, um salário que equivale a R$ 142 reais por mês. Agora, vão à luta novamente.

Como os haitianos veem as tropas brasileiras
Falo para eles como o governo do PT convenceu o povo brasileiro de que a missão das tropas da Minustah é “humanitária”. Olham surpresos. Os soldados atuam aqui como uma tropa de ocupação. Reprimem as greves, estupram as mulheres.
Não existiu nenhuma atuação das tropas na educação, na construção de esgotos, na assistência médica desde que Lula mandou os soldados brasileiros ocuparem o país em 2004 a pedido do governo Bush.

Tampouco existiu uma ação real no socorro às vítimas do terremoto. As tropas se dedicaram a guardar os quartéis e não a salvar os feridos. Os haitianos tentavam retirar os atingidos pelos desabamentos com as próprias mãos sem nenhuma ajuda. Toda a “operação de resgate internacional” foi um gigantesco fiasco, com o dinheiro indo parar nos bolsos corruptos dos governantes. Morreram 250 mil pessoas, e foram resgatadas só 150.

Em julho do ano passado, um garoto haitiano de 16 anos foi estuprado por dois soldados uruguaios em uma das bases. Outro soldado filmou o estupro e o vídeo acabou vazando na internet. Apesar da denúncia comprovada, nenhum dos soldados foi punido.

A “reconstrução”
Estive em Porto Príncipe alguns meses depois do terremoto. Todas as praças da cidade tinham se transformado em acampamentos, com centenas de milhares de pessoas em barracas improvisadas. Depois, com o passar dos meses, os acampamentos viraram favelas permanentes.
Agora passei novamente pelas mesmas praças, que estão vazias. Pergunto aos haitianos o que aconteceu. Dizem que as barracas foram incendiadas e os moradores expulsos pelo governo. Estão abrindo novos acampamentos em locais junto as fabricas das novas Zonas Francas para onde essas pessoas estão sendo empurradas. Assim podem ir a pé para o trabalho.

O Palácio presidencial, destruído pelo terremoto, seguiu da mesma maneira por mais de dois anos. Agora foi enfim derrubado para ser reconstruído.

A volta de Baby Doc ao governo
Os haitianos falam da situação do país. O presidente Martelly foi eleito em abril do ano passado. Na eleição, só podiam concorrer candidatos a favor da ocupação militar. Martelly foi um cantor popular que se elegeu com uma campanha de denúncia dos “políticos que roubavam o país”. Logo que tomou posse, mostrou sua verdadeira face: um representante do Plano Clinton, o guia econômico que rege o país.

Martelly não tem qualquer preocupação em disfarçar seus objetivos. Tem o apoio explícito de Baby Doc, filho de François Duvalier, o famoso Papa Doc, talvez o ditador mais sanguinário de toda a história da América Latina. Papa Doc governou o país entre 1951 até morrer em 1971, quando seu filho assumiu o poder. Baby Doc foi derrubado pelo povo haitiano em 1986, e retornou no ano passado.

Martelly é estreitamente ligado a Baby Doc. O filho dele, Nicolas Duvalier, é um assessor especial do presidente. A Minustah garante a base militar de um governo duvalierista.

O plano Clinton em ação
A miséria haitiana ajuda a enriquecer a alguns. Aqui se produz têxteis (jeans da GAP, Levi’s e Wrangler) para o mercado norte-americano. Estão implantando Zonas Francas em todo o país.

Pagam um salário que é quase um quinto do mínimo brasileiro, menos da metade do salário pago na China (equivalente a R$ 320). Essas fábricas no Haiti produzem para o mercado dos EUA a uma distância seis vezes menor que o Brasil, onze vezes mais perto que a China.

Ou seja, para as multinacionais instaladas no país, “ajudar o Haiti” rende muito dinheiro. Mas, para garantir que o povo aceite essas condições, é preciso ter muitos soldados, de preferência brasileiros, uruguaios, bolivianos.

Aba Minustah!
Em outubro, se renova o mandato das tropas da ONU da Minustah que continuará ocupando o país sob o comando do exército brasileiro. Em 15 de outubro vai haver uma marcha em Porto Príncipe pela retirada das tropas.
Todos os ativistas brasileiros devem apoiar a pichação que vi escrita nos muros de Porto Príncipe: “Aba Minustah!” (Fora Minustah!).
Post author Eduardo Almeida Neto, da redação
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