Quem tem ido ao cinema recentemente talvez tenha se deparado com grandes produções pouco ou nada convencionais. Tudo parece ter começado com o filme O Senhor das Armas, que retrata o comércio mundial de armamentos através do personagem interpretado por Nicolas Cage, emigrante ucraniano aos EUA, negociador de armas e munições em escala mundial, íntimo de militares, políticos e grandes empresários. O Jardineiro Fiel é outro bom exemplo, desvendando a poderosa indústria farmacêutica e sua prática de fazer de africanos famélicos cobaias baratas para seus medicamentos. Até mesmo o inusitado Jim Carrey parece ter pegado carona nesta vaga e feito sua crítica às grandes corporações e anunciado na grande tela a podridão do capitalismo americano e as mentiras do governo Bush em Loucuras de Dick e Jane.

A produção mais recente nesta onda é de George Clooney, que também começou sua carreira se submetendo aos ditames de Hollywood (Batman, etc.) Estão em cartaz no Brasil dois de seus filmes: Boa Noite e Boa Sorte, que retrata as pressões que a imprensa investigativa sofria nos EUA nos anos do macarthismo e Syriana, onde tem o papel principal e ainda é o produtor executivo do filme.

Syriana é a história da indústria petrolífera e de todos os interesses sórdidos que estão em jogo. O enredo é uma verdadeira teia de histórias de pessoas aparentemente distantes, até mesmo geograficamente: Clooney, dezenas de quilos mais gordo, barbudo, com entradas no cabelo e desprovido de todo o glamour de seus filmes passados vive o agente da CIA Bob Barnes, infiltrado no Irã. Seu personagem foi inspirado no livro de memórias do ex-agente secreto Robert (Bob) Baer. Em sua lógica, Barnes-Baer sempre acreditou estar servindo a uma causa justa. Porém, em determinado momento, a CIA começa a sofrer pressões e um bode expiatório precisa ser encontrado. Matt Damon, de Touro Indomável, é um consultor de um programa de televisão em Genebra. Seu papel de analista imparcial começa a se abalar quando sua vida e a de sua família entram para o círculo do dinheiro e da influência dos grandes xeiques produtores de petróleo do Oriente Médio. A tal ponto que ele será confrontado com a escolha entre o dinheiro e a memória de seu filho. Jeffrey Wright, o Winston do bom Flores Partidas, é o consultor escrupuloso que logo se vê as voltas com a negociação de uma gigantesca fusão entre duas indústrias petroleiras com interesses no Irã. Até onde ele vai conseguir ficar limpo em meio a tanta corrupção?

Syriana é um tapa na cara daqueles que ainda acreditam no papel humanitário-democratizador dos EUA no Oriente Médio. Gaghan e Clooney – não esqueçamos o poder do produtor em Hollywood – mostram com clareza como quando os interesses econômicos norte-americanos se encontram ameaçados, eles se revelam os maiores algozes da ideologia que tanto professam. Que dizer de um Estado que prega a democracia e suas instituições quando frente à escolha em apoiar um herdeiro com idéias progressivas (parlamento, sufrágio feminino, etc) ou seu irmão corrupto, mas defensor da maneira como os negócios petrolíferos são feitos, eles escolhem justamente este último? A corrupção também está presente do começo ao fim do filme: o Estado americano, seu sistema jurídico, parlamentar, é duramente criticado. O discurso de Danny Dalton perante o Senado americano é uma verdadeira pérola, assim como sua conversa com Bennett Holiday e sua sanha por Milton Friedman, o papa do neoliberalismo. O filme mostra também como os EUA exploram as várias intepretações possíveis do Alcorão a seu favor, satanizando os grupos que professam aquelas que se chocam com seus interesses e se aliando aos “moderados”, leia-se os submissos a eles.

Syriana também é esteticamente muito bonito. A câmera instável de Gaghan consegue acentuar ainda mais o clima de tensão do filme. Seus planos fechados transmitem com força a expressão dos personagens. Não surpreende que este recurso cinematográfico esteja presente num filme de Clooney. Em Boa Noite e Boa Sorte, ainda em cartaz, esse recurso é levado ao máximo: não há praticamente planos abertos, vê-se somente rostos de personagens, a câmera nunca está no plano do rosto, mas sempre de cima para baixo (plongée) ou de baixo para cima (contre-plongée), acentuando ou diminuindo o tamanho dos personagens. Syriana também é um filme repleto de pequenos detalhes: um aperto de mão negado a Holiday (Wright, seu ator, é negro) ou o filho de Bryan Woodman (Matt Damon) que morre eletrocutado, ou seja, por uma descarga de energia, a ironia fina da mudança de uma cena abjeta que começa com o áudio da cena seguinte mostrando uma grande barão do petróleo sendo homenageado, etc.

O ponto negativo do filme é a dificuldade de sair de certos marcos estabelecidos em Hollywood, como, por exemplo, a necessidade de tratar de crises familiares e encontrar para eles sempre um happy end. Falar dos dramas familiares das pessoas é uma coisa, mas Hollywood mostra 100% de casos com problemas bem sucedidos, uma porcentagem que está longe de ser condizente com a vida real.

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