Os velocistas norte-americanos Tommie Smith e John Carlos protestam contra o racismo levantando seus punhos fechados durante a cerimônia de premiação Jogos Olímpicos do México, em 1968
Redação

Daniel Macedo e Pedro Assis, do Rio de Janeiro; e Urso, de São Paulo

Diante à polarização da luta política no país e no mundo, do levante antirracista que ocorre nos EUA e se alastra por diversos países, volta-se a discutir o papel militante dos atletas e das torcidas. Os últimos dois domingos (31/05 e 07/06), especialmente em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, setores das torcidas organizadas e movimentos de torcidas antifascistas assumiram papel de destaque nos protestos que ocorreram nas ruas contra Bolsonaro e Mourão. Poucos dias depois, infelizmente, setores das diretorias das maiores torcidas organizadas dos grandes clubes, impactadas pelas manifestações, publicaram notas desautorizando o uso de suas marcas no protesto. Da mesma forma, atletas de diversas modalidades esportivas vêm se posicionando a respeito do combate ao racismo e em apoio a incrível onda de protestos que tomou os Estados Unidos, o coração do imperialismo.

Esta realidade está longe de ser uma novidade, a participação de atletas e torcedores na luta política e por direitos enquanto esportistas já ocorreu em outros momentos da história do esporte. Exemplos não faltam, como os velocistas norte-americanos Tommie Smith e John Carlos, no pódio das Olimpíadas do México em 1968, erguendo os punhos em referência a luta dos Panteras Negras. No Brasil, o craque do clube de futebol Atlético Mineiro, o genial Reinaldo Lima, fazia um gesto semelhante ao marcar seus gols em plena ditadura, um dos motivos pelo qual ele foi perseguido por técnicos, dirigentes e pelo regime.

O jogador do Atlético Mineiro, Reinaldo Lima, comemora um gol com os punhos cerrados. (Foto: Arquivo EM)

No embate ao racismo, moralismo e defendendo o passe livre dos jogadores, ganharam destaque atletas de futebol botafoguenses: Afonsinho, Paulo Cézar Caju e Nei Conceição, que marcaram suas posições enfrentando dirigentes de clubes e o regime militar. Esses fatos foram contados no documentário de Lúcio Branco “Barba, Cabelo e Bigode”, de 2016.

Outro fato emblemático foi o enfrentamento entre o jornalista e técnico de futebol João Saldanha, comunista de carteirinha, e o sanguinário e ditador Emílio Garrastazu Médici. O ditador buscou interferir na convocação do técnico que havia classificado a seleção brasileira de futebol para a Copa de 70, demitindo-o. O saudoso João “Sem Medo”, como também era conhecido Saldanha, enfrentava os “pitacos” do general carniceiro. Após a vitória no México, a associação da seleção com o regime ditatorial passou a ser constante. A intromissão de Médici não se resumia a seleção de futebol, em 1976, ele fez campanha contra a Chapa Frente Ampla pelo Flamengo, que disputou as eleições da diretoria do clube com o slogan: “A democracia começa pelo Flamengo”.

Fundamental também trazer à tona a luta das mulheres contra a proibição do futebol feminino, que foi imposto por meio do decreto-lei, de 1941, no período do Estado Novo de Vargas, vigente até 1979. Tal medida foi desafiada por times como o Araguari Atlético Clube (MG) e o Esporte Clube Radar (RJ) que tiveram maior destaque nessa luta, mas não foram os únicos. Estes são exemplos de resistência organizando as mulheres e praticando o futebol.

Nas arquibancadas são também inúmeros casos de resistência. O próprio surgimento das Torcidas Organizadas no explosivo cenário político do final dos anos de 1960, expressava o anseio pela participação nas decisões dos clubes em meio ao aumento da repressão por parte da ditadura, e a intervenção desta no futebol, através de agentes do regime atuando dentro das federações. Não à toa que muitas torcidas adotaram alguns símbolos da esquerda e da luta anti-imperialista.

Tornou-se emblemática a cena em que Chico Malfitani, fundador da torcida organizada Gaviões da Fiel, e Antônio Carlos Fon, em 1979, num clássico de futebol Corinthians x Santos, abriram a uma faixa em que se lia: “Anistia ampla, geral e irrestrita”. Nos anos de 1980, esse movimento ganhou peso no vestiário dos atletas e entre os funcionários, movimento denominado Democracia Corinthiana, liderado pelos jogadores Sócrates, Walter Casagrande, Zé Maria, Wladimir, entre outros, os quais tiveram participação efetiva no movimento pelas Diretas Já, enfrentando a ditadura e o autoritarismo de dirigentes.

Este mesmo movimento também ganharia espaço nas arquibancadas, como a torcida Fla Diretas, que levava faixas e cartazes para a arquibancada da torcida rubro-negra e contou com apoio de Cláudio Cruz, fundador da torcida organizada Raça Rubro Negra. Também importante ressaltar o papel que Osmar Santos, um dos principais locutores esportivos do Brasil, que foi o locutor oficial dos comícios das Diretas Já.

Ainda que os anos de neoliberalismo, a cooptação de parte importante das grandes torcidas organizadas, a mercantilização e encarecimento do acesso aos estádios, tenham criado um hiato na participação política de torcedores e jogadores, a situação política de recrudescimento das lutas e a elitização dos estádios têm trazido de volta debates e enfrentamentos políticos no mundo do futebol.

Manifestações contra a realização da Copa do Mundo tomou conta das ruas do Brasil, no primeiro semestre de 2014

O “legado” dos grandes eventos, as jornadas de junho de 2013 e o projeto de modernização elitista do futebol

Há algumas décadas que a arquibancada do estádio de futebol tem se tornado um ambiente hostil ao “povão”. Certamente não foi somente a violência (tão alardeada pelos tecnocratas da imprensa esportiva), resultado do explosivo cenário de desigualdade social e falta de perspectiva da juventude trabalhadora. Houve também uma política abertamente elitista que resultou no aumento do preço dos ingressos e na transformação de estádios em verdadeiros shoppings centers. O estatuto do torcedor foi um marco nesse sentido, aprovado por Lula em 2003, que serviu para a criminalização e restrição ainda maior dos torcedores.

Nesse contexto, em 2007, o “legado” deixado pelos os Jogos Pan-Americanos foi o fim da “Geral do Maracanã”. Aquilo foi um verdadeiro crime, que marcaria o início do fim do bom e velho Maracanã das massas, um patrimônio histórico, que receberia a pá de cal na preparação imposta pela Federação Internacional de Futebol (FIFA) para a Copa do Mundo de 2014. Com o aval de dirigentes da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e governos de PT, PMDB, PSDB, entre outros, “arenizaram-se” os estádios, ou seja, em formato de grandes arenas, transformando o futebol em um espetáculo cada vez mais televisivo e pausterizado. Isto tudo, é fundamental dizer, com o apoio de clubes e federações, os quais passaram a ter nas cotas de TV e na venda de jogadores cada vez mais jovens, sua principal fonte de renda, marcando de vez o futebol brasileiro como uma grande colônia da economia futebolística mundial.

O enfrentamento a esse processo vem levando a retomada da arquibancada enquanto lugar de resistência, em busca da “repopularização” desse espaço. Nesse sentido, os movimentos que ganharam fôlego com as jornadas de junho de 2013, tiveram expressões como a Frente Nacional de Torcedores, e vêm ganhando força recentemente na forma das Torcidas Antifascistas. Organizadas nas redes sociais, e nos estádios de forma autônoma, ou mesmo por dentro do que sobra de democracia dentro das grandes torcidas organizadas, estas torcidas buscam incorporar, inclusive, o combate às opressões como machismo, racismo e homofobia. Enfrentam a perseguição policial, como ocorreu no episódio em que a Antifascista Botafoguense teve seus materiais recolhidos pela Polícia Militar carioca no final de 2019, durante a última rodada do campeonato brasileiro.

Unir os trabalhadores da bola e da arquibancada pra enfrentar a elitização do futebol, o racismo, a pandemia e o projeto ditatorial de Bolsonaro e Mourão

Diante da enorme crise sanitária, provocada pela Covid-19, e dos ataques aos direitos e as liberdades democráticas, se faz fundamental unir os trabalhadores em uma grande jornada de lutas. Ainda que mantendo as medidas sanitárias de distanciamento, é necessário que aos exemplos de atletas que cada vez mais se posicionam contra o racismo, e torcedores que vão as ruas em defesa das liberdades democráticas, se somem os setores da classe trabalhadora organizada.

O projeto genocida de Bolsonaro e Mourão de boicotar a quarentena conta com o apoio das diretorias de clubes de enorme popularidade, como Vasco e Flamengo, e já começa a se tornar uma realidade nos Estados. A máscara de vários governadores, ditos “defensores da ciência”, começa a cair.

No momento em que o número de mortos no Brasil ultrapassa a escala de dezenas de milhares, a tragédia sanitária se aprofunda especialmente nas periferias, entre a classe trabalhadora negra. O projeto do grande capital e dos governos é que os trabalhadores se arrisquem, produzindo a riqueza para que seus patrões a usufruam em casa, vivendo sua luxuosa quarentena.

No futebol, os planos são de estádios vazios, jogadores expostos à pandemia, enquanto a pilha de cadáveres cresce cada vez mais. É preciso que os profissionais da bola, cuja grande maioria vive a realidade dura dos setores mais explorados da classe trabalhadora (55% dos atletas profissionais recebem aproximadamente R$ 1 mil e outros 33% entre R$ 1.001 a R$ 5.000) se somem nessa luta, assim como que os atletas bem remunerados e de grande visibilidade da elite do futebol lembrem-se de suas origens, e se somem nessa batalha.