1 – Alguns elementos fundantes.
Antes de mais nada, quero deixar claro que estou entre aqueles que acham que a água deve ser um instrumento de paz entre os povos e não de guerra. Estou também entre aqueles que querem resolver, de uma vez por todas, os problemas básicos de fome, sede e pobreza enfrentados por grande parte da população do semi-árido. Nosso semi-árido, com seus 900 mil km quadrados, com aproximadamente 20 milhões de habitantes, mas com um dos índices de desenvolvimento humano mais baixos de todo o planeta quer uma saída, busca uma saída e tenho a convicção que nós estamos construindo essa saída.

Antes de entrar propriamente no assunto quero me referir a três fatos pessoais que estão relacionados com a questão do São Francisco.

Primeiro, eu trabalhei durante 12 anos dentro do Rio São Francisco. Conheço bastante o rio até por uma vivência pessoal.

Segundo, tenho uma fotografia em casa da inauguração da cisterna nº 1 do PIMC. Esses dias, por um acaso, revi a foto. E me chamou a atenção que entre nós está o Ministro Sarney Filho inaugurando a cisterna. Ao fundo, corre o rio São Francisco. O simbólico dessa foto é que, há pouco mais de mil metros do rio, se aquela família quis ter água de qualidade para beber, teve que fazer uma cisterna de captação de água de chuva.

Em terceiro, esse debate – já me referi em um artigo que pus na Internet – me parece um prolongamento da conversa que tivemos com Lula e outras pessoas na caravana dele pelo São Francisco em 94. Conversando sobre o futuro rio, falávamos a ele sobre a situação de decadência progressiva do rio. A mídia pressionava para que se pronunciasse sobre a transposição. Então, num gesto de ímpeto, afirmou: “Se eu ganhar essa eleição, formo uma comissão de alto nível e se esse projeto (disse outra expressão) for viável eu gasto não um, mas dois, mas três bilhões se forem necessário”. Hoje Lula é presidente e quer fazer a transposição.

2- A Transposição no contexto da “Crise Planetária da Água”.
Não se pode falar da transposição do São Francisco sem falar na “crise planetária da água” e como o Brasil se inseriu politicamente nessa crise. No planeta 1,2 bilhões de pessoas não têm acesso à água potável e 2,4 bilhões não têm coleta de esgotos. Essa crise deriva da relação da humanidade com a natureza e, se essa relação não for revertida, a crise da água torna-se progressiva e em 2050, tendo 9bilhões na face da terra, 40% da humanidade não terá acesso à água potável.
O Brasil detêm 12% das águas dos rios do mundo em seus rios, mas têm grande abundância de águas subterrâneas e é o único país de dimensões continentais no qual chove em todo território. Em volume de água somos o país mais rico de água doce do planeta.

Entretanto, 20% da população brasileira não têm acesso a água potável, 40% das águas das nossas torneiras não tem cofiabilidade, 50% de nossas casas não têm coleta de esgotos e 80% dos esgotos coletados são jogados diretamente nos rios. Esse descaso faz com que 70% dos rios brasileiros estejam contaminados de alguma forma. Portanto, o Brasil atual tem abundância de água em termos quantitativos e problemas sérios do ponto de vista qualitativo.

No contexto brasileiro o Nordeste fica com a menor porcentagem das águas brasileiras: O Norte com aproximadamente 70%, o Centro Oeste com 15%, o Sudeste com 6%, o Sul com 6% e o Nordeste com 3%.

Olhando a realidade planetária e brasileira, o texto base da Campanha da Fraternidade de 2004 – que nos oferece todos esses dados acima citados – vai afirmar que a “crise planetária da água” não é fruto da natureza nem um castigo de Deus, mas fruto da ação humana sobre a natureza. Enfim, a crise da água faz parte da crise civilizatória mais ampla, que ameaça o planeta como um todo, nesse caso a água. Se existe um escasseamento progressivo da água ele é fruto da eliminação dos mananciais (escassez quantitativa), da poluição dos mananciais (escassez qualitativa) e da escassez social (apropriação particular de um bem que é de todos). O problema da água é planetário e todo manejo da água nos tempos atuais exige um cuidado rigoroso, sob pena de agravarmos mais ainda uma realidade que já é dramática. Ousar transpor o São Francisco sem um cuidado rigoroso com o gerenciamento das águas pode até ser um crime contra todo o povo brasileiro, não apenas contra a natureza.

Olhando a distribuição natural de nossas águas em nosso território podemos ser induzidos a crer que há escassez de águas no Nordeste. Entretanto, se observarmos detalhadamente a distribuição de nossas águas por estado, vamos ter surpresas até chocantes. Segundo os padrões da ONU assim se classificam os países ou uma comunidade segundo a disponibilidade de água por habitante:

2.1 – Classificação de disponibilidade da água segundo a ONU (1997)

Estresse de água inferior a 1.000 m3/hab/ano
Regular 1.000 a 2.000 m3/hab/ano
Suficiente 2.000 a 10.000 m3/hab/ano
Rico 10.000 a 100.000 m3/hab/ano
Muito rico mais de 100.000 m3/hab/ano.

2.2 – Disponibilidade hídrica social e demandas por estado no Brasil.

Estados Potencial hídrico
Km3/ano População
habitantes Disponibilidade hídrica social
M3/hab/ano Densidade População
hab/Km2 Utilização total
M3/hab/ano Nível de utilização
1991.
RO 150,2 1.229.306 115.538 5,81 44 0,03
AC 154,0 483.593 351.123 3,02 95 0,02
AM 1.848,3 2.389.279 773.000 1,50 80 0,00
RR 372,3 2.131 1.506.488 1,21 92 0,00
PA 1.124,7 5.510.849 204.491 4,43 46 0,02
AP 196,0 379.459 516.525 2,33 69 0,01
TO 122,8 1.048.642 16.952 3,66
MA 84,7 5.22.183 16.226 15,89 61 0,35
PI 24,8 2.673.085 9.185 10,92 101 1,05
CE 15,5 6.809.290 2.279 46,42 259 10,63
RN 4,3 2.558.660 1.654 49,15 207 11,62
PB 4,6 3.305.616 1.394 59,58 172 12,00
PE 9,4 7.399.071 1.270 75,98 268 20,30
AL 4,4 2.633.251 1.692 97,53 159 9,10
SE 2,6 1.624.020 1.625 73,97 161 5,70
BA 35,9 12.541.675 2.872 22,60 173 5,71
MG 193,9 16.672.613 11.611 28,34 262 2,12
ES 18,8 1.802.707 6.714 61,25 223 3,10
RJ 29,6 13.406.308 2.189 305,35 224 9,68
SP 91,9 34.119.110 2.209 137,38 373 12,00
PR 113,4 9.003.804 12.600 43,92 189 1,41
SC 62,0 4.875.244 12.653 51,38 366 2,68
RS 190,0 9.634.688 19.792 34,31 1.015 34,31
MS 69,7 1.927.834 36.684 5,42 174 0,44
MT 522,3 2.235.832 237.409 2,62 89 0,03
GO 283,9 4.514.967 63.089 12,81 177 0,25
DF 2,8 1.821.946 1.555 303,85 150 8,56
BRASIL 5.610,0 157.070.163 35.732 18,37 273 0,71

3 – O Mito da Escassez
Se observarmos detalhadamente esse quadro da disponibilidade de águas no Brasil, veremos que alguns mitos caem por terra diante de números bastante elementares. Um deles é o mito da escassez de água. O cálculo da disponibilidade de água é simples, bastando dividir o volume de água disponível pelo número de habitantes. Portanto, alguns estados podem ter mais volume de água, porém, com uma densidade populacional maior, tem menos água disponível por pessoa. Pode ser o contrário, isto é, estados com muita água disponível e pouca densidade populacional, como é o caso dos estados da região Norte. Observando os dados, o estado brasileiro com menos água disponível por pessoa é o Pernambuco, com uma média de 1270 m³/pessoa/ano, portanto, 270 m³ acima do nível de estresse. Podemos observar ainda que estados nordestinos como Piauí, Ceará e Bahia têm mais água disponível por habitante que estados do Sudeste, como São Paulo e Rio de Janeiro. Exceto Paraíba e Pernambuco, todos os estados nordestinos têm mais água que o Distrito Federal. Um cidadão do Piauí tem 4,15 vezes mais água que um paulista, 4,19 vezes mais que um carioca e 5,90 vezes a água de um habitante do Distrito Federal. Um cearense tem 1,03 mais água disponível que um paulista e 1,46 vezes mais que um habitante do Distrito Federal. Um baiano tem 1,30 vezes mais água que um paulista, 1,31 mais água que um carioca e 1,84 vezes mais água que um habitante do Distrito Federal.

Nesse raciocínio é importante prestar atenção na água já sendo utilizada. O Rio Grande do Sul já utiliza 34,31% de suas águas. Pernambuco mais uma vez aparece em níveis preocupantes, porque já utiliza 20,30% de sua água disponível. Paraíba e São Paulo também já utilizam 12% de suas águas disponíveis. Os especialistas afirmam que, quando 20% da água já está sendo utilizada, impõe-se um gerenciamento rigoroso, sob pena da situação tornar-se caótica.

Para confirmar surpresas e derrubar mitos, é interessante olha o balanço hídrico dos estados brasileiros em ordem de classificação descendente.

Classificação Estado Volume disponível por pessoa por ano em m³.
1 RR 1.506.488
2 AM 773.000
3 AP 516.525
4 AC 351.123
5 MT 237.409
6 PA 204.491
7 RO 115.538
8 GO 63.089
9 MS 36.684
10 RS 19.792
12 TO 16.952
13 MA 16.226
14 SC 12.653
15 PR 12.600
16 MG 11.611
17 PI 9.185
18 ES 6.714
19 BA 2.872
20 CE 2.279
21 SP 2.209
22 RJ 2.189
23 AL 1.692
24 RN 1.654
25 SE 1.625
26 DF 1.555
27 PB 1.394
28 PE 1.270

Se compararmos a disponibilidade de água por habitante no Brasil com os países mais pobres em água, teremos uma idéia mais clara ainda do que significa esta realidade:

Os onze países mais pobres em água
País Disponibilidade m3/hab/ano
Kuwait praticamente nula
Malta 40
Qatar 54
Gaza 59
Bahamas 75
Arábia Saudita 105
Líbia 111
Bahrain 185
Jordânia 185
Singapura 211
União dos Emirados Árabes 279
FONTE: Margat, 1998

Por isso, não é possível entender a transposição do São Francisco fora do contexto político, histórico e social do semi-árido brasileiro, fora do contexto de construção de poder das elites dominantes, isto é, não há como entender a transposição fora do contexto da indústria da seca. Para sustentar a industria da seca é preciso sustentar de qualquer forma o mito da seca.

4 – O Projeto de Transposição
Esse projeto é muito antigo e remonta os tempos do Império quando D. Pedro afirmou ser necessário vencer as jóias da coroa para resolver o drama da fome e da sede vivenciado pelos nordestinos. Várias vezes posto na pauta e várias vezes adiado, volta com o governo Lula. Entretanto, examinado mais a fundo, o projeto não se sustenta. Se o projeto fosse efetivamente viável, não haveria quem fosse contra.

Como diz o Professor João Abner Costa, um dos homens mais críticos do projeto, existe um “projeto de fantasia” e outro “projeto real”. O projeto de fantasia está sendo difundido para a população e chega a ter uma cartilha popular. Por ele oito milhões de pessoas serão beneficiadas, 300 mil hectares serão irrigados, serão gerados um milhão de empregos e o “problema da seca estará resolvido”. O projeto prevê o abastecimento de quatro Estados – Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte – e hoje ainda se fala na inclusão do Piauí. Essa fantasia, divulgada por cartilhas, rádio e TVs, chegou ao povo e criou uma expectativa que quase impede o debate em busca de saídas reais para o semi-árido.

Entretanto, examinando o “projeto real”, tudo indica que entre os oito milhões de beneficiados estão cidades como Recife e Fortaleza (cidades do litoral e não do semi-árido), além de Campina Grande e Caruaru, essa última uma cidade do agreste, não do semi-árido. Examinando ainda mais detalhadamente, o projeto atinge apenas 5% do semi-árido brasileiro, sendo que os 95% estão fora de seu alcance. A água do projeto destinada à chamada população difusa é de apenas 4% . A conclusão de João Abner é simples: “mesmo que fosse perfeito, o projeto não resolveria o problema básico da população difusa, exatamente aquela que mais sofre com a falta de água”.

Portanto, para repetir o pré-conceito do senso comum brasileiro, a transposição não resolve o “problema da seca”. Ele ainda afirma que cidades como Campina Grande, que tem problemas reais de abastecimento, teriam outras saídas muito mais próximas e mais viáveis para resolver seus problemas urbanos. Recife tem problemas sérios de abastecimento, mas tem um péssimo gerenciamento, sendo que os poços tubulares abastecem prédios particulares e a água não é lançada na rede para um gerenciamento coletivo. Fortaleza tem um índice de desperdício de 60% antes da água chegar às torneiras . Sem falar nos impactos ambientais na bacia do São Francisco, sem falar nos custos dessa água até chegar à população, sem discutir quem fará a manutenção do sistema e bancará com seus custos, a obra já está orçada em U$ 6,5 bilhões – porque agora já se pensa na conexão da bacia do Tocantins com a do São Francisco – e exigirá pelos três governos consecutivos para ser implantada. Diante de tantas obras gigantescas e inacabadas no semi-árido – Canal da Redenção, Castanhão, etc –, ou semi utilizadas como o “Canal doTrabalhador”, é de se perguntar se uma obra dessa chegará ao fim. Mais ainda, é preciso se perguntar quem serão os beneficiados reais. Sem dúvida, empreiteiras, políticos, talvez irrigantes, ganharão. Mas sendo assim, chega ser uma perversidade levar ao povo um projeto de fantasia do qual ele pouco se beneficiará.

Diante do “projeto real”, João Abner afirma simplesmente que “o Rio Grande do Norte não precisa das águas da transposição. Essa água já está no Rio Grande de forma muito mais barata. É questão de gerenciar as águas locais” .

Essas observações preliminares e elementares demonstram que a transposição é uma obra da lógica da “indústria da seca”. A industria da seca, em resumo, sempre significou a construção do poder político e do patrimônio particular da elite nordestina a partir de grandes obras destinadas a resolver o “problema da seca”. Nessa lógica, é necessário manter o mito da seca e as grandes obras que envolvem grandes investimentos. Entretanto, pela disponibilidade de água nos estados e pela pluviosidade da região semi-árida, não há como sustentar o mito da seca. Caindo o mito da seca, cai a industria da seca e cai a transposição como solução. Como dizem os críticos de forma rotineira nos debates sobre a transposição: “é uma falsa solução para um falso problema”.

A saída está na lógica da convivência com o semi-árido, que é uma lógica em construção. Ela parte de um outro diagnóstico da realidade semi-árida. É o que veremos a seguir.

5 – O que é o semi-árido?
O semi-árido brasileiro não é só clima, não é apenas vegetação, não é apenas solo, sol ou água. É povo, é música, é festa, é arte, é religião, é política, é história, é processo social. Olhá-lo apenas por um ângulo, fatalmente, será um olhar equivocado.

O semi-árido brasileiro tem uma abrangência de 867.999,3 km². Nele residem 18.466.637 pessoas, sendo que 9.835.806 na área urbana e 8.630.691 na área rural. É o semi-árido mais populoso da face do planeta.
A pluviosidade do Semi-Árido é, em média, 750 mm/ano, portanto, o mais chuvoso do mundo.

Seu subsolo é constituído em 70% por rochas cristalinas, rasas, o que dificulta a formação de mananciais perenes e a potabilidade da água, normalmente salinizadas. Num contexto como esse, os estudos técnicos indicam a captação da água de chuva como uma das saídas mais simples, viáveis e baratas para se viver bem nessa região. Comentaremos à frente essa saída.

Essa é uma região de déficit hídrico. Essa expressão técnica não significa falta de chuva ou de água, mas que a chuva que cai (precipitação) é menor que a água que se evapora. No Semi-Árido brasileiro, como nos dizem os técnicos, a evaporação é de 3.000 mm/ano, numa proporção de três por um (3×1), isto é, a evaporação é três vezes maior que a precipitação. Por conseqüência, o jeito de agasalhar a água de chuva é fundamental para seu aproveitamento.

Uma outra característica da região Semi-Árida é a variação no tempo e no espaço das chuvas. Não há um período fixo para chover, nem um lugar certo. O período chuvoso pode ir de Setembro a Março, mas nunca se sabe o dia e nem o lugar que vai chover. Essa variação de tempo e espaço dificulta, mas não impede, a boa convivência com o semi-árido.

A cobertura vegetal do Semi-Árido é a caatinga, expressão indígena que quer dizer “mata branca”. No período chuvoso ela está verde e florida, abrigando uma das maiores biodiversidades brasileiras de insetos, inclusive a abelha, o que a torna extremamente favorável para a produção de mel. Entretanto, no período normal de estiagem, ela hiberna, parecendo seca, adquirindo uma aparência parda, daí seu nome de caatinga, “mata branca”. Porém, quando volta a chuva, acontece uma espécie de ressurreição. O que parecia morto ressuscita. O que estava seco, reverdece. A vida brota como que do nada, como que das cinzas. Enfim, o Semi-Árido tem praticamente apenas duas estações: a das chuvas e a sem chuva.

É importante salientar que existem vários semi-áridos pelo planeta. Entretanto, nem um deles tem a pluviosidade do brasileiro, nem sua extensão, nem sua densidade populacional. Também, em nenhum deles as condições de vida são tão precárias como aqui. Evidentemente, não é um problema da natureza, é uma questão política, social e cultural.

Entretanto, a imagem difundida do semi-árido brasileiro é a das crianças raquíticas, do solo estorricado, dos açudes secos, dos retirantes nas estradas, dos animais mortos, da migração da Asa Branca. O que há de verdade e o que há de imaginação sobre essa realidade?

É possível também olhar nosso Semi-Árido em comparação com outras regiões do território nacional, principalmente no que diz respeito às suas águas. O Brasil, que tem aproximadamente 12% da água doce do planeta em nossos rios, tem ainda parte das águas internacionais da Amazônia, abundância de águas no subsolo e abundância de chuvas. Nossa água, entretanto, sofre de uma distribuição desigual no território nacional. O Norte tem cerca de 70% de nossas águas; o Centro-Oeste 15%; o Sul 6%; o Sudeste 6% e o Nordeste 3%. Entretanto, segundo os padrões da ONU, nem mesmo o estado mais pobre de água por pessoa do Brasil, o Pernambuco, está na faixa da escassez. O Pernambuco tem uma disponibilidade média de água por pessoa/ano na ordem de 1270 m³. O índice da ONU para atingir o estresse é abaixo de 1.000 m³/pessoa/ano. Portanto, não é falta de água, é questão de ter acesso a essa água aqui disponível.

6 – A convivência com o Semi-Árido
A imagem difundida do semi-árido, enquanto clima, sempre foi profundamente distorcida. Vendeu-se a idéia de uma região árida, não semi-árida. É como se não chovesse, como se o solo estivesse sempre calcinado, como se as matas estivessem secas e as estiagens durassem anos. A imagem dos migrantes, dos retirantes, dos acossados pela seca, povoaram e povoam a música (Luís Gonzaga), a pintura (Portinari) e a literatura (João Cabral de Mello Neto, Graciliano Ramos, etc). O que é real e o que é construção ideológica nessa visão? Essa é uma das questões mais difíceis de ser respondida, mas que pode ser respondida. Há um novo conceito a respeito do semi-árido que está em gestação, é a chamada “convivência com o semi-árido”.

A chamada convivência com o semi-árido parte de um princípio muito simples: por que os povos do gelo vivem bem no gelo, os povos do deserto vivem bem no deserto, os povos das ilhas vivem bem nas ilhas e a população da região semi-árida vive mal aqui? É porque esses povos desenvolveram uma cultura de convivência adequada ao ambiente em que vivem, adaptaram-se a ele e tornaram a vida ali viável. No semi-árido essa integração pessoa humana e natureza não encontrou uma solução adequada, fazendo com que o ser humano esteja sujeito às variações normais de um clima semi-árido. O segredo da convivência com o semi-árido está em compreender como o clima funciona e adequar-se a ele. Não se trata mais de “acabar com a seca”, mas de adaptar-se de forma inteligente ao ambiente. Por outro lado, é preciso interferir no ambiente, respeitando as leis de um ecossistema frágil, porém, com riquezas surpreendentes.

O consenso é que o segredo da convivência com o semi-árido passa pela “água de chuva”. Parece contraditório falar em água de chuva numa região onde dizem que não chove. Na verdade o semi-árido brasileiro é o mais chuvoso semi-árido do planeta, com uma média de chuva de 750 mm/ano. Dentro da região a pluviosidade varia, indo de 250 mm/ano até 800 mm/ano. Essa pluviosidade, mesmo sendo irregular tanto no tempo como no espaço, acontece. Essa quantidade de água de chuva, aliada às águas de superfície – principalmente o São Francisco e o Parnaíba – e águas de subsolo, faz com o que o semi-árido brasileiro seja uma região perfeitamente viável para a vida humana.

Então, de onde vem a imagem de um sertão seco e agressivo ao ser humano? Como é possível construir o mito da seca se realmente vemos as cenas dos retirantes cravadas nas fotos, músicas, pinturas, filmes e reportagens?

A resposta vem nas características do que seja o clima semi-árido, particularmente o brasileiro. É a chamada região de déficit hídrico. Não significa que não chove, mas que a precipitação (chuvas) é menor que a evapotranspiração (evaporação + transpiração). Para termos uma idéia, enquanto chove a média de 750 mm/ano, evapora-se três vezes mais do que chove, devido à insolação e incidência dos ventos. Quanto mais extensa a superfície de um reservatório, quanto mais raso o reservatório, mais sujeito estará à evaporação. Em síntese, a água de chuva armazenada nos reservatórios a céu aberto, perde-se rapidamente, surgindo as imagens do solo estorricado, rachado e seco. A água já esteve ali, agora não está mais. As pessoas e animais que tinham acesso a essa água, agora já não dispõem mais dessa água. Então os animais morrem. As pessoas morrem ou migram. Os artistas captam essas imagens e as divulgam. Os políticos pedem auxilio federal para os retirantes da seca. Usam esses recursos para fazer seu patrimônio pessoal ou de suas empresas. Constroem grandes obras em nome do povo que estarão secas novamente por evaporação. Sustenta-se assim, ao infinito, a indústria da seca.

A primeira lei da convivência com o semi-árido, então, é a captação inteligente da água de chuva. Essa prática é milenar e o próprio povo de Israel a pratica desde os tempos bíblicos. A abundância de água em território brasileiro fez com que esse recurso fosse praticamente abandonado. Essa água precisa ser captada para consumo humano, consumo animal e agricultura. Entretanto, como vimos acima, não basta armazenar essa água se permitirmos que ela se evapore. É trabalho e recurso perdido. Os reservatórios de água da região semi-árida precisam evitar ao máximo a evaporação.

Para consumo humano um pedreiro sergipano inventou uma tecnologia que está dando certo em toda a região semi-árida e que agora está extrapolando os seus limites. São as chamadas cisternas familiares para captação de água de chuva para consumo humano. Esses reservatórios de forma ovalada, com metade de suas dimensões encravadas no chão, construídos ao pé das casas, colhem a água de chuva dos telhados através de calhas ao redor dos telhados e despejam diretamente dentro das cisternas. Ovaladas, fechadas, não permitem a entrada de luz, nem a evaporação, nem a transpiração. Desta forma, a água depositada ali durante os períodos chuvosos,– lembrar que chove 750 mm/ano na região – fica guardada para os períodos em que normalmente não chove. A famílias que até então não dispunham de água potável para seu consumo, agora passam a possuí-la.

O impacto na qualidade de vida das famílias é imediato. Todas as doenças veiculadas por águas contaminadas deixam de existir. Diminuem a mortalidade infantil e o sofrimento de pessoas com saúde mais frágil, principalmente os idosos. Além do projeto de inúmeras ONGs, pastorais sociais, paróquias, etc, agora existe o projeto “Um Milhão de Cisternas” (P1MC) da Articulação do Semi-Árido Brasileiro (ASA). Ele visa construir um milhão de cisternas em cinco anos, abastecendo 1 milhão de famílias, ou seja, 6 milhões de pessoas.

Entretanto, sabemos que água para o consumo humano não basta. É preciso garantir o trabalho, a renda, a segurança alimentar dessas famílias. Daí a necessidade de utilizar a água de chuva também na produção de alimentos. Algumas tecnologias já estão disponíveis, como as mandalas, as barragens subterrâneas e os barreiros de salvação. Mas é necessário mais pesquisa para que essas tecnologias sejam universalizadas ao máximo. Entretanto, não são necessárias apenas novas tecnologias. É necessário um profundo processo pedagógico, educativo, que acompanhe o implante dessas tecnologias difusas, casa a casa, família a família. Enfim, a convivência com o semi-árido é também uma revolução cultural, com conseqüências políticas absolutamente previsíveis. Por isso ela é temida e sofre a resistência da classe política nordestina, viciada em construir seu poder político e seu patrimônio particular a partir da industria da seca.

O futuro do semi-árido passa por esse embate entre as lógicas da “industria da seca” e da “convivência com o semi-árido”. Quando essa lógica triunfar, não haverá mais espaços para obras megalômanas como a da transposição do rio São Francisco.