Ilustração da capa de Torto Arado, de Linoca Souza

Lançado em 2018 primeiro em Portugal e só no ano seguinte no Brasil, o romance de estreia de Itamar Vieira Júnior, Torto Arado, começou a fazer barulho após vencer o prêmio Jabuti no final de 2020. Vem colecionando desde então uma série de premiações na área e rasgados elogios, ganhando até mesmo o epíteto de clássico apesar de tão recente.

Mas por que um romance rural, com uma história centrada numa família de trabalhadores do campo no interior da Bahia, vem causando tanta comoção? A verdade é que Torto Arado toca não só em questões estruturais da formação do Brasil, mas em problemas atuais. Ou melhor, em realidades que se arrastam há séculos e cujas contradições emergem na atualidade de forma brutal.

A história se passa na fazenda Água Negra, numa região de início indefinida, mas que logo sabemos se tratar da Chapada Diamantina no interior da Bahia. Da mesma forma, o período também não é dado de bandeja ao leitor, mas pistas no desenrolar da trama. Foi uma escolha consciente de Itamar, mostrando que se trata de uma história que poderia se passar muito bem no século XIX ou nos dias de hoje.

Itamar Vieira Jr

O livro começa com um incidente que marcaria para sempre as vidas das jovens irmãs Bibiana e Belonísia, afetando a fala das crianças. Uma metáfora que se explica ao longo da obra. O núcleo familiar formado ainda pelo pai, Zeca Chapeu Grande, líder espiritual da comunidade, e a mãe, Salustiana, dão a dinâmica da história.

As agruras da servidão acirradas pelas secas e a fome traçam um paralelo com clássicos como Os Sertões ou Vidas Secas. Mas aqui há uma diferença fundamental que é a perspectiva das mulheres. Mais precisamente, da mulher negra e pobre que enfrenta não só a perversidade dos latifundiários, mas a opressão e a violência dos próprios homens da comunidade. Não é por menos que o livro é narrado por três figuras femininas: a primeira parte, “Fio de Corte”, por Bibiana; “Torto Arado” por Belonísia e “Rio de Sangue” por uma entidade do Jarê (uma religão de matriz africana específica da região) chamada Santa Rita Pescadeira.

Em entrevista ao programa Roda Viva, Itamar, geógrafo com pós-graduação em estudos étnicos e africanos e servidor do Incra há 15 anos, justifica essa escolha na narrativa sob um olhar feminino. “Percebi que essa história precisava ser narrada pelas personagens mulheres. Um exercício de tentar aproximar essa história da realidade, e foi essa realidade que encontrei no campo, de mulheres com essa posição de poder, de liderança“, disse. Na trama, as mulheres são, ao mesmo tempo, as maiores vítimas desse sistema, mas também as que se erguem contra ele e lideram a resistência.

Fotografia do italiano Giovanni Marrozzini que inspirou a ilustração da capa de Torto Arado

A primeira parte do livro é centrada na comunidade de Água Negra e a relação estabelecida entre os seus moradores. É interessante observar o papel desempenhado por Zeca Chapeu Grande e o Jarê enquanto elemento que confere um sentido de identidade e ancestralidade à comunidade. A história se desenvolve seguindo o crescimento das irmãs, à medida em que se acirram os conflitos com os donos da fazenda, assim como a tomada de consciência da comunidade enquanto quilombolas e trabalhadores superexplorados, mas apartados de qualquer direito após toda uma vida de trabalho. Situação que explode de forma aberta e violenta na etapa final da narrativa.

Com uma escrita quase poética, repleta de metáforas, Itamar traz questões seculares como a escravidão, a servidão e a opressão à mulher, passando pela questão fundiária e a reforma agrária até temas mais do que atuais, mas que não deixam de trazer as marcas desse passado (que na verdade não passou), como o genocídio da juventude negra. Torto Arado expõe, assim, o desenvolvimento de contradições que chegam a um impasse em que a velha conciliação não pode mais responder.

Como o autor explica, ainda no Roda Via, ao fazer um paralelo entre sua obra e outras que ganharam expressão no último período, como os filmes Bacurau e o sul-coreano Parasita, “durante muito tempo a gente viveu essa ideia da conciliação, de que dando um pouco a gente distensionaria os grandes problemas do nosso país, e esse pouco não é suficiente, não promove as mudanças que a sociedade precisa“. Seria uma forma da arte mostrar que “o tempo da conciliação já passou e que tenhamos que dar respostas definitivas para questões que já toleramos há muito tempo, como nosso abismo social”.