Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

No dia 6 de maio, a busca pelo baiano Thadeu Nascimento, que havia desaparecido dois dias antes, acabou tragicamente no Instituto Médico Legal de Salvador.  Quando parentes e amigos encontraram seu corpo, o impacto e a dor foram inomináveis: ele havia sido estuprado, espancado e morto com tiros na cabeça. O motivo? Têu, como era conhecido, era um homem trans e negro.

Infelizmente, Têu, que tinha 24 anos, entrou para a macabra estatística que coloca o Brasil à frente de todos os demais países do mundo quando se fala em assassinatos de LGBT’s. Uma realidade ainda mais brutal e freqüente quando ele ou ela é um (a) transexual ou travesti. E pior ainda, se isto é possível, quando o racismo e o machismo se mesclam com a história.

Segundo dados do Grupo Gay da Bahia (GGB), da Rede Trans Brasil e da Transgender Europe (TGEU, uma rede europeia de organizações que apoiam os direitos da população transgênero), somente em 2016, no mínimo 343 gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais ou transgêneros foram assassinados no Brasil, um número 22% maior do que em 2015 (vide gráfico abaixo). Dentre eles, 144 (42%) eram homens e, principalmente, mulheres trans e travestis. E um forte indício de que este ano será ainda pior é o fato de que até o momento já foram registrados 117 assassinatos, praticamente um por dia.

E vale lembrar que, de acordo com o próprio GGB, este número é imensamente menor do que a realidade, já que a morte de LGBTs é tão (ou ainda mais) invisibilizada quanto nossas vidas; seja pela omissão dos próprios familiares e amigos, seja pela ação da polícia e demais órgãos de (in) segurança ou do próprio Estado, que não faz nenhum esforço concreto para registrar estas mortes.

Para se ter uma ideia de até onde estes números podem chegar, basta citar os dados que foram colhidos em 2012 no “Relatório sobre a Violência Homofóbica” feito a partir das ligações do Disque 100, criado para receber denúncias de LGBTfobia. Somente naquele ano, foram 3.084 denúncias de agressões (físicas ou psicológicas) e violações de direitos, envolvendo 4.851 vítimas (o que significou 27,34 denúncias por dia e um aumento de 166% em relação a 2011).

É por isso que podemos dizer que o assassinato de Têu é um exemplo lamentável de uma “crônica de uma morte diariamente anunciada”. Uma situação diante da qual não podemos nos calar. Uma história na qual temos que colocar um ponto final.

“Sou feito de amor, principalmente de amor próprio”
Esta foi a última frase que Têu deixou em sua página no Facebook e segundo todos que conviveram com ele, seu amor próprio e seu orgulho se estendiam a outros trans, particularmente os chamados “pré-T” (ou seja, aqueles que ainda estão utilizando hormônios ou estão em fase de transição), com os quais ele trabalhava em projetos de orientação e aconselhamento.

Apesar de ter compartilhado o mesmo triste destino de tantos outros (as) transexuais e travestis, Têu tinha consciência de que sua vida era um tanto distinta da maioria deles. Algo que ele havia conquistado graças, em grande medida, ao seu engajamento político e social.

Por exemplo, estava empregado (como vendedor em uma loja de informática) e estudando para ser cabeleireiro. Uma situação bastante rara para uma população que quase nunca consegue romper as barreiras da marginalização e do desemprego crônico, o que, segundo, Associação Nacional de Travestis e Transexuais, faz com que para quase 90% deles(as) a prostituição seja a única possibilidade de sobrevivência.

Eide Paiva, dirigente da Liga Brasileira de Lésbicas (LBL), com quem Têu compartilhava tanto a militância quanto o culto à religião dos Orixás, o definiu como alguém “de fé, do trabalho e da luta”, que estava se preparando para fazer um ciclo de debates sobre transfobia e lesbofobia na casa em que atuavam e outros terreiros na região.

Em uma declaração publicada em sua rede social, Eide sintetizou de forma comovente o significado da morte de seu amigo, irmão e companheiro: “Têu Nascimento, homem trans negro, meu irmão de santo, neto da minha mãe de santo. Acabei de saber que ele foi violentamente estuprado, assassinado pela transfobia na noite de ontem. (…) Sua juventude foi roubada logo cedo no jogo duro da desigualdade, onde o racismo e sexismo o transformaram em escravo do sistema, mas não lhe tiraram o riso largo, a capacidade de sonhar e lutar pelo seus ideais. Agora recebo essa notícia triste. A transfobia ceifou a vida do meu irmão, e eu choro por ele, por mim, por nós…”.

Brasil: campeão de ódio, discriminação e mortes
O Departamento de Polícia Técnica da Bahia divulgou uma nota afirmando “não ter informações sobre a motivação” do assassinato de Têu. Uma declaração que é pra lá de irritante. É odiosa exatamente porque todos sabem as razões do crime covarde.

Em janeiro passado, a Rede Trans Brasil divulgou, em parceria com o TGEU, um dossiê intitulado “A geografia dos corpos das pessoas trans” analisando vários aspectos da vida de travestis, transexuais e transgêneros. O relatório evidencia que o Brasil não só é o campeão em assassinatos motivados pela transfobia, como também ocupa a posição com larga margem de “vantagem” em relação ao segundo e terceiro colocados; respectivamente, o México, com 52 homicídios (42% da média brasileira) e os EUA, com 23 casos registrados no ano passado.

Contabilizando o período entre 1º de janeiro de 2008 e 30 de setembro de 2016, o estudo revelou que 1768 pessoas trans foram assassinadas nas Américas Central e do Sul. E, mais uma vez, nosso país supera todos os demais: deste total, 900 eram brasileiros (as).

Além de constatar que mais da metade dos homicídios de transexuais do mundo ocorre no Brasil, uma pesquisa feita pelo “Trans Respect Versus Transphobia World Wide” (Respeito Trans contra a transfobia ao redor do mundo) também apontou que a possibilidade de uma pessoa trans ou travesti ser assassinada é 14 vezes maior do que um gay.

E por mais que saibamos que todo crime cometido contra LGBTs é cercado de uma violência brutal, o caso de Têu é mais um exemplo de outra característica asquerosa nas mortes de travestis e transexuais: a crueldade e perversidade com a qual os assassinatos são cometidos.

O gráfico abaixo, publicado no jornal baiano “Correio”, é lamentavelmente significativo em relação a isto. Dos (as) 144 mortos no ano passado, mais da metade foi vitimada por uma violência proporcional à discriminação e ao preconceito que os cercam esta comunidade em particular. São expressões bárbaras de puro ódio e da vontade de fazer com que as pessoas sofram de forma desesperadora. Trans e travestis são majoritariamente assassinados (as) a facadas (as chamadas “armas brancas”), asfixiados, enforcados, espancados, carbonizados e/ou mortos a pauladas.

Por fim, Têu, Andressa, Piu, Melissa, Dayana (todos mortos no último ano) são exemplos de como o racismo se mescla com a LGBTfobia. Afinal, vivemos num país onde um jovem negro, seja qual for sua orientação sexual ou identidade de gênero, já tem 159% mais chances de ser morto do que um branco. Como também sabemos que a situação se agrava ainda mais quando se considerarmos o machismo que também afeta as mulheres trans.

O resultado disto tudo também pode ser traduzido em números assustadores: no Brasil, de acordo com o IBGE, uma travesti, em média, morre antes de chegar aos 35 anos, o que é menos da metade da expectativa de vida dos(as) brasileiros em geral (75,2 anos).

Golpeados pelo governo e pelo sistema
Hoje, não faltam aqueles que apontam os números mais recentes para apoiar a tese de que vivemos num momento ultra conservador, característico de um países onde houve um “golpe”. Contudo, a realidade, também em relação aos LGBTs, joga contra esta tese.

Todos os dados apresentados nos gráficos acima não deixam dúvidas de que, apesar de todo blá-blá-blá e de algumas medidas pontuais (que, mesmo assim, raramente saíram do papel), a história dos governos petistas foi acompanhada por uma escalada dos crimes LGBTfóbicos.

Como também é impossível omitir que o número de assassinatos teve um salto significativo particularmente depois de 2011, quando Dilma Rousseff e seu vice Michel Temer assumiram o poder. Evidentemente, há vários fatores que influenciaram nesta história, a começar pela crise econômica que faz com que a burguesia alimente ainda mais os discursos opressivos para, assim, poder explorar ainda mais negros(as), LGBTs e mulheres. Por exemplo, não é um acaso que, desde 2008, mais e mais gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis têm sido jogados para os serviços terceirizados, o desemprego e para longe do acesso à moradia, à saúde e à educação.

Contudo, a cumplicidade dos governos petistas com os crimes contra LGBTs começa exatamente por aí. Ao defenderem e aplicarem a fundo os planos neoliberais e governarem para os banqueiros, patrões e latifundiários, tanto Lula quanto Dilma em muito contribuíram para manter os LGBTs à margem da sociedade e dos direitos.

Dilma, em particular, colocou ainda mais lenha nesta fogueira inquisitorial ao ter utilizado nossos direitos como moeda de troca para seus acordos e negociatas no Congresso Nacional, particularmente com a chamada “bancada fundamentalista”, fornecendo ainda “combustível ideológico” para alimentar os discursos de ódio.

Para começar, é preciso lembrar que, para chegar ao poder ao lado de seu odiado vice, Dilma foi buscar a benção dos fundamentalistas com a “Carta ao povo de Deus” que, longe de ser uma defesa da liberdade religiosa, era um “manifesto” em defesa da família tradicional (considerada um “sagrado” “baluarte da sociedade” contra “o caos”) e um compromisso de que o governo nada faria em relação ao aborto e os direitos LGBTs.

Uma promessa que foi paga com a entrega de nossos direitos, principalmente nos momentos em que o governo começava a se ver ameaçado pelas denúncias de corrupção. Ainda em maio de 2011, Dilma vetou o kit anti-homofobia (basicamente três curta-metragens acompanhadas por cartilhas) que poderia ser um importante instrumento de combate à LGBTfobia no interior do sistema escolar, lamentavelmente uma das instituições mais responsáveis pela propagação das ideologias opressivas.

O veto foi feito depois que os parlamentares da bancada evangélica ameaçaram convocar o então ministro da Casa Civil (e atual presidiário) Antonio Palocci para que ele explicasse a fabulosa evolução de seu patrimônio durante o período em que esteve no poder. Se a negociação por si só já não fosse uma vergonha, a justificativa dada por Dilma chegou a ser criminosa. Demonstrando um completo distanciamento da comunidade LGBT, a presidente qualificou o material de “inadequado” por fazer “propaganda de opções sexuais” (este, sim, um termo completamente inadequado para se referir à orientação sexual ou identidade de gênero)

O descalabro foi tamanho que até a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), que sempre apoiou o governo, se viu obrigada a emitir uma nota dizendo que “os direitos humanos de um determinado segmento da sociedade não podem, jamais, virar moeda de troca nas negociações políticas”.

Três anos depois, Dilma, o PT e seus aliados assumiram novamente o papel de cúmplices da violência contra LGBTs ao cederem à pressão dos fundamentalistas e corruptos e engavetarem o PLC 122, que criminalizaria os atos de discriminação ou preconceito de gênero e orientação sexual.

Queiram ou não admitir, o que Temer e seus atuais aliados têm feito é “simplesmente” aprofundar aquilo que já foi iniciado pelo PT. É verdade que o ex-vice de Dilma tem atuado com muito mais violência e é inegavelmente mais racista, machista e LGBTfóbico do que o governo anterior. Contudo, como já afirmamos, o que o move não é um “golpe” contra as instituições democráticas, mas, sim, a necessidade (da burguesia brasileira e de todos agentes do capitalismo) de oprimir mais para explorar. E o fato de que tenha sido o PT que lhe aberto o caminho não pode ser “esquecido” ou menosprezado.

Vidas LGBTs importam!
Como resposta ao assassinato de Têu (como também de Henrique Assis das Neves, Leo Moura, Samayelle e Claudio Ferreira, todos eles baianos mortos recentemente), os grupos LGBTs de Salvador convocaram uma série de atos para esta semana, a maioria deles sob um lema inspirado no movimento norte-americano que tem se levantado contra a morte de jovens negros naquele país: “Vidas LGBTs importam”.

O primeiro aconteceu no dia 10 de maio. No dia 11, a partir das 8h da manhã, iria ser realizada uma passeata entre a Secretaria de Segurança Pública e a sede da Governadoria. E, no dia 12, sexta, às 18 horas, haverá mais uma manifestação, desta vez no Rio Vermelho.

Os (as) organizadores(as) dos atos também estão destacando que estamos a menos de uma semana do Dia Internacional de Combate a LGBTfobia, 17 de maio, data que celebra a retirada, há apenas 27 anos, da homossexualidade do Código Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial da Saúde. Uma medida inegavelmente importante, mas, como a triste realidade comprova, em muito pouco reverteu o ódio aos (às) que possuem orientação sexual ou identidade de gênero diferentes da heterossexualidade, tida como “normal”, “sadia” e “moralmente aceitável”.

O PSTU se solidariza com os familiares, amigos e companheiros(as) de Têu e demais mortos e considera que é fundamental que, cada vez mais, estes protestos se generalizem. É preciso que o povo LGBT, que protagonizou importantes lutas nos últimos anos (contra Cunha, Malafaia, Feliciano etc.), se levante a cada morte até que não tenhamos mais que lamentar pela destruição da vida e dos sonhos de tantos e tantas.

Algo que, na nossa opinião, só será possível quando, aliados a todos (as) oprimidos(as) e explorados(as) criemos um mundo igualitário e justo. Um mundo onde, pra além de termos a iguais condições políticas, sociais e econômicas, tenhamos plenos direitos para “sermos diferentes”. Um mundo que, na nossa opinião, só poder ser um mundo socialista.

E esta é uma luta que começa aqui e agora. Por isso, também, é importantíssimo que no dia 24 de maio, quando ocuparmos Brasília contra as reformas trabalhista e previdenciária, também levantemos as bandeiras do arco-íris contra a violência LGBTfóbica.

Basta de transfobia!

Chega de mortes!

Fora com todos os opressores e exploradores!