Relatório do Seminário de Saúde do PSTU

Saúde é um tema extremamente amplo, que envolve condições de vida, trabalho, genética, relação com meio-ambiente, guerras, revoluções e progressos tecnológicos. Podemos gastar linhas sem fim vinculando todos os aspectos da vida humana e sua relação com os incontáveis indicadores de saúde. A Organização Mundial da Saúde já patrocinou inúmeros encontros internacionais em busca da melhor definição do que é saúde e, mesmo assim, não conseguiu construir um consenso em torno do tema.

O seminário de saúde do PSTU se propõe a analisar e traçar um programa para alguns aspectos primordiais da saúde no Brasil: um balanço do SUS, a questão das privatizações no âmbito da saúde pública, a saúde do trabalhador e a situação da reorganização do movimento dos trabalhadores da saúde nos diversos estados do país.

Todos estes temas estão cruzados e influenciados pela crise econômica estrutural do sistema capitalista e pelo fato de que o Brasil é governado por uma frente popular há sete anos. A crise econômica mundial se refletiu em nosso país com uma recessão que impactou principalmente o setor industrial, com demissões e aumento do ritmo de trabalho nas fábricas. Ambos são fatores de piora qualitativa na saúde dos trabalhadores e suas famílias. Um outro elemento da crise é a queda na arrecadação do governo federal, que vem ocorrendo nos últimos oito meses, fruto da recessão e da política do governo Lula de isenções fiscais para dar um alívio para a burguesia industrial. A diminuição na arrecadação fiscal vai se refletir no orçamento federal para 2010, último ano do governo Lula, sendo mais uma razão para ressuscitar a proposta de uma nova CPMF, desta vez com alíquota menor e só para a saúde.

O outro motivo que trouxe de volta esta proposta foi a epidemia da Gripe A (suína), que mostrou as fragilidades do nosso sistema de saúde. Aliás, o percurso do discurso do ministro da saúde, José Gomes Temporão, foi muito parecido com o discurso de Lula frente à crise global. De início, passou semanas afirmando que o vírus não estava circulando no país. Frente às mortes, afirmou que não faltaria medicação, pois, segundo ele, havia um estoque enorme de Tamiflu. Em agosto, passou a afirmar que o pior já havia passado, pois o inverno estava acabando. Na vida real, os trabalhadores doentes encontraram postos de saúde lotados, hospitais despreparados para atender uma demanda maior do que a habitual e extrema dificuldade para obter o Tamiflu, que precisa ser usado no começo da infecção para ter o efeito desejado. A maioria dos casos de gripe não foram submetidos a exame laboratorial, única forma de diferenciar a gripe A da gripe comum. O resultado foi a morte de gestantes e pessoas jovens, grupos populacionais que respondem de maneira mais favorável na gripe comum.

Apesar dos graves erros cometidos pelo governo federal tanto no tema da crise econômica mundial quanto da gripe A, não podemos esquecer de que Lula ainda mantém altos níveis de aprovação e consegue manter a eficiência (para a burguesia) de seu caráter de frente popular preventivo. A política do governo Lula para a saúde tem sido a mesma dos governos anteriores: defende formalmente o SUS e ataca-o em suas bases, ou seja, em seu caráter público e estatal, através de privatizações e do investimento mínimo em saúde.

Para entender esta política, devemos voltar vinte anos no tempo e entender o significado da criação do SUS. O Sistema Único de Saúde foi criado com a constituição de 1988, como fruto de um grande ascenso de lutas do movimento pela reforma sanitária, que reuniu vários setores sociais heterogêneos numa luta por saúde pública para todos. Esta luta envolveu o movimento popular nos bairros, que lutava por implantação de postos de saúde, movimento sindical de funcionários da saúde, órgãos corporativos de médicos, setor filantrópico (como santa casas), etc. Até aquele ano, o sistema de saúde pública não tinha a obrigação de atender a todos, apenas os contribuintes da previdência social.

A concepção do SUS trouxe três princípios norteadores avançados: universalidade, equidade e integralidade. A universalidade significa “acesso garantido aos serviços de saúde para toda a população, em todos os níveis de assistência”. A equidade é concebida como “igualdade na assistência à saúde, com ações e serviços priorizados em função de situações de risco, condições de vida e da saúde de determinados indivíduos e grupos – tratar desigualmente os desiguais”. Por fim, a integralidade é o “conjunto articulado e contínuo de ações e serviços, curativos e preventivos, individuais e coletivos, exigidos em cada caso, nos diversos níveis de complexidade do sistema”.

Para se ter uma ideia do que significou a vitória da criação do SUS, até hoje os Estados Unidos não tem a universalidade no seu sistema de saúde. O país mais rico do mundo, país modelo do capitalismo global, não garante acesso à saúde para mais de 45 milhões de habitantes. O tema é muito sério e grave. O governo Obama considera a reforma do sistema de saúde um dos eixos centrais do governo e até agora não conseguiu vencer a resistência encarniçada dos republicanos, empresários do setor saúde e opinião pública branca. O problema é enorme porque os americanos gastam 16% do PIB com saúde e nem assim o capitalismo ianque consegue dar conta da saúde do país.

O SUS trouxe uma série de conquistas na saúde, que inclusive desmascaram a falsidade da ideia de que tudo que é público é ruim. Podemos destacar: programa da Aids, que é uma referência mundial, com tratamento totalmente gratuito para qualquer pessoa, não existe nada igual em vários países ditos de primeiro mundo; programa de transplantes de órgãos que é um dos maiores do mundo; programa de imunizações; distribuição gratuita de medicações de alto custo. Há várias outras ilhas de excelência. Se tomarmos alguns índices de saúde como expectativa de vida ao nascer ou mortalidade infantil, veremos que houve melhora do início dos anos 1990 para cá, que tem uma relação direta com a implantação do SUS.

No entanto, na própria constituição de 1988 já aparece o artigo 199, que cria o sistema de saúde complementar, privado, que não faz parte do SUS, ou seja, o caráter público e estatal do sistema de saúde já nasce contaminado com o vírus privatista. O nome complementar ou suplementar dá a entender que é um sistema pequeno, satélite do SUS, mas é exatamente o contrário. Atualmente, o sistema complementar movimenta nada menos do que R$57 bilhões por ano, sem contar as isenções fiscais permitidas pelo governo (abatimento do imposto de renda).

A vitória obtida pelo movimento com a criação do SUS vem sendo sistematicamente atacada e ameaçada pelos sucessivos governos de plantão. Os principais ataques se dão na questão do financiamento e na sabotagem do caráter estatal do sistema. O governo Lula manteve, e inclusive amplia, estes ataques. No tocante ao financiamento, não há diferença alguma entre Lula e FHC, pois ambos mantiveram dramaticamente fixa a percentagem do PIB que destinam à saúde pública. Lula manteve as isenções fiscais para a saúde privada e a “pilantropia”. Sem entrar numa discussão mais conceitual do que seja a filantropia, é público e notório que algumas instituições filantrópicas não são exatamente exemplo de humanismo e caridade e mesmo assim tem uma série de incentivos e isenções fiscais.

O caráter estatal e público vem sendo sabotado de duas formas: a primeira é através do sucateamento dos equipamentos públicos, seja com a desvalorização salarial do funcionalismo, seja com o desleixo na manutenção física dos equipamentos. O principal ataque se dá através da privatização do sistema, sob argumento de que o problema do SUS é de gestão. Para o governo, só pela gestão privada é que o SUS poderá ser eficiente, seja através das fundações estatais de direito privado, seja através das organizações sociais, como ocorre em São Paulo. Esta gestão privada possibilita tratar os trabalhadores da saúde como se estivessem numa fábrica, onde o patrão demite e contrata de acordo com suas necessidades. Neste sentido, passam a ser prioridades as necessidades do governante, não as da população. O parâmetro de alocamento de pessoal deixa de ser estabelecido por índices de saúde/doença e passa a ser dado por necessidades eleitorais do governante e pela imposição dos cofres públicos, ou seja, da prioridade de pagar a dívida pública para os banqueiros. Neste terreno há um grande acordo entre a frente popular e a oposição demo-tucana. Serra, em São Paulo, faz e defende exatamente o mesmo que Lula-Temporão em Brasília.

É fundamental defendermos o caráter necessariamente estatal do SUS. O truque usado pelos governos é o de manter o caráter público através da gestão privada, ou seja, o estado financia a organização privada com dinheiro público, em troca do atendimento gratuito à população. O problema é que a lógica privada é sempre hierarquizada pelo lucro. Por isso, o que é prioritário para a organização privada na maioria das vezes não bate com o que é prioritário do ponto de vista da saúde pública. A lógica privada ameaça tanto a equidade quanto a integralidade. Só um sistema estatal pode priorizar as necessidades objetivas da população dentro de uma hierarquia correta, pois a lógica deixa de ser o lucro e passa a ser dada pelos indicadores de saúde. Por isso, defendemos um SUS 100% estatal.

O PSTU defende o SUS frente aos ataques desferidos pelos governos neoliberais. Esta posição não pode se confundir com uma defesa acrítica do sistema, como ainda é feita por setores majoritários do movimento. Nós defendemos o SUS daqueles que o atacam com as privatizações e cortes de verbas. No entanto, nunca ficaremos calados quando os governos usarem o SUS para atacar as massas. Por exemplo, defendemos ardorosamente o aumento de verbas para o SUS como condição para ele funcionar, mas devemos ser contrários à nova contribuição que o governo Lula quer criar (nova CPMF), pois é um novo mecanismo para tirara dinheiro dos trabalhadores. O aumento do financiamento tem de se dar pela derrubada da Lei de Responsabilidade Fiscal, que é uma verdadeira lei de irresponsabilidade social.

Por outro lado, lutamos contra o processo concreto que está se dando, a privatização do sistema de saúde. A defesa do SUS passa necessariamente pela derrota de todo o processo de privatização. Passa também pelo enfraquecimento do sistema complementar, o que significa que, frente a uma instituição privada em crise, defendemos a estatização e não simplesmente que o governo forneça verbas para a instituição se levantar de novo. Significa que nos momentos de crise da saúde (como foi o caso da gripe A), defendemos um programa que começa nas necessidades mais sentidas pela população naquele momento e vai rumo a medidas concretas de fortalecimento do sistema de saúde público e estatal.

Um balanço crítico do SUS também não pode deixar de conter uma denúncia clara dos governos. Enquanto gastou, ano após ano, a percentagem quase fixa de 1,7% do PIB com a saúde pública, o governo federal (tanto FHC quanto Lula) gastou, em média, entre três a cinco vezes mais com o pagamento de juros da dívida federal (o gasto com juros flutuou entre 5,2 a 9,3% do PIB). Portanto, a questão do fim do gasto com a dívida é decisiva para garantir a saúde pública.

Na questão da gestão, tão reivindicada pelo governo como problema central do SUS, é preciso exigir um verdadeiro controle social. Em outras palavras, defender o caráter estatal e que seja controlado de fato pelos trabalhadores. Isto começa por fazer uma discussão clara de prioridades da população em seus locais de moradia, trabalho e estudo. Este trato cotidiano em estabelecer prioridades para os investimentos em saúde só pode existir plenamente em outro tipo de organização estatal, um estado operário com um regime de democracia operária.

No plano das reivindicações imediatas, entra a pauta da exigência de que o Brasil gaste pelo menos 6% do PIB com a saúde pública. Este é o percentual mínimo estabelecido pela OMS para países com a saúde universalizada. Em termos práticos, significa dobrar os gastos federais, estaduais e municipais com saúde. Evidentemente, há estados e municípios que precisam muito mais que dobrar seus gastos, mas este número é uma referência geral. O gasto com obras de saneamento básico não pode ser contabilizado como gasto em saúde e sim como infraestrutura.

O PSTU defende como suas as reivindicações mais sentidas pelos trabalhadores do setor da saúde, como a luta por um plano de carreira único para os trabalhadores do SUS, que garanta salários dignos para as diversas categorias, um piso salarial mínimo baseado no Dieese e a redução da jornada para 30 horas semanais para as categorias que têm esta reivindicação. A contratação de trabalhadores para a saúde deve ser feita por concurso público.

O nosso projeto para o SUS pode ser traduzido assim: “Em defesa de um sistema de saúde pública universal, gratuito, estatal, de qualidade e capaz de atender às múltiplas demandas que um sistema de saúde é desafiado a atender no século XXI”. Este projeto implica, necessariamente, na estatização de todos os serviços de saúde, das grandes redes de farmácia, laboratórios farmacêuticos e complexos industriais da saúde. Isso só poderá ser conquistado num processo de lutas de classes sem quartel contra a burguesia. Mas dentro do capitalismo nenhuma conquista social é permanente. Por isso, a luta pelo SUS que defendemos está unida à luta por um governo da maioria, um governo socialista dos trabalhadores e do povo oprimido.

  • Relatório do Seminário de Saúde do PSTU
  • O financiamento da saúde pública no Brasil, por Ary Blinder
  • A reforma no sistema de Saúde dos EUA