“A mão está suja, mas pode apertar que o coração é limpo”, diz José Arnaldo Gonçalves, o “Maranhão”, enquanto segura um rodo com a outra mão. A camiseta da seleção contrasta com as botas de borracha quase na altura dos joelhos.

“Maranhão” é sapateiro. No fundo de casa, mostra uma oficina improvisada onde, com mulher e filhos, confecciona sapatilhas, sandálias e tamancos. Exibe orgulhoso algumas peças produzidas. Sandálias femininas, com delicado acabamento. “Sempre trabalhei com isso, minha vida toda, é o que sei fazer”, conta.

Há três anos, ele resolveu deixar a fábrica onde trabalhava para produzir por conta própria, no fundo de casa. Há de dois meses, porém, as poucas máquinas de sua oficina estão paradas. Desde que as águas tomaram conta de sua casa, no Jardim Pantanal, seus dias se resumem a puxar a lama e o lodo para fora do quintal.

Os pequenos cômodos ainda exibem uma marca, na altura em que o nível da água chegou, a um metro do chão. No quarto, eletrodomésticos estão empilhados sobre o colchão. Na cozinha, a geladeira está em cima de tijolos. Está vazia e funciona como prateleira.
Com o material e máquinas danificadas, Maranhão e sua família estão sem renda e sobrevivem com doações. “É humilhante isso para quem sempre trabalhou, eu não sou orgulhoso, mas nós sempre trabalhamos para conseguir nosso sustento”, diz. É mais um drama entre tantos causados pelas enchentes que tomaram conta da região da várzea do rio Tietê.

Desolação
Há dois meses, no dia 8 de dezembro, uma forte chuva desabou sobre a capital paulista, e vários bairros ficaram completamente alagados. Além do Jardim Pantanal, o Jardim Romano, Vila Itaim e Chácara Três Meninas foram atingidos. Só no Jardim Pantanal há 17 vilas, reunindo entre 25 e 30 mil famílias. Em torno de 9 mil famílias devem ter sido atingidas diretamente pelas enchentes, segundo Ronaldo Delfim Souza, líder comunitário da região e integrante do movimento Terra Livre.

Dois meses depois, no entanto, muitos locais continuam alagados. No Jardim Pantanal, a água só abaixou na última semana, depois do dia 7 de fevereiro. Mesmo assim, enormes poças dominam as ruas de terra. Paradas, acumulam sujeira e lodo, transformando-se em verdadeiros criadouros de mosquitos e todo tipo de bichos. Até uma cobra foi recolhida em uma casa pelos moradores.

Caminhar pelas ruas é um exercício de equilíbrio para desviar do esgoto a céu aberto e a lama. Mesmo nos lugares onde não há esgoto, o cheiro é forte. Sem alternativa, todos, sobretudo crianças, literalmente, enfiam o pé na lama. Não causa surpresa, assim, os diversos casos de doenças relatados pelas famílias, principalmente de leptospirose, causado pela água contaminada. Por todo lado, é possível encontrar pessoas que reclamam de manchas na pele ou que tiveram febre ou viroses.

Enchente
“Ali foi onde encontraram as duas meninas mortas”, diz Arlete Pescarollo, esposa de “Maranhão”, apontando com o braço cravejado por picadas de mosquito um local conhecido como “pesqueiro”. As crianças morreram afogadas na enchente e foram achadas no dia 10 de janeiro, numa espécie de lago formado pela água que escoa do Tietê. Ao todo, 12 pessoas morreram no bairro.

Enquanto na maioria das casas os moradores se preocupam em retirar a lama e os móveis estragados, algumas ainda se encontram inundadas. Como a casa de Rosalvo José Santos, um sobrado cujo quintal e o térreo estão totalmente debaixo d’água. Ele e a família foram obrigados a abrir um buraco na casa do vizinho, abandonada, para poder sair de casa. Carregaram o que puderam para o andar de cima, onde oito pessoas sobrevivem, desde então, apinhadas em três cômodos pequenos.

Quando a enchente começa, o tempo para salvar as coisas é curto. Logo que percebeu a água subindo, a família da estudante Keilanne Feitosa Paiva levantou móveis e eletrodomésticos. Só não deu para salvar o guarda-roupas. “E no dia 23 [de janeiro] agora encheu mais ainda, foi um pânico geral, pois ninguém estava esperando tanta água”, diz. “Eu moro em frente a um córrego e, quando encheu e alagou, a água parou e ficou lá, represada”, conta.

Revolta
O sentimento entre os moradores é principalmente de revolta. Diante do cenário de caos, a prefeitura se limita a dar cestas básicas. “O governo não faz nada, tanto o federal, quanto o estadual ou o municipal, o povo é que se ajuda”, conta Maranhão. A prefeitura ainda pressiona os moradores a abandonar as casas em troca de um auxílio-aluguel de meros R$ 300.

Outra opção é uma indenização de R$ 2 mil para desapropriação do imóvel. Além de extremamente baixo para uma casa, só vale para imóveis regulares o que, segundo a prefeitura, é apenas 5% das casas do Jardim Pantanal, uma área de ocupação.

A revolta é ainda maior, pois o governo não é só visto como ausente. A opinião unânime é que o governo é o verdadeiro culpado pelas enchentes, não as chuvas. “O pessoal está muito frustrado, pois sabe que isso tudo foi provocado”, diz Keillane.
Rosalvo, porém, apesar de toda a pressão do governo, não pensa em abandonar a casa que construiu em 12 anos. Apenas sorri, coça a cabeça e diz: “foi aqui que criei meus filhos mais pequenos, foi aqui que os mais velhos cresceram e é aqui que fiz meus amigos, minha vida está aqui”.

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