Mas é preciso avançar nas lutas pela legalização do abortoO Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por maioria, no último dia 12 de abril, que é legal a realização de abortos de crianças anencéfalas – termo científico para denominar pessoas que nascem sem cérebro. De acordo com a lei brasileira, o aborto só é permitido em casos de estupro ou risco de vida para mãe.

A aprovação permite que, a partir de agora, as mulheres que se encontrem nessa situação possam interromper a gravidez. Antes, elas eram obrigadas a passar nove meses por uma verdadeira tortura psicológica, cientes de que sua gravidez resultaria numa criança que não sobreviveria. Casos excepcionais só eram autorizados mediante processos judiciais que, algumas vezes, só terminavam após o nascimento.
Apesar desta terrível e dolorosa situação, várias organizações religiosas (de católicos e protestantes) se pronunciaram contra a decisão, argumentando que este poderia ser um passo para legalização do aborto no país.

Proibição do aborto: um crime contra as mulheres
No que se refere ao direito ao aborto, o Brasil está na contramão de quase todos os países do mundo, inclusive os mais frágeis economicamente. Na Europa e em alguns países do continente americano, como EUA, México e Uruguai, o aborto é permitido até 12 semanas, ou seja, três meses de gestação.

A situação no Brasil é resultado da forte ofensiva dos setores conservadores e da Igreja, que impõem concepções religiosas sobre as políticas de Estado e ignoram uma realidade dada e inquestionável em nosso país: o aborto acontece e, por ser feito, em sua maioria, de forma clandestina, mata milhares de mulheres todos os anos.

De acordo com dados do próprio governo, cerca de 1,2 milhão de abortos são realizados ao ano. A maior parte das mulheres que faz aborto é católica, depois vêm as evangélicas e, em terceiro lugar estão as que pertencem a outras religiões ou a nenhuma delas. Esse dado demonstra que o que motiva a realização do aborto não é a crença religiosa, mas, sobretudo, as condições para as mulheres terem filhos.

É extremamente irresponsável que o Estado brasileiro siga negligenciando essa realidade, enquanto a enorme quantidade de mortes provocadas por aborto clandestino – 200 mil por ano – revela um problema de saúde pública, que deveria ser resolvido nesses marcos, ou seja, com investimento em programas que garantissem que a prática fosse realizada com segurança nos hospitais públicos.

Não podemos aceitar que o mesmo Estado que corta verbas da saúde, comprometendo qualquer programa de educação sexual ou de distribuição de anticoncepcionais gratuitos, puna as mulheres que, por não terem esse tipo de assistência, ficam grávidas várias vezes ou ficam grávidas muito novas. E todos sabem que são as mulheres trabalhadoras as que mais sofrem com essa realidade, pois as mulheres ricas podem pagar abortos em clínicas caríssimas e seguras.

Dilma: de mãos dadas com os conservadores
Desde a eleição, Dilma se comprometeu com a bancada conservadora do Congresso através da “Carta ao Povo de Deus”, na qual se compromete a não discutir a legislação sobre o aborto no Brasil – que, diga-se de passagem, ainda é muito atrasada.

Essa postura, que fecha os olhos para milhares de mulheres que morrem vitimadas por abortos clandestinos, não é uma “novidade”. Em 2009, Lula assinou o “Acordo Brasil-Vaticano”, no qual garantia ao “santíssimo padre” que seu governo não promoveria a legalização do aborto. O gesto contrariava, inclusive, o programa histórico do próprio PT e até mesmo uma resolução da ONU (Organização das Nações Unidas) que, desde 1990, considera o aborto um problema de saúde pública.

Este conservadorismo tem contaminado todas as esferas do governo. A atual responsável pela Secretaria de Mulheres no governo federal, Eleonora Menecucci, por exemplo, apesar de historicamente ter defendido a legalização do aborto, hoje, para preservar a aliança do governo Dilma com os setores reacionários, não se pronuncia mais sobre o tema.

Enquanto isso há um projeto de lei, já tramitando pelo Congresso, que cria um estapafúrdio “Estatuto do Nascituro” que, ao conceder “direitos civis” ao feto, retira das mulheres qualquer direito sobre seu próprio corpo, abolindo inclusive as possibilidades de aborto já previstas pelo Código Penal (estupro e risco de vida da mãe).

Se isto não bastasse, com o objetivo de maquiar suas posturas conservadoras, o governo Dilma fez aprovar a medida provisória 557/2011, que, apesar de prometer o combate à mortalidade materna, na prática, nada mais faz do que criar um cadastro para identificar as mulheres grávidas que procuram os postos de saúde, provavelmente para criminalizá-las, caso optem por interromper a gravidez.

Uma vitória das trabalhadoras, não do governo
Por estas e outras, temos certeza que, se dependesse da vontade do governo, o aborto em casos de anencefalia nem sequer teria entrado em discussão. A votação só foi possível devido a pressão da luta das mulheres e dos movimentos sociais. Afinal, não foi o governo e sim a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde que, em 2004, apresentou a resolução que obrigou o Supremo a se posicionar sobre o tema.

Por isso mesmo, o resultado da votação do STF apesar de ter sido, felizmente, favorável às mulheres e seus direitos, também precisa ser avaliado com cautela. Afinal, não é esta a prática costumeira da “justiça” brasileira. Muito pelo contrário. O judiciário desse país só se posiciona a favor das mulheres trabalhadoras quando há muita luta. E os mesmos juízes que se posicionaram contra esta situação desumana, não demonstram nenhuma sensibilidade em relação as inúmeras mulheres pobres que morrem vítimas de procedimentos clandestinos.

Anticoncepcionais para não abortar. Aborto legal, seguro e gratuito para não morrer
Por isso mesmo é preciso intensificar as mobilizações. Temos que aproveitar as poucas vitórias que a justiça nos assegura, como essa medida sobre os anencéfalos, para potencializar nossas lutas em defesa da legalização do aborto.

Ao contrário do que dizem os fundamentalistas e conservadores, isto não tem nada a ver com a defesa da “morte”. É o oposto. O que as mulheres trabalhadoras precisam são plenas condições para, se quiserem, tenham seus filhos de forma saudável. E, da mesma forma, aquelas que não desejarem seguir com uma gravidez também devem ter suas vidas preservadas, ao contrário do que ocorre hoje, quando milhares perdem a vida em agulhas de tricô, em procedimentos caseiros ou em insalubres clínicas clandestinas transformadas em negócios ultra-lucrativos.

Defender o aborto não significa defender a obrigatoriedade de fazê-lo, mas, sim, o direito de que a s mulheres possam decidir sobre fazê-lo ou não. É assegurar à mulher a autonomia sobre seu corpo e sua saúde. E isto é apenas parte de uma luta maior. A luta por investimentos públicos em saúde, que assegurem atendimento integral às mulheres, por orientação e educação sexual, pela distribuição gratuita de anticoncepcionais em todas as unidades de saúde (sem burocracia e moralismo). Ou seja, condições mínimas para que a mulher possa ter a chance de evitar uma gravidez indesejada. Condições que hoje são negadas às trabalhadoras brasileiras.