Leia artigo publicado no dia 11 de outubro, no counterpunch.comA escala do desastre traumatizou o país inteiro, ou quiçá a maior parte. Aqui, em Lahore, um grupo de pessoas que recolhiam fundos emergenciais para o terremoto foi preso e multado. Estava desviando dinheiro para si próprio. Mesmo em meio ao desastre, a vida continua. Como uma gigante revoada de abutres, a mídia global aterrisou no país. As mesmas imagens foram repetidas a cada minuto nos últimos dias. Os mesmos comentários banais. Logo irão se cansar e ir embora. Quando realmente necessária, para monitorar a ajuda emergencial e a reconstrução, para fiscalizar fundos, alertas e a inevitável corrupção (no passado recente cobertotes e cestas básicas para vítimas de inundações foram vendidos abertamente no mercado negro), ela [a mídia] não se apresenta. O Sul do Equador só vale a pena ser visitado se e quando acontece um desastre. Noticiar e desaparecer. E quando o circo da mídia se aproxima da população do Norte – recorrentes lapsos de memória – também se esquece. O Paquistão nunca esquecerá este horror.

O quadro a noroeste do país é muito pior do que foi relatado. O primeiro-ministro, Shaukat Aziz, pelo qual o Banco Mundial nutre especial predileção, perdeu a calma com jornalistas locais em reportagem sobre a destruição de escolas e a morte de centenas de crianças. “Por que o sensacionalismo? Sejam otimistas!“. O tom defensivo era desnecessário. Ninguém culpa o regime por terremotos e, mesmo os em geral eloqüentes vizinhos de fronteira e Mulás afegãos, loucos para pronunciar o Katrina como um castigo divino pela guerra dos EUA, caíram no silêncio. Por que Alá castigaria os alicerces do Islã no Paquistão?

A fatura da morte foi subestimada. Balakot, uma pequena cidade que serve de entrada para o belo Vale Kaghan – fortemente dependente do turismo sazonal -, foi destruída. Os corpos abundam na cidade. De acordo com estimativas atualizadas, pelos menos metade da população de 100 mil está morta. Toda uma geração foi varrida do mapa. Os sobreviventes estavam, até poucos dias atrás, sem comida ou água em função do bloqueio das estradas e da falta de helicópteros.

É a mesma estória em Muzaffarabad, na Cashemira paquistanesa. Tudo está em ruínas. Lá houve manifestações anti-governo e a população saqueou lojas em busca de alimentos, exatamente como em Nova Orleans. Ainda, na fronteira indo-paquistanesa, um estado de permanente tensão é deliberadamente alimentado por ambos os lados, por mais uma tragédia. Quatrocentos soldados paquistaneses, enquanto sentados em suas trincheiras, foram esmagados à morte no momento em que o muro da montanha que os protegia colapsou, enterrando-os vivos.

E a ajuda emergencial? O governo faz o seu melhor, mas não é o suficiente. A falta de uma infra-estrutura apropriada, sem previsão orçamentária suficiente para tragédias inesperadas e um absoluto despreparo – em detrimento dos desastres anuais de menor escala -, custaram incontáveis vidas. Assistir o General Musharraf na televisão estatal lamentando-se pela falta de helicópteros foi educativo. A poucas milhas ao norte da área do desastre há uma grande frota de helicópteros pertencentes às forças armadas do Norte ocupando parte do Afeganistão. Por que os comandantes militares de países como EUA, Alemanha e Grã-Bretanha não liberaram alguns deles para salvar vidas? A Guerra estaria tão árdua como para impedir sua ausência por poucos dias? Cinco dias após o terremoto, os EUA liberaram oito helicópteros das tarefas de guerra para o transporte de suprimentos para as vilas atingidas. Muito pouco, muito tarde.

As forças armadas paquistanesas foram postas em ação, mas batalhões dispersos aqui e acolá, não servem para a ajuda emergencial. Elas não foram treinadas para salvar vidas e os relatos recentes de ataques a comboios, procurados por multidões enfurecidas muito antes de atingir o destino final, é um indício do caos. Mesmo em tempos normais, os pobres têm acesso limitado a médicos e enfermeiras. O “estado da arte” de hospitais nas grandes cidades refere-se exclusivamente aos ricos. A escassez de equipes médicas tem sido uma maldição durante os últimos cinqüenta anos. Nenhum regime, militar ou civil, teve sucesso em criar a infra-estrutura social adequada, uma rede de assistência para as camadas sociais populares que compõem a ampla maioria da população. Em tempos como estes, o país inteiro sente a necessidade, mas logo será esquecida, até o próximo desastre. Num mundo privatizado, o Estado não é encorajado a financiar o sistema social. As coisas estão ruins esta semana, mas ficarão ainda piores quando as equipes de resgate chegarem nas áreas ainda inacessíveis.

Tariq Ali é historiador paquistanês radicado na Inglaterra e pertence ao comitê editorial da revista marxista britânica “New Left Review“. É autor de livros como “Street Fighting Years” (no prelo), em co-autoria com David Barsamian, “Speaking of Empires & Resistance” e lançou seu primeiro romance político no Brasil – “Redenção”, Ed. Record, 352 págs. – uma sátira ferina à esquerda tradicional, com o presidente Lula entre seus personagens. Correio eletrônico: [email protected]