Fotos: Romerito Pontes

 

Queria ter pegado as fotos de recordação da família e de quando a gente era mais novo.” Mais do que a casa ou suas roupas, o que Drielly Silva, 18 anos, lamenta ter perdido é o álbum de fotos. Mas ele, assim como a história de vida de outras 600 pessoas do subdistrito de Bento Rodrigues (MG), está soterrado num mar de lama nessa que foi a maior tragédia humana e ambiental já ocorrida no país.

No final da tarde de 5 novembro, uma quinta- -feira, a barragem de rejeitos do Fundão se rompeu, despejando 55 bilhões de litros de lama tóxica. Sem qualquer esquema de emergência providenciado pela mineradora Samarco, os moradores do subdistrito foram pegos de surpresa pela enxurrada destruidora. “Quando eu vi aquela água toda descendo, foi um desespero”, lembra Drielly. Ela e os vizinhos conseguiram subir num caminhão que passava por ali naquele momento. Nem todos conseguiram. Sua prima de 5 anos morreu soterrada pela avalanche de rejeitos, e o tio é um dos desaparecidos.

Oficialmente, a tragédia deixou um saldo de sete mortos e 12 desaparecidos. Mas esse número pode ser ainda maior, já que a mineradora faz de tudo para esconder os fatos. “Primeiro, disseram que não havia ninguém trabalhando na barragem no momento do rompimento, só depois tiveram que admitir que havia operários lá”, relata Valério Vieira, do Metabase Inconfidentes. O sindicato exigiu a lista dos trabalhadores que estavam na barragem quando ela se rompeu, mas a Samarco se recusou a fornecer.

Enquanto fechávamos essa edição, a lama de rejeitos chegava ao mar do Espírito Santo. No caminho de 700 quilômetros, um rastro de morte e destruição que atravessou o Rio Doce num crime ambiental que pode deixar marcas para sempre na natureza e em centenas de moradores para os quais Bento Rodrigues sobrevive apenas na memória.

Vidas soterradas

Os corredores estreitos estão cheios de crianças. O som da televisão ligada se mistura às conversas e ao barulho da cozinha. É hora do almoço numa das pousadas de Mariana que hospedam os desabrigados de Bento Rodrigues. Afeitos à vida no campo, às suas casas com hortas e criações, os moradores da vila soterrada pela Samarco sobrevivem em quartos minúsculos.

Minha casa tinha couve, manga, laranja, bananeira, tinha tudo”, lamenta dona Benedita Gonçalves, de 76 anos, maior parte deles vividos em Bento Rodrigues em sua casa de sete cômodos. De aparência frágil, sua fala tremula num fio de voz. “Na hora que estourou a barragem, eu estava me preparando pra ir à igreja, meus netos me puxaram e eu saí arrastada de lá, nem olhamos pra trás”, conta.

Acostumada à vida na roça, dona Benedita sente falta das galinhas e dos cachorros. Tímida, diz que é analfabeta e pede desculpas pelas “palavras erradas”. Seus olhos marejam. “Quando encaro alguém, meus olhos enchem de água”, tenta desconversar, rindo, não querendo reconhecer que chorava.

Maria das Graças, 57, também trabalhava na roça. “Custei a conseguir minha casa e agora fiquei sem ela, e depois a gente vai morar num lugar que não vai ser como era”, diz. Maria foi avisada do rompimento da barragem por telefone pelo namorado da filha. Conta que vai sentir falta dos vizinhos e dos amigos. “A gente era tudo unido, tinha os irmãos da igreja, que sou evangélica, e a gente congregava todos os dias”, lembra.

Vai sentir falta de Maria das Graças Celestina, sua vizinha. “Tudo o que ela precisava fazer, ela me chamava”, diz. Maria das Graças é uma das vítimas que perderam a vida em Bento Rodrigues. “Seu corpo não foi achado até hoje, é uma tristeza muito grande. O filho dela tinha acabado de se casar”, lamenta.

Marlene Ezequiel Serra, 54, nasceu no subdistrito, mas se mudou para Mariana quando se casou. Já aposentada e com o marido debilitado por um derrame, voltou à vila para se dedicar integralmente aos cuidados do companheiro. Sentada na cama da pousada, chama o marido para se sentar junto a ela. “Era uma vida muito tranquila, principalmente pra ele, não precisava nem sair de casa”, conta segurando as mãos do companheiro.

“Teve uma época, há alguns anos, que falaram que a barragem estava trincada, e todo mundo correu pra dentro da igreja”, lembra. Mas como nada aconteceu, todos voltaram às suas casas. A Samarco, por sua vez, sempre disse aos moradores que “não havia nenhum risco”. “Mas a gente tinha medo”, confessa Marlene.

Agora, sem nada e confinados nos pequenos quartos de hotel o dia todo, os moradores apenas esperam. O sonho de Adrielly, de estudar engenharia química, teve de ficar suspenso. Já dona Benedita tem esperanças mais modestas, mas que não sabe se vai conseguir. “Queria uma vida melhor que essa aqui, pelo menos pro fim da minha vida”.

 

Bento Rodrigues
Um cenário de destruição e morte
O subdistrito de Bento Rodrigues, a 35 quilômetros do centro de Mariana, era uma vila cercada por mata, cachoeiras e plantações, banhado pelo rio Gualaxo. Sua beleza natural atraía alguns visitantes. A vila tornava-se cada vez mais conhecida por uma especialidade: a geleia de pimenta biquinho. Um povoado habitado por gente simples que vivia em comunidade.
Hoje, Bento Rodrigues não existe mais. A enxurrada de rejeitos da barragem do Fundão destruiu e soterrou as 200 casas que formavam o vilarejo. A tragédia causada pela mineradora Samarco transformou aquela cidadezinha num amontoado de lama e destroços.
Uma viagem ao inferno
A equipe do Opinião Socialista visitou o subdistrito após o fim da barreira policial que restringia o acesso à área. Porém, por mais que se tivesse notícias e relatos da proporção daquela tragédia, ninguém poderia estar preparado para imagens tão desoladoras.
É possível se aproximar da vila apenas de carro. Após determinado ponto, só a pé. A lama, coberta por uma película azul prateada de minério de ferro, é traiçoeira. Algumas partes já estão relativamente sólidas, mas outras ainda estão encharcadas e é muito fácil afundar. Enormes poças avermelhadas se espalham pelo terreno acidentado. Relatos dão conta de que os corpos encontrados após a tragédia estavam num estado muito deteriorado. Já voluntários que resgatavam animais afirmaram que, ao puxarem os bichos da lama, a pele ficava. Não é de se estranhar, já que entre os produtos químicos utilizados no processo da mineração está soda cáustica.
O rio Gualaxo que passava ao lado do povoado se transformou num pequeno córrego marrom avermelhado, o qual é possível atravessar a pé. As margens, porém, viraram dois barrancos íngremes que é preciso escalar antes de chegar ao centro da vila.
Ultrapassada a ribanceira, o centro do que um dia foi Bento Rodrigues se revela. Casas destruídas, árvores caídas e carros cobertos por lama ou acima dos destroços compõem um cenário de filme pós apocalíptico. Um forte odor de carniça se mistura ao cheiro de terra molhada por toda a área.
Em meio à destruição, brinquedos jazem sobre os arbustos ou fincados na lama. Alguns cães correm a esmo e latem, como que guardando o que havia sido as casas de seus donos. A devastação é total.
Por entre o que restou das casas, algumas pequenas surpresas. Um vaso de flor ainda pendurado à parede. O retrato antigo de um casal no que restou de uma parede. Sutis, mas emocionantes sinais de humanidade em meio à barbárie causada pela ganância do capitalismo.
Entenda
O que são rejeitos?

Para extrair o minério, a camada de solo que fica na superfície é retirada e, então, a parte rochosa é cavada pela mineradora. As rochas são dinamitadas e trituradas, gerando um pó fino composto por sílica, argila e o minério. Água e produtos químicos são adicionados a esse pó, incluindo amido de milho, para dar liga, e soda cáustica, para separar o minério.

O rejeito é tudo o que sobra desse processo. Grande parte dele é água. Daí seu aspecto molhado. As mineradoras definem alguns lugares em vales, entre as montanhas, para despejar esse rejeito. No último período, com o aumento da produção mineral, aumentou também o rejeito. “Todos os trabalhadores sabiam que as barragens já estavam saturadas”, afirmou ao Opinião um ex-trabalhador que atuava nas barragens da região.

Após negar que houvesse perigo em outras barragens, a Samarco teve de admitir que as barragens de Germano e Santarém corriam risco de romperem.

Em Minas, há 450 barragens. O órgão federal responsável pela fiscalização, o DNPM, tem quatro funcionários para abranger todo o estado. Na prática, a fiscalização se resume a um carimbo dado pelo órgão numa fiscalização fajuta feita pela própria empresa.

 

Leia a Parte 2: A mineração e a recolonização do Brasil

Leia a Parte 3: A maior tragédia ambiental do país

Programa: Propostas para a mineração brasileira