O diretor georgiano Mikhail Kalatozov era já internacionalmente reconhecido quando, no final dos anos 50, conquista a Palma de Ouro no Festival de Cannes, por seu Quando Voam as Cegonhas. O filme de Kalatozov seria a primeira película soviética a alcançar projeção mundial após a morte de Stálin. Dali a um par de anos em um longínquo quadrante do planeta a Revolução Cubana logra derrubar a odiosa ditadura pró-imperialista de Fulgencio Batista. Nesse contexto, após a ruptura das relações diplomáticas entre Cuba e EUA, a então URSS decide apoiar uma produção cinematográfica que representasse, nas grandes telas, a história da revolução social na Ilha Caribenha. Tratava-se de colocar a experiência e o prestígio internacional de Kalatozov a serviço do ideário socialista da Cuba pós-revolucionária, tal qual Eisenstein fizera pela União Soviética ao retratar a insurreição da rebelde Odessa de 1905, em seu clássico Encouraçado Potemkin. Com cerca de 200 pessoas trabalhando no projeto, incluindo soviéticos e cubanos, um dos objetivos do filme era responder à política da Guerra Fria, de forma ofensiva.
Após a insólita gestação de longos dois anos (intervalo excessivamente extenso para a produção em cinema), finalmente nasce a produção cubano-soviética Soy Cuba, com estréia nos cinemas de Havana e Moscou, em 1964. Sob fotografia de Sergei Urusevsky e roteiro a quatro mãos, por Enrique Pineda Barnet e Yevgeny Yevtushenko, o filme, contudo, não é bem-recebido (para dizer pouco!) por razões diversas, tanto na Rússia quanto em Cuba , sendo relegado ao absoluto esquecimento até sua ocasional redescoberta nos EUA, por diretores hollywoodianos do calibre de Francis Ford Coppola e Martin Scorsese, depois de um ostracismo de quase 30 anos. À época de seu lançamento, a película causou ojeriza, cólera e, finalmente rechaço em claro desacordo com o espírito de seu tempo. Os alucinantes movimentos de câmera, o virtuosismo da composição fotográfica e dos planos, além do argumento de grandiloqüente poema épico renderam-lhe, então, uma breve campanha por parte dos cineastas norte-americanos que mediante vultuoso argumento de autoridade e através de sua subseqüente divulgação, dentro dos EUA e no exterior consagraram-lhe, com justeza, o estatuto equivalente a de um privilegiado capítulo da história do cinema internacional.
Após a remasterização do filme, a partir de seus negativos originais, a projeção nos EUA ultrapassou os círculos de cinéfilos e iniciados. Emocionado, um historiador norte-americano, George Tunner, teria comparado o achado cinematográfico à descoberta, por parte de um suposto paleontólogo, de fósseis incólumes de um Mamute Siberiano… em plena Costa do Caribe (!). Pronto. O documentarista carioca Vicente Ferraz formado na Escola Internacional de Cinema e Televisão (EICTV), de San Antonio de los Baños, a cerca de 35Km de Havana tinha já um título para seu filme: Soy Cuba o Mamute Siberiano, produto do encontro entre as escavações arqueológicas de Ferraz e a co-produção fílmica internacionalista, congelada pelo advento da Guerra Fria. Mais do que mero making-of aferrado à narrativa retrospectiva sobre o filme em si o documentário brasileiro busca explorar as principais determinações que condicionaram a tortuosa trajetória do filme: da produção à distribuição, das câmeras cinematográficas às salas de cinema, dos anos 60 ao século XXI. Trata-se de uma bela ponte entre o acontecido, o narrado e o fazer do documentarista, verdadeiro historiador da memória visual.
Soy Cuba e o contexto intelectual pós-revolucionário
Vicente era um jovem estudante brasileiro de cinema em Cuba, nos anos 80, quando teve seu primeiro e decisivo contato com o abraço-de-urso (Gott, 2005) de Kalatozov a Cuba. Anos depois, pouco antes de iniciar seu filme projeto audiovisual em planejamento já desde os tempos da EICTV , Scorsese e Coppola descobriram a obra numa retrospectiva do diretor soviético, exibida no no Telluride Film Festival (EUA). A história do opus cubano-soviético, que se tornou imediatamente film non gratto em ambos os países que o produziram após um curto período de exibição , deu origem ao documentário que marcou a estréia do brasileiro na direção de longas-metragens, adquirindo destaque na Seleção Oficial do Festival Sundance de Cinema Independente, além de ser premiado nos festivais de Chicago (EUA), Guadalajara (México) e Gramado (Brasil). O fio condutor da pesquisa estético-social do documentário de Ferraz parte de uma indagação fundamental. Como um filme brindado com tamanha liberdade de criação, já seja objetiva ou subjetiva que enfim resultou maldito no auge histórico de sua razão-de-ser, ao menos enquanto libelo em defesa da revolução (tendo, inclusive, sido banido de circulação, por décadas a fio), pôde ressurgir, anos depois, na condição de um clássico? Em poucas palavras: o que haveria levado Soy Cuba do apressado banimento à glória infinita? Antes, vejamos.
A concepção de Soy Cuba iniciou-se pouco após a tentativa de invasão norte-americana à Baía dos Porcos, quando se dá o começo da relação entre Cuba e URSS. Entre os anos de 1959 e 1961, momento de definição do caráter socialista da revolução cubana, havia na ilha um intenso cenário de debate intelectual em meio a profundas transformações sociais, econômicas, políticas e culturais sobre a definição da natureza da relação entre cultura e política ou, noutros termos, entre arte e revolução. A Ilha passou a receber não apenas mais subsídios tecnológicos, materiais e financeiros; mas também a visita de grandes intelectuais críticos do período Jean-Paul Sartre, Wright Mills, Pablo Neruda etc. , todos desejosos de presenciar in persona o início da revolução cubana. Neste período, Cuba conheceu a mais completa liberdade de criação artística, admitindo-se em seu interior o florescimento simultâneo das mais diversas escolas, tendências e correntes de pensamento no campo da revolução. Não é obra do acaso, neste sentido, a publicação do célebre opúsculo da concepção artístico-cultural defendida pela Oposição Trotskista (depois IV Internacional) o Manifesto por uma arte revolucionária independente (Breton e Trotsky, 1938) no suplemento cultural LR (Lunes de Revolución in: Miskulin, 2002), manifesto no qual se reivindica a independência da arte, para a revolução; a revolução, para a libertação definitiva da arte. Neste marco inserem-se propostas político-culturais como o Concurso Literário Casa de las Americas, o Festival Internacional de Ballet, a Exposição Soviética de Ciência, Técnica e Cultura e, ainda, a criação do Icaic o Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica , a primeira e mais duradoura medida em política cultural adotada pelo governo revolucionário. A inovação estética e a pluralidade temática, porém, não eram as únicas preocupações da política cultural do jovem Estado cubano. O ensaio geral de socialização da cultura (Galvão, 1994) enquanto proposta de popularização da arte constituiu o escopo central dos objetivos de iniciativas como o Noticiário Icaic Latino-americano, o Festival Internacional de Novo Cinema Latino-americano e, ainda, os veículos de projeção audiovisual ambulante, os cine-móveis, que levavam o cinema à população das regiões mais distantes do país. De qualquer maneira, pode-se afirmar sem margem a erro que a maioria absoluta da população cubana dispunha de fácil acesso aos filmes nacionais e estrangeiros (o preço do ingresso em um cinema havaneiro equivalia a cerca de R$ 0,20 ou menos).
Progressivamente, porém, a questão da liberdade de criação artística ia assumindo um caráter cada vez mais restrito (e restritivo). O discurso de Fidel Castro Palabras a los Intelectuales, 1961 e o I Congresso Nacional de Escritores e Artistas de Cuba, do mesmo ano, estabeleciam diretrizes gradualmente mais próximas aos matizes do cânone estético do real-socialismo e à construção da identidade e cultura nacional cubana como orientação-para-a-ação de artistas e intelectuais revolucionários. Uma tendência histórica que ainda que de forma embrionária ia conquistando determinada hegemonia em torno à política cultural cubana, a partir da monopolização dos meios de produção cultural junto aos membros do Partido Socialista Popular (futuro Partido Comunista Cubano) e, simultaneamente, abriam-se formas crescentes de censura/controle/dissolução de movimentos, grupos e instituições culturais que difundiam propostas artísticas de avant-gard (surrealismo, futurismo etc.) e reivindicavam um diálogo mais cosmopolita, com tendências intelectuais estrangeiras, para a construção da verdadeira cultura cubana. O exemplo mais sintomal neste sentido, mais uma vez, era a paradigmático redação do suplemento cultural LR que após advertências várias, repreensões públicas e censura governamental fôra fechada através de um decreto-lei que alegava falta de papel no Estado pós-revolucionário. Esse quadro geral, ainda sem estar de todo fechado, servir-nos-á ao final como chave interpretativa para a primeira (des) recepção do filme (e à ressurreição de 30 anos depois).
Inovações técnicas, experimentalismo formal e estrutura narrativa
A proposta de colaboração entre o Icaic e a Mosfilm o congênere instituto cinematográfico soviético não conheceu, literalmente, qualquer restrição dos governos de Moscou e Havana. Apesar do caráter de agitação e propaganda da obra (agit-prop) tributário do ideal revolucionário de transformação social através dos espetáculos de massas não houve qualquer condição ou exigência imposta pelo Kremlin à execução do filme, grande financiador do também grandioso projeto Ya Kuba. Tão-só o deslocamento de artistas da dimensão da troika formada por Kalatozov, Urusevsky e Yevtushenko já constitui, em si, um forte indício neste sentido. A subseqüente contratação de equipe profissional de 200 pessoas só faz corroborar isso. Por sua vez, Kalatozov, mal aportara à Ilha, foi já desde o início tratado como paxá. Note-se. Durante o processo de filmagem houve a Crise dos Mísseis, envolvendo Cuba, URSS e EUA; o que levou a humanidade ao umbral (ao menos era o que se pensava à época) de um holocausto nuclear. O episódio redundou no embargo econômico dos EUA à Cuba, a retirada da URSS do front de luta e, por fim, a consagração derradeira das relações bilaterais Cuba-URSS. Pois bem. Mesmo em pleno estado crítico de beligerância, aguda, com o imperialismo hegemônico, Kalatozov solicitou ao Exército nacional um destacamento militar inteiro para a filmagem de uma cena, e foi atendido, com um milhar de soldados cubanos! O evento, segundo depoimento de entrevistados cubanos, desguarnecera toda a proteção à fronteira Leste do país (!).
Por outro lado, as inovações técnicas, a serviço do experimentalismo formal, contaram com recursos tecnológicos altamente sofisticados. A utilização de película ultra-sensível (infravermelha, usada para observação lunar), à época exclusividade do Exército soviético, foi empregada em plena luz do dia emprestando textura metálica, pancromática e polissêmica aos negativos preto-e-brancos por nada mais do que virtuosismo visual. Lentes especiais de periscópios submarinos permitiram tomadas submarinas sem qualquer prejuízo imagético. Urusevsky diretor de fotografia tinha a luz como maior preocupação, vigiando atentamente cada fotograma, sob rígido controle da claridade impressa aos celulóides. Os exemplos abundam. O que mais impressiona no filme de 1964, além da extrema esteticização fotográfica, são os movimentos e travelings de câmera.
Desde a recente divulgação do filme por Coppola, Scorsese e Ferraz, o magistral e alucinante plano-seqüência que dá início ao filme vem sendo considerado como um dos momentos mais antológicos da cinematografia internacional. O cortejo fúnebre que inicia o plot de abertura é acompanhado pela câmera em primeiro plano , para logo se elevar, levando o espectador a sobrevoar o alto dos edifícios de Havana Velha, atravessando sacadas, entrando em uma fábrica de charutos habanos, saindo pela janela e, por fim, dando um verdadeiro rasante sobre a multidão que segue a procissão. A cena tanto impactou a Scorsese que este chegou a telefonar ao cinematógrafo do filme original de nome Aleksandr Kaltsastyj , dizendo-lhe que não poderia morrer sem saber como fôra feita [a tomada]. A câmera foi acoplada, por meio de um ímã, a um pequeno teleférico, alçado à parte superior de alguns prédios de Havana Velha através de um pequeno elevador, em cujo sistema de gruas, trilhos e cabos aerodinâmicos têm-se, ao final, a sensação de sobrevoar o cortejo. Enquanto isso, as massas serpenteiam o cortejo num movimento em direção a um fim, processo e trajetória , em metáfora da própria revolução. A grandiosidade da tomada panorâmica, captada por lentes grande-angulares, exerce a função narrativa de radicalizar os planos em proporções sobre-humanas com o intuito de intensificar o sentido de História. Uma das melhores tomadas que fazem de Soy Cuba um clássico foi realizada com um movimento de câmera lento, que leva a visão do espectador a acompanhar a ação de cima para baixo, de fora para dentro. Assim Kalatozov alcançou a magnitude daquilo que queria comunicar, filmando a multidão de figurantes do alto e pousando, lentamente, a câmera na ação dos protagonistas. O padrão, apesar do ineditismo, foi considerado romântico e naïf para o que se pretende um poema visual épico que deveria, supostamente, transmitir a força social da revolução. Não são poucos os que o associam ao modelo real-socialista, por se afastar da esfera dinâmica das massas anônimas (épico), enfocando disposições e energias heróicas de alguns poucos indivíduos (lírico, dramático). Mas, o que dizer do movimento inverso, realizado em momentos não menos decisivos do filme?
Trata-se de uma narrativa quatripartite. No primeiro fragmento, apresentam-se as formas e relações de dominação social da ditadura de Batista e seus sócios norte-americanos através de uma linda prostituta cubana submetida aos desígnios de um ianque. Logo depois, um camponês e sua família perdem a colheita de cana em função da ganância de empresas estrangeiras. Na terceira história, um grupo de estudantes luta nas ruas contra a polícia e, na parte final, observa-se a campanha dos guerrilheiros nas montanhas de Sierra Maestra. A música, variada e marcando cada momento, vem com uma voz em off, feminina, que recita os versos de Yevtushenko: Soy Cuba, soy el casino, los moteles, las barras y los burdeles, pero también las manos de este niño y de este viejo.
Metalinguagem: um filme sobre o filme
O documentário de Vicente Ferraz lança luzes sobre o processo de gestação e resgata a palavra de muitos dos envolvidos em sua produção. Há uma narração em off, bastante didática, além de uma estrutura clássica de documentário histórico na edição e montagem. Vai-se do simples ao complexo, mantendo-se a ordem cronológica dos sucessivos eventos. Daí surgem, no processo mesmo de estruturação documental, uma série de questões em aberto. A possível abertura de uma nova cinematografia latino-americana, a apreensão subjetiva do trabalho pelos protagonistas do projeto, a técnica empregada nos planos do filme ou o processo de compreensão de Cuba por parte do diretor etc.
Se, em Kalatozov, a preocupação com a estética parece vir sempre em primeiro plano daí a crítica sobre o privilégio da forma em detrimento do conteúdo Ferraz é abertamente anti-tecnicista e anti-virtuoso, mantendo-se à margem de qualquer recurso que o tornasse concorrente de um adversário imbatível: seu objeto. Quis fazer, através desse filme, uma analogia da história de Cuba dos últimos 40 anos. O lado humano do filme, da experiência de fazê-lo, foi o que mais me chamou a atenção, disse o documentarista. A narração privilegia as entrevistas, trechos do filme e um precioso material de arquivo do Icaic. A história das filmagens e da repercussão de Soy Cuba é recontada pelos depoimentos do co-roteirista Enrique Pineda Barnet, além de atores, do criador da trilha sonora, de membros da equipe técnica inclusive o cinegrafista Alexandre Calzatti, entrevistado na Rússia e do presidente do Icaic, Alfredo Guevara.
Vicente traz um híbrido de material documental, reportagem visual, cenas de arquivo, fragmentos de Glauber Rocha (terá o russo sido uma influência parda nesta geração de cineastas?) etc. O percurso que se visava descritivo torna-se, constatada a perplexidade da des-memorização sobre o filme, mais analítico. Não se trata de arrolar efeitos, mas buscar causas. Após Soy Cuba, os filmes cubanos deixaram de ter câmeras exclusivamente fixas e aprimoraram a direção de atores além de uma série de outros acúmulos pertinazes , constituindo uma referência parda para a produção posterior. Além do mais, o cinema, segundo a ordenação societal instaurada em 1959, era visto como poderoso instrumento no processo de transformação social. Vicente restabelece uma discussão central acerca da noção de arte revolucionária, ou seja, a relação entre práxis e estética. Soy Cuba se inscreve nessa perspectiva, buscando uma nova forma, que rompesse com o cinema burguês tradicional. Mas o que seria esse novo cinema? A frustração do povo cubano refere-se a não-identidade enquanto nação através deste cinema. Já na Rússia, a leitura engajada ou de tendência redundaria no negligenciamento de sua dimensão abertamente poética apesar dos personagens rasos e dramaturgia primária cegueira cognitiva criada pelas estruturas de percepção próprias do momento histórico. Daí que temos uma discussão clássica da transubstanciação estética da realidade social no cinema dito, grosso modo, político. A experimentação formal resultaria em não-adesão da audiência das massas, como ocorrera com o Cinema Novo brasileiro ou a Nouvelle Vague francesa ou o neo-realismo italiano. O que está em jogo não é o reflexo da realidade, mas a mediação, a partir de recursos cinematográficos, de um espaço estético, relativamente autônomo e com suas próprias leis de movimento.
Considerações finais
O depoimento do roteirista Enrique Pineda é esclarecedor: O Mamute foi para Soy Cuba como um abraço esperado por alguém por mais de 40 anos e recebido em seu leito de morte. Era enfim, a ressurreição do sonho de tantos trabalhadores, de toda uma nação, a transposição daquele que fora visto como um ideal falido. Foi como se o cinema voltasse a nascer pelo próprio cinema. Eu, particularmente não gostava do resultado do filme, mas a partir do documentário comecei a perceber valores essenciais, afirma Pineda.
O esquecimento mútuo, e ativo, marcou a produção da des-memória sobre a população cubana e soviética em relação à importante produção visual aqui tratada. Cubanos acharam por demais estrangeiro o olhar da câmera russa, assim como os russos sentiram-se por demais estrangeiros assistindo à produção autóctone sobre aquele povo-camarada. E, por constituir propaganda socialista, nunca fora exibido no ocidente capitalista. Optamos, enfim, por não falar mais sobre o enredo quatripartite de Soy Cuba (prostituta, camponês, estudantes, guerrilheiros). Da mesma forma silenciamos, de maneira autoconsciente, sobre a estrutura documental construída por Ferraz.
O primeiro, por indescritível que é as imagens valem realmente, perdoai o lugar-comum!, mais do que mil palavras , e o melhor é não encará-las com qualquer especulação abstrata sobre construção de personagens, dramaturgia, influências fílmicas (Eisestein, Wells, Cinema Novo etc.), trilha sonora etc. Recomenda-se que se alugue o DVD, imediatamente. É preciso vê-lo, já, a experiência é insubstituível. O segundo, bem, aí apenas usamos o bom senso para compreender que os cortes limpos da edição e montagem de Ferraz visam desobstruir as vias de exposição direta de Soy Cuba. Muitos quiseram repreender-lhe pela narração em off que desce dos céus de Deus Ex-Machina: omnisciente, omnipresente e omnipotente e lhe revela a parcialidade intrínseca de narrador-partícipe. Algo como aqueles velhos exercícios de física que se iniciam: um avião voa a 500 Km por hora (…) desconsidere o atrito do ar (!). Tecer longas teses sobre um documentário que se pretende simples e direto forma subordinada ao conteúdo; meio vinculado à mensagem , não nos parece razoável. E, de resto, trata-se da recuperação de uma memória que havia se perdido. E os personagens-protagonistas, cubanos e russos, falam por si sós. E só. Nada obstante, mais além do bem-vindo resgate, o documentário de Ferraz constitui-se como um necessário acerto de contas com os pressupostos do cinema político e, quiçá também, da política do cinema. Parafraseando a Gramsci, somos todos cineastas, e é com olhos de cineastas ou artistas, em geral que devemos encarar o problema.
No mais, não pretendemos aportar respostas prontas e acabadas à rica totalidade de relações e determinações várias que levaram ao apagamento das luzes da memória dirigida a um filme tão belo e significativo. Bastam as pistas indicadas ao longo do texto. Reduzir o documentário histórico de Vicente a uma simples hipótese diretiva seria tão torpe, e arrogante, quanto ineficaz. Preferimos tentar responder a outra questão, algo simétrica. Por que Soy Cuba foi agora redescoberto, celebrado e, em seguida, reconvertido em clássico? Que tem algo a ver com a queda do Muro de Berlim, toda a crítica especializada parece concordar. Diz-se que agora, destituído de seu momento histórico, torna-se mero objeto de fruição estética, neutro, esterilizado de qualquer horizonte de revolução social. Um fóssil cinematográfico, enfim. Quero crer que não. O espírito dos guerrilheiros cubanos ou dos operários russos ocupa mentes e corações que buscam representações estéticas em um passado não tão remoto. É a velha questão de aprender o novo idioma, a língua da revolução, em vir-a-ser, espelhando-nos nos clássicos de linguagens de outrora. Só que agora se tratam de energias e disposições desbloqueadas da opressão (política e cultural) de aparelhos contra-revolucionários como o stalinismo o foi, em suas mais diferentes versões inclusive a caribenha. A película Soy Cuba é a utopia emancipatória que se recria já sem amos a servir, mas sim inúmeros sujeitos dispostos a empunhá-la, como bandeira. Afinal, as questões colocadas por Soy Cuba a seu próprio tempo assim como a forma com que as respondeu não poderiam estar mais à ordem do dia. Que o digam os jovens franceses, os mineiros bolivianos, a intifada palestina ou mesmo os insurgentes iraquianos. Por fim, vida longa ao cinema documental (e à revolução socialista!).
Bibliografia
BANDEIRA, Moniz. O Marxismo e a Questão Cultural, em TROTSKY, Lev D.B. Literatura e Revolução. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980, 2ª ed.
BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
BRETON, André e TROTSKY, Lev D.B. (1938). Manifesto por uma arte revolucionária independente. Portal do PSTU, São Paulo, texto disponível na Internet:
DELÁCIO, Tiago. Escola de Cinema e Televisão Cubana: história escrita sobre negativos. Vermelho, São Paulo, 14/mai./2005, texto disponível na Internet:
LOPES, João. A Evolução da Política Cultural dos Bolcheviques e a Pintura na União Soviética: da liberdade ao monolitismo do realismo socialista (1917-1934). Marxismo Vivo, São Paulo, Nº 3, 2001.
FERNANDES, Florestan. Da guerrilha ao socialismo: a revolução cubana. São Paulo: Queiroz, 1979.
GALVÃO, Walnice N. As falas, os silêncios, em SOSNOWSKI, S. e SCHWARZ, J. (orgs.). Brasil: o trânsito da memória. São Paulo: EDUSP, 1994.
GOTT, Richard. From Russia with love. The Guardian, London, 12/nov./2005.
MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
METZ, Christian.. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972.
MISKULIN, Silvia C. A Política Cultural no Início da Revolução Cubana: o caso do suplemento cultural Lunes de Revolución. Outubro, São Paulo, Nº 5, 2002.
NEMER, Sylvia. Soy Cuba, el mamut siberiano: un encuentro con el pasado. Miradas Revista de la Escuela Internacional de Cinema y Televisión, La Habana, 2005.
SALLES, João Moreira. Sobre senadores que dormem: como Robert Drew revolucionou a linguagem do documentário. Bravo, São Paulo, Nº 91, ano 8, abr./2005.
TROTSKY, Lev D.B. (1923). Literatura e Revolução. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980, 2ª ed.
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.