Alejandro Iturbe, de São Paulo (SP)

Vivemos tempos de rebelião no mundo, que se manifestam com força na América Latina

Assistimos às lutas em Hong Kong, no Extremo Oriente; na Argélia, no Iraque e no Líbano, no mundo árabe; na Catalunha e na França, na Europa. No nosso continente, vivemos a recente rebelião no Equador, a luta contra o governo de Jean-Charles Moïse no Haiti, a dura batalha do povo chileno contra o governo de Sebastián Piñera, o processo de luta contra o governo de Iván Duque, na Colômbia, e a resistência contra o golpe na Bolívia. Em um só artigo, é impossível considerar cada uma dessas rebeliões com a profundidade que merecem. Trataremos de analisar algumas características comuns e algumas diferenças entre elas.

Um processo continental
Acreditamos que este seja um processo continental, uma onda que tende a espalhar-se pelos problemas comuns enfrentados pelos povos da região. Também pelo efeito dominó causado pelo impacto de cada luta nos outros países.

Não é um raio no céu sereno. Foi anunciado por processos anteriores, como o enfrentamento contra a reforma da previdência social na Argentina, em dezembro de 2017, a rebelião contra o governo de Daniel Ortega, na Nicarágua, e a greve geral na Costa Rica, ambas em 2018; as rebeliões anteriores no Haiti e a luta contra o governo de Juan Orlando Hernández Alvarado, em Honduras.

A certa altura, um fato que parece menor (como a remoção de subsídios aos combustíveis e um aumento na passagem de transporte público) foi a faísca que inflamou o barril de pólvora. Muitos anos de aceitação mais ou menos passiva também produzem uma raiva acumulada que explodiu com força: “Não são 30 pesos, são 30 anos”, dizem os cartazes do povo chileno em referência a três décadas de neoliberalismo, nas quais o país se tornou um laboratório. O ministro Paulo Guedes e o governo Bolsonaro querem implementar o mesmo projeto no Brasil.

Essa raiva das massas contra tantos anos de ajustes e ataques permanentes ao seu padrão de vida se combina com a percepção de que governos e regimes políticos são responsáveis pela crescente deterioração. Todos os governos burgueses atacam os trabalhadores porque não têm alternativa para garantir as taxas de lucros dos capitalistas.

Por isso, no terreno fértil para que ocorram explosões sociais, combinam-se dois processos. Um é a luta contra os governos de direita burgueses, explicitamente capitalistas e pró-imperialistas, como no Chile e na Colômbia. O outro é a deterioração e a degradação dos governos burgueses populistas (alguns até se dizem socialistas) derivados de ditaduras, como na Nicarágua e na Venezuela.

Essa combinação – grande ascenso de massa, deterioração social e crise de governos e regimes – configura, em muitos casos, o que os marxistas chamam de “processos revolucionários”, ou seja, situação em que a questão do poder pode ser apresentada aos trabalhadores. Nas palavras de Lenin: “Quando os de cima não podem continuar governando como antes e os de baixo não querem continuar vivendo como antes, e intensificam muito sua ação revolucionária.”

Os protagonistas
Cada país apresenta particularidades nos setores sociais e nos métodos com os quais a rebelião ocorre.

No Equador, era evidente que a vanguarda eram os camponeses liderados pela Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), que tomaram as cidades sem a participação de trabalhadores organizados Na Bolívia, a base da resistência ao golpe foram os habitantes dos bairros de El Alto e os setores camponeses dos povos originários. No Chile, adquire um caráter semi-insurrecional urbano e popular, com participação parcial de trabalhadores sindicalizados, portuários e da construção sobretudo. Na Colômbia, a classe trabalhadora está no centro do processo, e isso foi expresso numa greve geral muito forte em 21 de novembro.

Além disso, no Chile, é possível ver algo que se manifestou em várias partes do mundo: participação ativa nos confrontos de uma juventude precarizada, sem perspectiva de futuro no capitalismo de hoje. Esse fenômeno já era evidente no Equador, mas no Chile adquiriu um grau de organização superior: a primeira linha, essencial para a defesa das mobilizações contra a repressão da polícia.

OBSTÁCULOS
A crise de direção revolucionária

No Programa de Transição, escrito em 1938 para a fundação da IV Internacional, Trotsky analisou que as condições objetivas da revolução socialista estavam mais do que maduras. No entanto, o fator subjetivo, ou seja, a existência de uma liderança revolucionária disposta a levar essa luta até o fim, estava muito atrasada. É a “crise da direção revolucionária” que atrasa todos os processos revolucionários.

Em alguns casos, as direções traidoras são capazes de conter as lutas de forma direta e levá-las ao beco sem saída das negociações, abortando ou atrasando sua dinâmica objetiva em direção ao poder. Foi o que a liderança da Conaie fez no Equador, que interrompeu a luta contra o governo de Lenín Moreno. Foi o que Evo Morales e o seu partido, MAS, também fizeram com a resistência ao golpe de direita que levou ao beco sem saída de um processo eleitoral condicionado.

No caso chileno, as direções traidoras, influenciadas pelo Partido Comunista e pelo Partido Socialista, estão muito mais em crise e dispersas, como resultado de sua responsabilidade e cumplicidade na transição acordada nos anos 1980 que deu origem ao regime atual. Assim, eles têm muito menos capacidade de controle direto das massas. Isso explica a combatividade e a continuidade do processo revolucionário.

Contudo, a ausência de uma alternativa de direção revolucionária tem várias consequências negativas. Em primeiro lugar, dificulta que a classe trabalhadora organizada possa entrar em cena como centro de mobilização. Também atrasa a construção de organismos que coordenem as lutas, como as assembleias populares, que são travadas num ritmo mais lento do que o processo revolucionário exigiria. Por fim, embora as direções traidoras estejam em crise, esse espaço vazio lhes permite continuar influenciando e operando para enfraquecer a luta e tentar levá-la ao caminho das negociações com o governo Piñera.

DE OLHO
As respostas da burguesia e do imperialismo

Sem dúvida, a burguesia nacional e o imperialismo não permanecem passivos e respondem com diferentes mecanismos para derrotar, conter ou adiar as lutas revolucionárias. No continente, a repressão policial muito dura se combina a pactos e negociações com as direções de partidos de oposição e sindicatos, como aconteceu, por exemplo, no Equador e se tenta fazer no Chile.

Em outros casos, trata-se de desmontá-las por meios eleitorais, como na Argentina, com o triunfo do kirchnerismo, ou impedi-las com a expectativa da eleição de Lula à presidência do Brasil, em 2022, por exemplo. No caso boliviano, mobilizações legítimas contra a fraude eleitoral de Evo foram capitalizadas por um setor burguês de ultradireita que, aliado às Forças Armadas, deu um golpe militar.

O imperialismo está alerta. O governo de Donald Trump tenta restringir as respostas às lutas, mas agora começa a se concentrar na prevenção das explosões. O chefe da diplomacia dos Estados Unidos, Mike Pompeo, disse: “A Casa Branca prestará assistência financeira aos governos legítimos da América Latina, para impedir que os protestos se transformem em ‘revoltas sociais’”. Os países do imperialismo europeu também estão atentos para agir na contenção de mais explosões revolucionárias.

CAMINHOS
As tarefas dos revolucionários

Quando os processos revolucionários explodem, é evidente que a primeira tarefa dos revolucionários é intervir neles e incentivá-los para que a mobilização e a organização das massas avancem. Porém devemos estar cientes de que, por várias razões, chegamos a eles com uma relação de forças muito desfavorável contra as direções traidoras, mesmo quando estão desacreditadas e dispersas. Os processos revolucionários ajudam a melhorar essa correlação, mas, com a velocidade em que ocorrem, na maioria dos casos, eles não dão margem de tempo para resolvê-lo, e as lutas revolucionárias são freadas ou adiadas.

A pior coisa que podemos fazer é cair em desespero. Os revolucionários devem apresentar-se com propostas para desenvolver a fundo a luta pelo ponto mais sentido pelo povo (o “Fora Piñera” no Chile ou “derrotar o golpe” na Bolívia) e combater as propostas das direções traidoras no movimento.

Nesse contexto, trata-se de apresentar nosso programa de resposta mais estratégica às dificuldades que geram a rebelião: a tomada do poder pelos trabalhadores para iniciar a construção de uma sociedade socialista. Nessa perspectiva, a construção e o fortalecimento do partido revolucionário e as organizações de luta das massas são as duas tarefas essenciais de nossa intervenção.

Confiamos plenamente nos trabalhadores e em sua capacidade de avançar com suas experiências. Mas se as direções traidoras conseguirem desacelerar ou adiar os processos revolucionários num estágio anterior, sabemos que outros virão num futuro próximo. Nesse caso, devemos alcançá-los com mais força e influência, com mais experiência dos combatentes. Em outras palavras, mais próximo do triunfo estratégico.

Publicado no Opinião Socialista nº 583