Ocupação da sede da Funarte foi um marco na história da luta dos trabalhadores da arte. Apesar de seu fim, a mobilização continuaNesta segunda-feira, 1° de agosto, o Movimento dos Trabalhadores da Cultura está deixando o prédio da Funarte, em São Paulo, pondo fim à ocupação de seis dias. Os trabalhadores da cultura escreveram um dos capítulos mais combativos e belos na história recente da luta em defesa da arte e da cultura neste país.

Durante a semana que se passou, o Portal do PSTU acompanhou momentos da ocupação e entrevistou alguns de seus participantes e apoiadores.

Longos ensaios e um roteiro para a luta
O técnico teatral e ativista do Coletivo de Artistas Socialistas (CAS), Carlos Ricardo diz que, para traçar a história da ocupação atual, é preciso lembrar vários episódios e atos anteriores. “Os marcos deste movimento são muitos. A ocupação da Funarte há dois anos, a briga com a Prefeitura de São Paulo a cada edição do Edital de Fomento ao Teatro na Cidade e a realização do Congresso Brasileiro de Teatro, em março de 2011, em Osasco, que contou com a presença da ministra da Cultura, Anna de Holanda, que não disse coisa com coisa”.

O lamentável desempenho de Anna de Hollanda no Congresso de Osasco foi, literalmente, a gota d’água. Depois disso, diversos grupos e coletivos culturais do estado de São Paulo nas áreas de teatro, dança, música, circo, vídeo e outros segmentos da arte passaram a tabular conversas e discutir alguma ação que pudesse dar forma para a crescente indignação do setor.

O primeiro fruto destas articulações foi a sistematização das principais reivindicações do setor, que foram apresentadas no manifesto que foi construído pelos grupos, que passaram a se denominar “Movimento dos Trabalhadores da Cultura” (MTC).

Em face aos ataques neoliberais e em defesa de políticas realmente públicas para a arte e a cultura, o MTC exigia: a) Programas estabelecidos em leis com orçamentos próprios, que estruturem uma política cultural contínua e independente; b) Imediata aprovação da PEC 236, que prevê a cultura como direito social; c) Imediata aprovação da PEC 150, que garante que o mínimo de 2% (40 bilhões de reais) do orçamento geral da União seja destinado à Cultura (hoje, são destinados apenas 0,2%) d) Imediata publicação dos editais de incentivo cultural que foram suspensos; e) Descontingenciamento imediato da pequena verba destinada à Cultura.

O descaso, sucessivos abusos e “provocações” por parte do governo federal foram mais uma vez demonstrados exatamente através do “contigenciamento”. Em 2011, o desvio do dinheiro público para outros setores (leia-se o pagamento das dívidas pública e privada) significou um corte de 2/3 de sua verba anual: de 0,2% (ou 2,2 bilhões de reais), foi para 0,06%, ou 800 milhões de reais.

Pouca paciência, mas muita criatividade e disposição de luta
A falta de resposta às reivindicações, ou o que os ativistas passaram a chamar de “política dos ‘reunismo’ e dos cafezinhos em gabinetes” que nunca resultavam em nada concreto, foi gradualmente esgotando a paciência dos integrantes do movimento. E foi isto que levou 300 deles a ocupar a Funarte, depois de um ato realizado no dia 25 de julho, organizado sobre o lema “É hora de perder a paciência!”.

A partir daí, o que se viu na Funarte foi um verdadeiro “espetáculo”, no melhor sentido da palavra: uma celebração pública e um “exercício de representação” sobre a própria vida e o mundo em que vivemos.

Foi assim que, durante seis dias, a Funarte serviu como um “palco” por onde passaram milhares de artistas, de distintas gerações (apesar de, na sua enorme maioria, serem jovens); músicos, dançarinos, atores, diretores e técnicos, que compunham (como pode ser visto nos vários vídeos produzidos no local e distribuídos em sites como o culturaja.com) sempre um elenco marcado pelo respeito à diversidade (racial, sexual e estética), mas sempre unidos na defesa aguerrida e festiva da arte e da cultura independentes.

Artistas que, a todo momento, transformavam sua própria arte em instrumentos de discussão e luta, através de encenações e manifestações artísticas das mais diversas, improvisadas ou preparadas coletivamente (mesclando gente de diferentes grupos, gêneros e estilos) nas longas noites e dias de vigília.

Gente que aprendeu a transpor o fazer coletivo típico da produção artística independente para organização de comissões que cuidaram de todos os aspectos do cotidiano de centenas de pessoas, da alimentação à segurança, passando pela preservação do próprio espaço (que, por ser público, afinal é tanto deles quanto nosso) e pela organização de um sem número de atividades “estético-políticos”.

Jovens artistas que souberam reconhecer que sua luta tem história e já foi travada por tantos outros e, por isso mesmo, estamparam por todas as paredes os nomes de gente de teatro como Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Lélia Abramo, Cacilda Becker, Solano Trindade, Abdias Nascimento e Reinaldo Maia. Nomes que “brilhavam” lado a lado com os de Zumbi dos Palmares, Luiza Mahin e personagens de tantas outras lutas e histórias.

Trabalhadores da Cultura e da Arte que se apropriaram dos mecanismos da classe a que pertencem (a assembléia democráticas e legitimadas por todos, a formação de comissões e a divisão igualitária de tarefas) para tomar decisões e resolver suas divergências.

Lutadores que também, em nenhum momento, se esqueceram da essência de sua própria luta: a defesa por uma arte e uma cultura livres, de qualidade e sintonizadas com o mundo em que vivemos. E, para refletir sobre isso, chamaram seus “mestres” para atividades de formação cotidianas, por onde passaram “teóricos-artistias-militantes”, como a professora Iná Camargo, Sérgio Camargo (da Cia. Do Latão) e César Vieira (do “União e Olho Vivo”).

A quebra da quarta parede
Na linguagem do teatro, a “quarta parede” é a divisão imaginária que se estabelece entre os artistas no palco e a platéia, durante a representação da peça. Na história do Teatro, muitos foram os representantes das chamadas “vanguardas artísticas”, como Bertold Brecht, que teorizaram e colocaram em prática um teatro que rompesse com esta “parede”.

E foi exatamente isto que o “Movimento dos Trabalhadores da Arte” fez durante estes seis dias: quebrou a “quarta parede” que o próprio sistema tenta levantar entre a produção artística independente e a sociedade. E o fizeram com maestria e em momentos de comovente beleza.

Primeiro, convidando para o “centro do palco” a própria sociedade, através de seus representantes mais legítimos: dos atores de rua e populares aos representantes dos movimentos sociais. Assim, por lá passaram Gilmar Mauro, do MST; representantes das “Mães da Praça de Maio”; organizações e ativistas dos movimentos negros, LGBT e feminista; entidades estudantis e sindicais, como a Assembléia Nacional dos Estudantes – Livre (ANEL) e a CSP-Conlutas.

Tratados como “companheiros” e parceiros de uma mesma luta, entidades como a CSP-Conlutas, através principalmente de sindicatos como o dos Servidores Federais (Sindsef) e do Judiciário (Sintrajud) demonstraram sua solidariedade de forma ativa, doando parte dos alimentos que foram consumidos no decorrer da ocupação.

Segundo, chamando atenção, a todo momento, para o fato de que a luta não poderia e nem deveria se restringir aos muros da Funarte. Apresentando-se sempre como “indignados” como os jovens de Madrid; lembrando a cada minuto que ali, na forma e no conteúdo, reproduziam-se cenas protagonizadas pela juventude árabe, chilena e de tantos outros cantos do mundo.

Uma consciência que fez com que os manifestantes também dessem uma lição de solidariedade de classe, quando, no dia 29 de julho, respeitando uma deliberação da assembléia realizada na noite anterior, saíram ao encontro de uma ocupação de sem-tetos, localizada na mesma rua do centro (Alameda Nothmann) e que tinha ação de despejo marcada para aquele dia.

Além de levarem alimentos para os sem-teto, os trabalhadores da cultura tentaram, juntamente com eles, organizar a resistência, o que foi impossível, devido à forte repressão, que resultou na prisão em um dos advogados do Movimento Sem-Teto.

Apesar do despejo não ter sido impedido, a unidade de artistas e sem-teto foi extremamente simbólica em relação a tudo o que ocorreu na Funarte nestes dias: o descaso dos poderes constituídos em relação às reais necessidades do povo; o poder a organização e da organização e da luta e a necessidade de unir explorados e oprimidos, excluídos sociais e “carentes” de cultura e arte num mesmo movimento.

Próximo ato: mobilização permanente
Como anunciamos no início, a ocupação teria fim na segunda-feira. Isto, contudo, está longe de significar o “fim” desta história. Um novo ato ou capítulo começaria a ser escrito na própria segunda, às 14 horas, na manifestação convocada para marcar a saída do prédio.

Uma manifestação para a qual os Trabalhadores da Cultura esperam o apoio de todos aqueles que estão na luta pela inversão da perversa lógica de mercado que têm dominado a sociedade brasileira em todos seus aspectos.

No sábado, Thiago Reis Vasconcelos, do grupo teatral Cia Antropofágica e membro da “comissão de referência” da ocupação destacou a importância do protesto que, para os que ocuparam a Funarte, é o início de um processo de “mobilização permanente” do setor: “Na segunda, iremos abrir os portões, às 14h, para sair, mas para outros enfrentamentos. Formaremos um grande coro, que está sendo preparado pelas diversas comissões aqui dentro; mas também queremos a participação dos demais grupos de teatro; dos trabalhadores da cultura e dos demais setores; dos movimentos sociais e da população em geral” .

No sábado, a atividade estava sendo freneticamente preparada em diversas comissões, e Thiago resumiu a idéia do protestos: “Chamamos todos a virem para porta da Funarte para, juntos, realizarmos uma passeata e darmos continuidade à ‘mobilização permanente’ que iniciamos aqui. Acreditamos que será um momento histórico, uma manifestação poética, estética e política, que será uma espécie de ‘documento’, construído por todos nós, coletivamente, durante estes seis dias de ocupação”.

A continuidade do movimento será decidida em novas assembléias e fóruns que serão convocadas. Uma das atividades que já foi deliberada como “proposta de ação” em uma das assembléias realizadas durante a ocupação é a organização de uma caravana para participar da Marcha a Brasília, no dia 24 de agosto, parte da Jornada de Lutas que está sendo organizada pela CSP-Conlutas, a ANEL e outras entidades dos movimentos sociais.

A proposta que foi encaminhada pelo “Coletivo dos Artistas Socialistas” já está sendo construída e é parte importante do desenrolar desta história, como lembra Simone do Prado, membro do CAS: “Esse movimento, sem dúvidas, significou uma retomada da politização do fazer artístico e cultural. É muito importante que, para além das pautas específicas e pontuais, a ocupação tenha apontado para a urgência de pensar novas formas para arte, fora da lógica do mercado, e que, para travar esta luta, é fundamental a unidade com outros setores da sociedade que estão sendo vitimados por esta mesma ‘lógica’ que quer transformar a tudo e todos em mercadoria”.

Uma lição que, para Simone, assim como para muitos outros que participaram do movimento, é um dos saldos inesquecíveis desta semana de luta: “Essa coisa de nos vermos como ‘companheiros’ é um dos pontos altos da Ocupação. Em todas as atividades, tanto nas plenárias, atividades de formação ou manifestações estéticas, me chamou muito a atenção esta necessidade de juntar a luta dos trabalhadores da cultura com a dos demais, que também estão lutando, aqui ou mundo afora. Brasília, no dia 24, será um ótimo palco para demonstrarmos isto”.

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