É impossível encontrar neste momento um país árabe que não esteja sendo sacudido por revoltas ou mobilizações. Neste sentido, os acontecimentos na Líbia desencadearam uma polêmica em toda a esquerda, difícil e muito duraO surpreendente neste debate é que, quando não existe um só país do mundo árabe que tenha ficado livre das revoltas populares, se negue a ligação deste processo com o líbio.

Para quem procurou desde o início diferenciar o levantamento na Líbia do processo geral no Oriente Médio e no mundo árabe, a razão mais utilizada é que essa mobilização é dirigida pela “Frente Nacional pela Salvação da Líbia [NFSL na sigla em inglês] uma organização financiada pela CIA que chama o povo líbio a reiterar um juramento de lealdade ao rei Idris el-Senusi como líder histórico do povo líbio”.
Esta forma de explicar os fenômenos políticos ou sociais está sem dúvida muito próxima da proliferante teoria da conspiração.

No entanto, coloquemo-nos por um momento nesta tese e aceitemos que a situação da Líbia se explica como parte de um plano traçado pela CIA. Surgem então várias dúvidas.

Kadafi era o homem do imperialismo na Líbia desde 2003 e, especialmente a partir de 2006, as multinacionais faziam o que queriam; o FMI, oito dias antes do levantamento popular, felicitou publicamente o governo líbio pelos planos que estava aplicando. Kadafi foi fotografado com todos os presidentes do mundo e convidado especialmente por Obama para a Cúpula do G8. Apoiou com entusiasmo Ben Alí, o ditador tunisiano, e Mubarak, quando os dois estavam sendo questionados pelos levantamentos populares, e lhes ofereceu refúgio na Líbia. Kadafi é o homem que dispõe das chaves de ouro de Madri e é amigo declarado de José María Aznar. É sócio de Berlusconi, e o governo líbio é acionista do grupo aeronáutico e de defesa Finmeccanica, controlado pelo Estado italiano; acionista da empresa de petróleo ENI; da têxtil Olcese e do clube de futebol Juventus, entre outros. Inclusive o governo líbio participa como acionista do grupo Quinta Communications, cujo acionista majoritário é Berlusconi.

A pergunta inevitável é: por que a CIA organizaria um complô contra um homem com semelhante currículo?

Kadafi também opina que é uma conspiração mas, segundo ele, trata-se de um complô da Al Qaeda e da Otan, que a apoia: “Enfrentamo-nos com o terrorismo da Al Qaeda por um lado e, por outro, com a Otan, que agora apoia da Al Qaeda”.

Historicamente, as intervenções da CIA se caracterizam pelo impulso de golpes militares, mas surpreende que na Líbia a CIA tenha provocado e siga provocando uma revolta popular, principalmente no meio de uma ebulição como a do mundo árabe, sacudido por revoltas em toda parte. Pareceria um bombeiro louco jogando gasolina ao redor de um enorme incêndio.

Onde ficam nesta teoria conspiratória as classes sociais, o caráter de classe dos Estados, as contradições internas de cada classe, as contradições entre os próprios Estados imperialistas, e entre os grupos multinacionais, as contradições entre os movimentos sociais e suas direções?

OS CRITÉRIOS DE LÊNIN PARA “DESCOBRIR A VERDADEIRA ESSÊNCIA DE UMA GUERRA”
Diante das guerras, contra os pacifistas que condenavam toda guerra por princípio, e frente aos oportunistas que capitulavam aos governos e aos Estados burgueses, Lênin exigia determinar a natureza da guerra, antes de definir uma posição política.

Lênin, que certamente dedicava horas e horas para ler todo jornal burguês que caísse em suas mãos, dizia: “Como descobrir a ‘verdadeira essência’ da guerra, como determiná-la? A guerra é a continuação da política. É preciso estudar a política que precede a guerra, a política que leva e levou à guerra”. Lênin continua: “O filisteu não compreende que a guerra é a ‘continuação da política’ e, por isso, se limita a dizer que ‘o inimigo ataca’”.

Com mais veemência, Lenin continua a polêmica: “Se não fizéssemos assim, esqueceríamos a exigência principal do socialismo científico e toda a ciência social em geral e, além disso, nos privaríamos de compreender a guerra atual. É possível explicar a guerra sem relacioná-la com a política precedente deste ou daquele Estado, deste ou daquele sistema de Estado, destas ou daquelas classes? Repito mais uma vez: esta é a questão principal, que sempre se esquece e cuja incompreensão faz com que, de dez discussões sobre a guerra, nove resultem numa vã disputa, em mero palavreado. Nós dizemos: se vocês não estudaram a política praticada se não demonstraram a ligação desta guerra com a política precedente, não entenderam nada desta guerra”.

OS FATOS DA REALIDADE
Além das conclusões políticas que se queira tirar, o dado objetivo é que assistimos a uma onda revolucionária em todo o mundo árabe e no Oriente próximo. Na Líbia Kadafi, o homem das multinacionais do petróleo, que garante o espólio imperialista, se depara com protestos e lutas que culminaram em 17 de fevereiro com um levantamento popular.

Como no resto da região, a mobilização põe o centro de suas exigências na luta contra o aumento dos preços e na demanda pelas necessidades mais elementares, contra o governo corrupto e por liberdades democráticas básicas.
A revolta de 17 de fevereiro se espalha pelas principais cidades do país e se fortalece na região de Cirenaica, de velha tradição opositora a Kadafi. O ditador responde reprimindo a ferro e fogo os protestos, o que, longe de pará-los, gera um enfrentamento armado. A utilização do exército contra os protestos, longe de resolver o problema, abre uma profunda crise de regime.

Setores do exército desertam, ministros, diplomatas e “homens de negócios” deixam as fileiras do regime e passam para a oposição. Os rebeldes assaltam quartéis e arsenais de armamento. Assim, os fatos constatam que, ao contrário do Egito e da Tunísia, o regime é incapaz de reconduzir institucionalmente a revolta e se divide. Kadafi apela aos batalhões de elite e a mercenários para sufocar os protestos que, longe de sucumbir, se generalizam e os acontecimentos se transformam assim em uma guerra civil.

A transformação de um levantamento popular em guerra civil é o fato objetivo e a diferença qualitativa, no momento, da Líbia em relação ao Egito ou à Tunísia.
Voltando às exigências de Lênin antes de definir uma política, qual é a natureza desta guerra? É preciso dizer que a intervenção da Otan na Líbia, a guerra imperialista, se produz sobre a existência de outra guerra prévia, a guerra civil.

Assim, na Líbia estamos em meio a duas guerras. Os defensores da teoria da conspiração negam de fato a existência da primeira e reduzem o conflito líbio a uma só guerra “o imperialismo ataca”, negam o levantamento popular e acabam objetivamente sendo os defensores confessos ou inconfessos de Kadafi.

O MOVIMENTO INSSURGENTE E SUA DIREÇÃO
Para todos os defensores da teoria da conspiração da CIA, a diferença da Líbia com o Egito e a Tunísia está precisamente na direção do processo. Para todos eles, a direção do levante e a mobilização são iguais, o que dá à insurreição um caráter reacionário, contrarrevolucionário, insubordinado.
Definir a natureza de um movimento por sua direção é um erro tão comum entre alguns setores da esquerda como alheio ao marxismo.

Setores desta esquerda que hoje diferencia a Líbia do resto do processo revolucionário árabe participaram desde o primeiro momento das manifestações de apoio ao levante na Tunísia e no Egito, e quem era a direção nesses processos? As massas egípcias protagonizaram um levante exemplar contra o governo de Mubarak, a Praça da Libertação foi o símbolo mas, à frente dela, se colocaram dirigentes burgueses e reacionários como a Irmandade Muçulmana ou os partidários do pró-imperialista El Baradei. O exército egípcio, a instituição chave do regime, assessorada e legitimada pelo imperialismo, desarmava os manifestantes enquanto deixava entrar na praça bandos de Mubarak para fazer estragos. As massas que clamavam contra o governo e conseguiram tirar Mubarak acabaram aplaudindo o exército. Por que participamos então com entusiasmo da revolta no Egito, quando à frente tinham semelhante direção pró-imperialista e na praça se clamava pela intervenção do exército egípcio?

A explicação não é outra: nós jamais confundimos o movimento com sua direção. Sobre o impulso objetivo da ação das massas atuam esses elementos conscientes, que representam interesses de classes diferentes e enfrentados, para reconduzir o processo em um e outro sentido, dotando-o de um programa.

Para os marxistas esse processo, longe de ter um caminho linear, está cheio de tensões, contradições e enfrentamentos entre as distintas forças que vão disputar essa direção. Trava-se assim uma luta viva, audaz, cujo resultado não é predeterminado por nenhum conspirador nem força alguma do destino.

Qual é então a natureza dos protestos contra Kadafi?
O fato concreto que desencadeia as mobilizações primeiro, e a repressão ao regime depois, é fartamente conhecido. Os protestos na Líbia começaram, como em outros tantos países árabes. No dia 17 de fevereiro, as manifestações contra Kadafi, encabeçadas pelos familiares das vítimas do massacre ocorrido na prisão de Abu Salim, em Trípoli, há 15 anos (onde foram assassinados 1.200 presos e foi detido o advogado dos familiares desses presos), foram respondidas a tiros pelas forças de Kadafi. Foram desencadeados assim os atuais acontecimentos. É um movimento progressivo, objetivamente revolucionário e anti-imperialista, pois enfrenta o governo títere do FMI e do imperialismo.

Uma pergunta fundamental que toda a esquerda deveria fazer é o que fariam se estivessem lá. Se estivéssemos na Líbia, nós estaríamos sem duvidar um minuto ao lado dos que saíram às ruas contra Kadafi, apoiando esse movimento, independentemente de sua direção. E, quanto mais reacionárias são essas direções, mais obrigados estamos a intervir para impedir que elas tomem a direção do movimento.
Desde os acontecimentos de 17 de fevereiro, se espalham por todo o país comitês populares. Onde as tropas de Kadafi foram expulsas, esses comitês eram encarregados de assegurar os alimentos e a eletricidade; obter o petróleo para abastecimento de combustíveis para as plantas elétricas; assegurar a distribuição de água.
A ausência de instituições nos lugares liberados foi substituída por esses comitês. Não é nada difícil adivinhar o que todo este processo significa, porque todo processo revolucionário, quando derruba o Estado e sua coluna central, o exército, se divide, se vê obrigado a substituir todo este maquinário, a improvisá-lo, neste caso.

Quem é a base de todas essas milícias e do movimento de insurreição? Como em muitos outros países árabes, são jovens, homens e mulheres, que encabeçaram o levante contra o tirano.

Os dados conhecidos indicam que se generalizaram os conselhos municipais, e começou a coordenação entre eles em algumas zonas. Inicialmente todos os dados apontam para um papel relevante da chamada “coalização revolucionária de 17 de fevereiro”, cujo porta-voz é Abdelhafed Ghoga, jurista e defensor dos direitos humanos.
A conformação do chamado Conselho Nacional aparece como a resposta “necessária” tanto para “colocar ordem” nas fileiras de insurgentes como para estabelecer um interlocutor com o regime e o mundo.

A formação do Conselho Nacional reflete as tensões internas e os objetivos diferentes de seus próprios componentes. As diferenças geracionais e políticas entre eles são notáveis. “O conselho foi útil para manter a coesão. É normal que no início existam diferentes pontos de vista. Não é fácil que todos aceitem a autoridade do conselho. O mais difícil é controlar esses jovens”, declarava Mohamed Gheriani, um de seus mais significativos porta-vozes.

Não apenas essas declarações confirmam as contradições entre o Conselho Nacional e a base rebelde. No mesmo dia em que a ONU aprovava a resolução autorizando a intervenção na Líbia, milhares de pessoas manifestavam em uma praça central de Bengasi para festejar a notícia. As imagens, retransmitidas pela Al Jazeera, mostram na praça uma enorme faixa muito difundida em fotos, com um lema em inglês: “Não à intervenção estrangeira, o povo líbio pode agir sozinho”.

Integrado por 31 membros, a maioria clandestinos, o Conselho Nacional é composto por representantes das distintas cidades, por figuras de prestígio na luta pelos direitos democráticos e por um núcleo duro de homens procedentes do regime de Kadafi. Para citar alguns ex-kadafistas, cabe mencionar Abdul Fatah Younis, ex-chefe do Ministério de Governo, que passou para o bando da sublevação nos primeiros dias da revolução; Ali Aziz Al Issawi, que foi ministro da Economia e se demitiu de seu posto de embaixador na Índia; o ex-ministro da Justiça Mustafá Abdel Yalil, que deixou este posto em fevereiro.

O imperialismo se apressou em reconhecer esse conselho, em primeiro lugar para ajudá-lo a colocar “ordem” e disciplina nas indisciplinadas milícias e, em especial, como eles mesmos reconhecem, nos mais jovens.

A conformação do Conselho Nacional, longe das teorias da conspiração, mostra numa revolução as contradições internas e o combate entre o caráter objetivo antiditatorial e antiimperialista que expressa o levante das massas e a ausência de uma direção revolucionária, o que permite a homens do velho regime e setores burgueses situar-se à frente para reconduzir esse levante para uma transição acordada com o imperialismo e o que consigam salvar do regime de Kadafi.

Aqueles que dizemos “Otan não, fora Kadafi”, longe de neutralismo, deixamos clara nossa posição: estamos contra a intervenção imperialista e a favor de que a inssurreição derrote Kadafi. Deixamos claro que estamos contra a intervenção imperialista, mas não somos neutros na guerra civil aberta, queremos que os rebeldes líbios não deixem nem rastro do regime pró-imperialista e tirano de Kadafi.

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