Após a publicação do artigo de Valério Arcary sobre o segundo turno das eleições, abriu-se um debate na esquerda sobre a melhor tática para o momento. Leia abaixo artigo de Zé Maria em resposta ao texto do professor Marcelo Badaró

Há um debate intenso no interior da esquerda brasileira, aí incluídas as forças da esquerda socialista e várias organizações combativas do movimento sindical e popular, acerca da melhor localização política no conturbado cenário eleitoral do final do primeiro turno e início da disputa do segundo turno das eleições presidenciais. O PSTU definiu posição favorável ao voto nulo, o PCB também e o PSOL publicou nota orientando o voto contra Aécio, enquanto deputados do partido indicaram diretamente o voto em Dilma. A CSP-Conlutas divulgou posição favorável ao voto nulo. Guilherme Boulos, em artigo publicado na Folha, fala em onda conservadora que se expressou nas eleições, e o MTST divulgou nota chamando o voto em Dilma Roussef. Também vários intelectuais escreveram sobre o tema, dentre eles o companheiro Valério Arcary, o professor Lúcio Flavio e o professor Marcelo Badaró.

O texto de Valério Arcary já foi publicado neste espaço. Dos demais, estamos publicando em nosso site o artigo do professor e companheiro Marcelo Badaró. Trata-se de um bom artigo, com uma abordagem justa de vários aspectos do momento político atual. No entanto, o artigo avança em conclusões e aponta propostas e tarefas para a esquerda socialista que merecem uma melhor discussão. Neste texto, busco sistematizar as observações e opiniões distintas que tenho acerca do tema, buscando assim alimentar a discussão. Inicio com algumas observações sobre o debate da chamada “onda conservadora”.

Avanço conservador ou polarização social e política?
Há, de fato, elementos na realidade que poderiam indicar este sentido para os últimos acontecimentos. Alguns deles estão tocados no artigo de Guilherme Boulos, como o perfil dos deputados eleitos, a maior intensidade de manifestações direitistas, preconceituosas, etc. No entanto, estes são elementos de uma realidade que é mais complexa, partes de uma totalidade muito mais rica e é preciso evitar uma visão parcial e, portanto, equivocada do processo. Não por acaso, os vários textos que tem tratado da “onda” remetam seu início às manifestações de junho e julho do ano passado. Na verdade, estas reações direitistas e preconceituosas tem sim emergido no cenário político com mais força desde então. Mas é preciso contextualizá-las.

Sabemos das limitações que marcaram aquelas mobilizações, a ausência de uma participação da classe trabalhadora enquanto tal, da imensa confusão política e ideológica que permeou todo o processo. Aliás, não é por outro motivo que a candidatura que mais empalmou o processo de junho do ano passado foi justamente a de Marina Silva (que agora apoio Aécio Neves). Caíram como luva para ela as confusões e indefinições do processo. Mas tratou-se, de toda forma, de um processo tremendamente progressivo, em primeiro lugar porque se deu através de uma mobilização de massas que exigiu nas ruas mudanças no país, dos governos (das três esferas), o atendimento das demandas populares e que enfrentou e derrotou o aparelho repressivo do Estado.

Esse processo levou a uma nova situação política no país, a uma mudança na relação de forças na sociedade, mais favorável aos trabalhadores. Mudança essa gerada pela ofensiva de massas que, se bem não perdurou na forma de mobilizações de rua massivas, manteve-se e se aprofundou nos últimos meses através de greves cada vez mais numerosas e mais radicalizadas e de outras formas de mobilização popular, como as ocupações urbanas e rurais, etc. O avanço da contestação social, da exigência de mudanças no país para atender as demandas populares, por conseqüência, implica em maior ameaça aos privilégios dos que sempre exploraram e oprimiram nosso povo. Vem daí a reação do poder econômico (que se materializa de forma mais clara na violência da polícia e no processo de criminalização das lutas, mas não só), na ação da mídia e também na reação dos setores mais direitistas e preconceituosos da sociedade.

E tudo isto acaba por compor um quadro de maior polarização social e política no país e esta é uma característica da nova situação da luta de classes aberta pelas mobilizações de junho de 2013. É importante compreendermos esta totalidade, buscando evitar uma análise simplesmente jornalística do cenário político. É preciso ir ao processo mais estrutural, identificando os movimentos mais profundos das massas e da classe trabalhadora. Enxergar a reação dos setores mais à direita sem ver a ofensiva das massas que a detonaram vai levar a uma leitura errada da conjuntura.

Que a expressão deste processo na eleição de deputados seja a que acabamos de ver, isso se deve a mais fatores que vão desde o fato de que as eleições refletem de maneira muito deformada à realidade, à influência do poder econômico até a própria forma de votação (se a votação para Presidente da República viesse em primeiro lugar na urna eletrônica, teríamos uma abstenção talvez até majoritária na votação para deputados, com certeza). Aliás, a soma de votos brancos, nulos e abstenções é a segunda colocada no primeiro turno das eleições, o que não deixa de ser expressão também da própria crise de representatividade do sistema que ficou escancarada em junho de 2013.

A responsabilidade do PT na votação de Aécio
É certo que a votação de Aécio reflete a opinião não só da maior parte dos banqueiros e grandes empresários de quem ele é o principal representante na disputa eleitoral em curso (parte importante segue ainda apoiando o PT). É expressão também do voto da maioria dos setores mais direitistas da sociedade, a maioria dos setores mais atrasados, machistas, homofóbicos e defensores de toda sorte de preconceitos. Mas, se fosse só isso, a vitória do PT não estaria ameaçada.

Aqui, há um problema que é o seguinte: enxergar o crescimento da votação de Aécio apenas pelo viés da tal “onda conservadora” ajuda o PT a esconder a sua responsabilidade neste quadro. Oculta o fato de que muitos dos votos dados a Aécio, milhões deles, vem de trabalhadores, trabalhadoras e jovens que simplesmente se decepcionaram, sentiram-se traídos pelos governos do PT. Sentiram-se abandonados por um governo que se aliou aos banqueiros e grandes empresários garantindo seus privilégios e que manteve essencialmente o mesmo modelo econômico aplicado pelos governos do PSDB, negando aos trabalhadores e à juventude as mudanças que estes reclamam nas ruas e nas greves. E, pior ainda, repetindo pura e simplesmente a velha prática das alianças espúrias e da corrupção como prática de governo.

Não fosse isso, o que explicaria, como diz o próprio Boulos em seu artigo, que Aécio tenha ganhado a eleição no primeiro turno no Campo Limpo, Jardim São Luis, Ermelino Matarazzo, Sapopemba, bairros da periferia da cidade de São Paulo, redutos tradicionais do voto petista? Ou o crescimento da candidatura do PSDB dentro das grandes fábricas do ABC Paulista e da Zona Sul de São Paulo, antes também reduto do PT. Ou a derrota deste partido em todas as cidades do ABC Paulista?

Estes milhões de voto são votos de oposição a tudo que aí está, são votos por mudanças, por melhoria nas condições de vida dos trabalhadores e do povo pobre. E, mais uma vez, pela funcionalidade do sistema eleitoral brasileiro, são canalizados para a candidatura que tem chances de derrotar o atual governo, o PT. São “votos castigo” no PT e, para isto, os trabalhadores usam o que têm às mãos: a candidatura do PSDB. Mas não tem nenhum tipo de alinhamento programático com o candidato tucano. Pelo contrário, é o voto de milhões de trabalhadores que muito provavelmente estarão nas lutas contra um eventual governo Aécio que irá trazer mais precariedade ao invés de melhoria nas condições de vida das pessoas. E que estarão nas ruas lutando contra um eventual governo Dilma que não prepara nada diferente do PSDB para a vida dos trabalhadores caso ganhe a eleição.

O porque do voto nulo no segundo turno
Não resta dúvida que a candidatura de Aécio Neves deve ser duramente combatida. Em primeiro lugar pela esquerda brasileira, que defende um programa e valores opostos pelo vértice ao programa e valores defendidos pelo candidato do PSDB. Não podemos tergiversar em denunciar, além de seu programa econômico neoliberal, a defesa que os tucanos fazem da repressão e criminalização das lutas e da pobreza em nosso país, a negativa deste partido em defender os direitos democráticos de todos os setores da nossa sociedade, e um longo etc.

No entanto somos forçados, numa análise minimamente objetiva, a dizer que os governos do PT não fazem muito diferente disso. Não quero me estender aqui nesta questão, pois tanto Valério Arcary como o próprio Badaró já analisaram detalhadamente em seus artigos as duas alternativas em disputa. Mas o PT, na medida em que resolveu aliar-se aos bancos e grandes empresas para governar, passou a governar para eles e não para a classe trabalhadora. Atacou direitos dos trabalhadores, deixou não só de atender suas demandas econômicas, mas também negou-lhes direitos democráticos básicos que este partido defendia quando foi criado, como a legalização do aborto e o fim de toda forma de discriminação contra as mulheres, os direitos democráticos das pessoas LGBT, o fim do racismo. Aquilo que este partido alardeia como feitos importantes, como o Bolsa Família, o aumento do consumo e do emprego (precário e mal pago) foram, na verdade, expressão mais das necessidades de controle e do crescimento da economia nos padrões do capital do que propriamente uma concessão à melhoria das condições de vida dos trabalhadores.

Ou seja, pelo critério de classe, a alternativa representada pela candidatura do PT é tão ruim quanto qualquer alternativa burguesa. Não faltam elementos, então, para indicar o voto nulo. E não quero deixar de registrar que aceitar a idéia de que é preciso apoiar o “menos ruim” contra o “mal maior” é ajudar a condenar a nossa classe a ficar prisioneira do falso dilema em que o PT quer mantê-la: o de que qualquer movimento que ela faça para construir uma alternativa  para o país que seja sua, de classe, independente dos patrões  e socialista, seria fazer o jogo da direita.

O problema é, como pergunta Badaró, o que fazer para não perder o diálogo com os setores de vanguarda que, nesta situação, tendem a adotar a idéia do “menos ruim” e a votar em Dilma para derrotar Aécio do PSDB? A preocupação é justa. A resposta dada por Badaró, no entanto, não me parece correta.

Uma alternativa operária e socialista
Em primeiro lugar é correto, sim, considerar as confusões na consciência da nossa classe e de sua vanguarda na formulação de nossa política. Mas a base fundamental de nossa elaboração devem ser as necessidades da classe. E o que a nossa classe necessita é avançar na construção de uma alternativa operária e socialista, que possa reconstruir a esperança e trazer para a luta não só os milhões de operários e trabalhadores que neste momento, ainda que críticos, acham que é melhor votar no PT contra Aécio. Mas também aos milhões de operários e trabalhadores que acham que o melhor é castigar o PT com um voto no PSDB. Ou seja, uma alternativa que se constrói na luta contra as duas candidaturas que disputam o segundo turno. E o pior caminho para construir esta alternativa é capitulando ante as confusões presentes na consciência destes setores de massa e da vanguarda.

Precisamos sim, ser muito pacientes, muito respeitosos com estes companheiros, particularmente com aqueles que nos acompanharam (ao PSTU, ao PSOL, ao PCB ou ao PCO) no primeiro turno. Devemos tratar com todo cuidado o debate com estes companheiros, ressaltando sempre que, para nós, mais importante do que um acordo que possamos ter sobre o voto no segundo turno, é estarmos juntos nas lutas depois das eleições, seja qual for a candidatura vitoriosa.

Mas é decisivo termos uma posição clara sobre as duas candidaturas em questão. É fundamental dizermos com clareza que devemos nos preparar para a luta se Aécio vencer as eleições, mas que, infelizmente, não vai ser diferente se Dilma ganhar. Que não se deve ter ilusões em nenhuma delas e, por esta razão, a tarefa mais importante da nossa classe agora é se preparar para as lutas que estão por vir. Que o voto é um gesto político, que fortalece quem o recebe. Então, se nos preparamos para lutar, seja qual for a candidatura vencedora, não podemos fortalecer nenhuma delas.

É correto esse cuidado com a forma como expressamos a política, levando em conta o nível da consciência. Mas, por outro lado, é preciso preservar o conteúdo da política, que é definido pelas necessidades da classe. Isso é o que deve nos guiar. Mesmo que neste momento não convençamos a todos os ativistas de vanguarda que estão em nosso entorno. Precisamos confiar na experiência que estes ativistas vão fazer rapidamente depois das eleições com o que está por vir. Eles vão acabar nos dando razão. Construir uma alternativa de classe, em momentos como esse, implica também na necessidade de saber nadar contra a corrente.

Sobre a Frente de Esquerda
Badaró, em seu texto, fala de como seria melhor se tivéssemos uma frente de esquerda nas eleições, envolvendo PSTU, PSOL e PCB , que pudesse apresentar uma alternativa única que disputasse em melhores condições o processo eleitoral. Apoiando-se em idéia exposta no artigo do professor Lúcio Flavio, Badaró diz ainda que, agora no segundo turno, talvez estivéssemos frente à oportunidade de retomar esta idéia buscando, em comum acordo entre estes partidos, apresentar um conjunto de demandas à candidata Dilma para, se atendidas, poderem justificar um chamado ao voto no PT e, em caso de recusa, dar mais elementos para o voto nulo.

Partindo do fato de que o PSTU defendeu a realização da frente de esquerda nestas eleições, creio que é preciso, em primeiro lugar, esclarecer porque ela não se constituiu. Falo mais das razões que impediram a frente PSTU/ PSOL, pois com o PCB não chegamos a estabelecer um debate (a decisão dos companheiros foi de lançar uma candidatura própria, na medida em que não havia se constituído a frente social e política proposta por eles desde há alguns anos).

Não houve acordo programático para a constituição da frente com o PSOL. Para o PSTU, só tem sentido a apresentação de uma candidatura nas eleições se for para a defesa de um programa anticapitalista e socialista. Que aponte para o atendimento das demandas que os trabalhadores e jovens estão levantando nas mobilizações e nas greves, com mudanças na estrutura econômica do país, ou seja, o não pagamento da dívida pública aos banqueiros; a estatização do sistema financeiro; reestatização do que foi privatizado por FHC e pelos governos do PT; a nacionalização da terra, com expropriação do latifúndio e das grandes empresas do agronegócio; a estatização das empresas que demitirem trabalhadores; etc. Além destas mudanças, um programa de classe também precisaria levantar as bandeiras democráticas como a defesa dos direitos da mulher, das pessoas LGBT, contra o racismo, fim da violência policial e a criminalização das lutas sociais, fim da corrupção e etc.

O PSOL se limitou à defesa destas bandeiras democráticas – corretas e muito importantes –  e bandeiras econômicas importantes como a taxação das grandes fortunas, ou quando muito foi até a denúncia da dívida pública. Foi o que se viu durante toda a campanha e particularmente nos debates da TV, que é o momento de maior visibilidade das candidaturas de esquerda que não foram excluídas dos mesmos, como a nossa e de outros camaradas. Como disse, são bandeiras importantes, mas completamente insuficientes para um programa de classe e socialista. Este quadro agravou-se durante a campanha quando o PSOL aceitou (mais uma vez) financiamento de uma grande empresa. Para nós, o critério da independência econômica é condição para a independência política ante a burguesia e sem isto não há luta conseqüente contra o capitalismo. O PT começou trilhando, desta forma, a estrada que o levou onde está hoje.

Fosse então o caso de apresentar um programa à candidata Dilma – e não creio que seja, pois não vejo sentido em cobrar de Dilma a aplicação de um programa anticapitalista, se consideramos análise da natureza de classe deste governo e a dimensão da ruptura política de setores de massas que já se produziu com ele – estaríamos diante do mesmo problema. Veja que se trata de um programa para uma candidata à presidência da republica e que, portanto, não poderia se limitar às bandeiras democráticas e algumas reivindicações econômicas, pois o que está em discussão é um projeto para o país. Se estivéssemos diante de uma mobilização qualquer seria correto exigir de Dilma o atendimento das demandas em questão, mas em se tratando de um programa para o país, ele não pode deixar de ser um programa anticapitalista, socialista.

O primeiro turno mostrou que PSTU e PSOL têm visões bastante diferentes acerca da alternativa que precisamos construir para a classe trabalhadora e, assim, foi normal e necessário que cada partido tenha apresentado sua candidatura e seu ponto. Não seria diferente no segundo turno. Não é casual que a posição do PSOL seja a defesa do voto contra o Aécio, e que seus parlamentares chamem direitamente o voto na candidata do PT, e que a posição do PSTU seja voto nulo. É expressão dessa diferença.

Unidade para lutar
Explicitar esta diferença com o companheiro Badaró não implica em desmerecer seu texto e menos ainda deixar de reconhecer seus méritos. Dentre eles, quero destacar a idéia da unidade que ele propõe para enfrentar o que vem pela frente. Acho muito importante, ainda que eu veja sua aplicação de uma forma diferente. Nossa classe terá seus direitos e interesses sob um ataque ainda mais intenso no próximo período, seja qual for o governo eleito. As forças de esquerda podem e devem cumprir neste processo um papel relevante. Para isso, seria muito importante buscar um acordo entre os diversos setores combativos e de esquerda para potencializar este papel, seja através da Unidade de Ação, ou até mesmo impulsionando um processo de Frente Única em base a um programa mínimo para a luta.

Isto permitiria potencializar a organização e a luta da nossa classe, reforçando sua capacidade de resistência. E, por outro lado, nos daria melhores condições para desafiar as organizações majoritárias à luta, seja para fortalecer a mobilização, seja para desmascarar suas direções conciliadoras, fazendo avançar o processo de reorganização sindical e popular em curso.

Esta discussão deve ser melhor desenvolvida no âmbito das organizações de massa onde atuamos. Mas todas as nossas organizações devem tomar este debate. Podemos e precisamos, desde já, trabalhar neste sentido

*Zé Maria é metalúrgico, e presidente nacional do PSTU

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