Glailson dos Santos, de Ananindeua (PA)

Glailson dos Santos, de Ananindeua (PA)

Na atualidade, tornou-se comum a alegação de que a verdade não existe, o que existiria seriam apenas interpretações, pontos de vista particulares (saberes), todos igualmente válidos. E que qualquer tentativa de conhecer a verdade não passaria de pura arrogância e pretensão daqueles que buscam ingenuamente aprisionar a complexidade de nossa existência dentro de limites autoritariamente impostos por uma abordagem determinista qualquer.

Esta visão exerce um inegável fascínio sobre o senso comum e boa parte dos intelectuais que dominam o ambiente acadêmico, uma vez que ela parece conferir uma grande sensação de liberdade, onde as impositivas verdades absolutas do passado são substituídas por interpretações customizadas ao sabor das preferências individuais e até mesmo das conveniências momentâneas. Esta abordagem tem encontrado uma grande adesão, mesmo entre setores combativos dos movimentos sociais que vêem na negação de uma verdade objetiva a afirmação de suas próprias pautas.

Contudo, esta relativização que, num primeiro momento, parece vir ao auxilio daqueles que buscam construir uma sociedade livre de toda a forma de opressão e exploração, não passa de uma ilusão que parte de uma análise superficial da realidade. Busca esconder o fato de que esta ideologia de relativização absoluta não representa mais do que o retorno às velhas ideologias do passado e está a serviço dos interesses das elites que incentivam e aprofundam não só o machismo, o racismo, a homofobia e a intolerância étnica e religiosa, como a exploração dos trabalhadores e do povo pobre em nossa sociedade.

Afinal, ainda que no discurso relativista dos ideólogos pós-modernos “todas as verdades sejam igualmente válidas”, na prática social cotidiana o que vemos é a imposição de uma única verdade, aquela dos que exercem o poder. Do que nos vale a suposta “liberdade” para escolher entre uma infinidade de abordagens e pontos de vista igualmente válidos para analisar a realidade, quando na prática seguimos aprisionados à lógica capitalista que mantém os interesses do Deus-mercado acima de qualquer interesse social ou humano?

A relação entre setores da esquerda e a ideologia relativista que se convencionou chamar de “pós-modernismo” ou, mais apropriadamente, pós-estruturalismo, é o reflexo de uma das maiores tragédias no desenvolvimento do pensamento humano, uma tragédia promovida pelas forças combinadas das duas maiores máquinas de propaganda que a humanidade já foi capaz de produzir: a poderosa e onipresente grande mídia capitalista e o monstruoso aparato de propaganda da burocracia soviética. Por diferentes razões, cada uma delas movida por seus próprios interesses, soterraram a conquista que representa o materialismo dialético, sob grossas camadas de mentiras e distorções.

No final do século XX e neste início do século XXI, amplos setores oprimidos pela hegemonia capitalista e desiludidos, tanto com o racionalismo iluminista do século XVIII quanto com o que o senso comum considera ser a proposta marxista surgida no século XIX, voltaram-se para o irracionalismo e o idealismo que caracterizam a ideologia “pós-moderna” (ou pós-estruturalista) em busca de alternativas teóricas que respaldassem as ações de resistência que foram, e são, impelidas a realizar pelo avanço da opressão e da exploração que tem acompanhado a decadência capitalista.

Tal relação só foi possível porque estes setores oprimidos, traídos tanto pela burguesia liberal quanto pela burocracia stalinista, viram na proposta “pós-moderna” algo que lhes parecia coerente com seu justo rechaço ao racionalismo iluminista e ao determinismo pseudo-marxista, uma vez que a experiência histórica demonstrou tanto a incapacidade do iluminismo em concretizar sua promessa abstrata de liberdade, igualdade e fraternidade; quanto a falência do dito “socialismo real”, que não passou de uma deturpação do materialismo dialético engendrada e divulgada pela burocracia sino-soviética ao longo do século XX, onde a dialética foi substituída pelo dogmatismo.

Sobre as abordagens idealistas, inclusive a “pós-moderna”…
Do ponto de vista da filosofia idealista, a base de todos os fenômenos não pode ser encontrada na matéria, mas na vontade divina, na razão universal, na idéia absoluta ou em alguma outra forma de abstração que se distancie da realidade concreta. Assim, a interpretação idealista do mundo nos oferece uma imagem idealizada da realidade, que nega a existência de uma realidade concreta ou a possibilidade de sejamos realmente capazes de compreendê-la através da experiência prática.

Seja através dos idealismos objetivos de Platão (428 a.C. – 347a.C.) e Hegel (1770 – 1831) que reconhecem a existência da verdade mas postula que ela só poderia ser alcançada através do profundo exercício intelectual metafísico; seja através do idealismo subjetivo, divulgado pelo bispo irlandês George Berkeley (1685-1753), que simplesmente nega a existência objetiva de qualquer verdade além de Deus e defende que as coisas existem apenas na medida em que são percebidas pela mente humana ou divina; seja através do idealismo transcendental de Immanuel Kant (1724 – 1804) que reconhece a existência objetiva da realidade mas afirma que não somos capazes de compreende-la plenamente e fixa limites arbitrários para sua compreensão; ou seja através de qualquer outra vertente idealista.

Ao negar ou tentar transferir da realidade concreta para o reino das abstrações metafísicas a busca pela verdade, o idealismo acaba por expressar a necessidade ou conveniência de se evitar a confrontação direta com a realidade objetiva e tenta legitimar a postura daqueles que optam por acreditar apenas no que os agrade ou pareça lhes oferecer algum conforto diante das incertezas da existência. O idealismo expressa também uma posição pretensiosa que tenta impor nossos próprios pontos de vista particulares à realidade, quando o correto parece ser justamente o contrário.

Ou seja, o idealismo, em suas diferentes vertentes, nega ou busca estabelecer limites arbitrários para a investigação da realidade objetiva. Mas a serviço de quem estaria tal esforço por negar ou limitar a busca humana pela verdade, senão daqueles que poderiam se beneficiar com sua negação?

Sobre as abordagens materialistas, inclusive a positivista…
O esforço genuíno para compreendermos a realidade deve ser um exercício de humildade que pressupõem nossa disposição em abrimos mão de nossos próprios anseios e preconceitos para abraçar aquilo que a realidade material objetivamente demonstra ser o correto, ainda que isso se choque com nossas próprias preferências e idealizações. Obviamente, tal postura de desprendimento nos exige um esforço árduo e permanente e, infelizmente, não é capaz de nos eximir de equívocos.

A filosofia materialista empenhou-se sempre em encontrar uma explicação material dos fenômenos, capaz de superar o obscurantismo e misticismo inerente às diferentes correntes idealistas, buscando transpor os limites arbitrariamente estabelecidos para o avanço do conhecimento humano. Na abordagem materialista tais limites arbitrários são substituídos pela busca por limites objetivamente impostos pela realidade concreta.

Ou seja, o materialismo afirma que a verdade não só existe como pode ser conhecida através da experiência prática. De tal forma que o próprio conceito de matéria não é mais do que “a realidade objetiva que existe independentemente da consciência humana e que é refletida por ela1“. E o nosso mundo circundante não é outra coisa senão matéria em movimento. Para esta abordagem mesmo as ideias e conceitos mais abstratos, não são mais do que o resultado da atividade de um órgão material (o cérebro humano) e o reflexo de objetos materiais percebidos e processados por este mesmo órgão material.

Obviamente, essa abordagem materialista, subjacente ao racionalismo iluminista e ao determinismo positivista, não poderia estar livre de interferências subjetivas, uma vez que os limites que julgamos impostos objetivamente para a investigação da realidade estão, eles próprios, sujeitos a interpretações subjetivas. Como afirmou Lênin, em sua clássica análise sobre os fundamentos do materialismo dialético, intitulada “As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo”, esperar que a ciência, ela própria uma prática social, fosse imparcial numa sociedade de classes, dividida entre interesses antagônicos, seria uma ingenuidade tão grande quando esperar que as elites capitalistas, de boa vontade, decidissem abrir mão de seus próprios privilégios.

Longe de invalidar a abordagem materialista inerente à ciência legitima, essa constatação apenas reforça a necessidade de uma postura científica humilde e consciente de suas próprias limitações e falibilidade e a importância de seus mecanismos de auto-regulação e meta-análise.

O fato de que a abordagem materialista tenha sido abraçada pela burguesia revolucionária em sua luta para destronar a nobreza e, mais tarde, tenha sido convenientemente abandonada pela mesma classe burguesa quando esta ascendeu ao poder, oferece-nos indícios da força e do potencial revolucionário dessa abordagem.

Na atualidade a filosofia materialista segue com seu conteúdo revolucionário, nos oferecendo ferramentas importantíssimas para revelar a verdade oculta sob as fantasias idealistas alimentadas pela decadente elite burguesa. Os revolucionários não têm porque temer a verdade, a história demonstra que ela é nossa mais poderosa aliada.  Como nos ensina Trotsky: “Expor aos oprimidos a verdade é abrir-lhes o caminho da revolução”.

Uma abordagem materialista conseqüente, mesmo (e principalmente) quando se choca com nossos desejos e expectativas é fundamental para que tomemos o rumo correto diante das maiores adversidades. Não é de se estranhar que, em um dos momentos mais difíceis e decisivos da luta de classes, Trotsky tenha registrado para posteridade as seguintes recomendações:

“Olhar a realidade de frente; não procurar a linha de menor resistência; chamar as coisas pelo seu nome; dizer a verdade às massas, por mais amarga que seja; não temer obstáculos; ser rigoroso nas pequenas como nas grandes coisas; ousar quando chegar a hora da ação2.”

Sobre o materialismo dialético…
Mas se por um lado, em relação ao caráter objetivo da realidade e a possibilidade de conhecê-la, o materialismo dialético encontra-se definitivamente no campo da filosofia materialista em oposição a todas as formas de idealismo, por outro, ele também busca ir além das limitações expressas por todas as doutrinas materialistas anteriores, incorporando a dialética para um crítica coerente do determinismo que sempre esteve atrelado às diferentes vertentes materialistas.

Os materialistas dialéticos reconhecem que a realidade é objetiva e independente de nós, ela existe por si mesma e está sujeita a leis que são alheias a nossa vontade. Mas diferentemente do materialismo determinista, para os materialistas dialéticos isso não significa que a realidade seja estática, longe disso, o caráter objetivo da realidade demonstra sua inerente fluidez e dinamismo.

A realidade é concreta e objetiva, mas também está em permanente movimento e transformação. Podemos conhecer a verdade através da experiência prática, mas esta verdade é sempre parcial e transitória e precisa estar permanentemente suscetível à crítica da experiência prática.

E não para por aí, a critica materialista dialética ao materialismo vulgar é ainda mais profunda que o mero reconhecimento do caráter dinâmico da realidade, ela incorpora também a necessidade de superação do abismo entre a teoria e a prática que os ideólogos das mais diferentes correntes filosóficas, tanto idealistas como materialista, insistem em manter e aprofundar.

Em suas Teses sobre Feuerbach, na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, em A Sagrada Família e em A Ideologia Alemã, Karl Marx (1818 – 1883) e Friedrich Engels (1820 – 1895) desenvolvem o conceito de práxis ao criticar simultaneamente tanto o idealismo quanto as abordagens materialistas de então. O materialismo determinista alegava que os seres humanos são determinados pelas circunstâncias (econômicas, sociais e naturais), enquanto o idealismo vê os seres humanos como determinados pelas ideias (pensamentos, vontades e desejos). Os materialistas vulgares afirmavam que mudamos porque novas circunstâncias nos fazem mudar, enquanto os idealistas de diferentes matizes afirmam que mudamos porque a educação, as novas idéias e os novos desejos nos fazem mudar.

A crítica de Marx é de que o materialismo, sem que tenha incorporado a dialética, “esquece que as circunstâncias são transformadas precisamente pelos seres humanos3“, enquanto o idealismo “esquece que o educador tem ele próprio de ser educado4“. Assim, tanto o materialismo determinista quanto o idealismo, qualquer que seja sua variação, acabam por reproduzir a estrutura da sociedade de classes, ou seja, a exploração do homem pelo homem. Neste ponto, Marx introduz o conceito de práxis revolucionária como “a coincidência da transformação das circunstâncias através da atividade humana5“.

A práxis revolucionária é assim entendida como atividade teórico-prática em que a teoria se modifica constantemente a partir da experiência prática, que por sua vez é também constantemente modificada pelo aprofundamento das concepções teóricas, de modo que nem a teoria se cristalize como dogma e nem a prática se degenere em um processo alienado.

Como afirmou o próprio Marx:

A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objetiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica6”.

Ou ainda, como reafirma Lênin em seu clássico tratado filosófico:

“O ponto de vista da vida, da prática, deve ser o ponto de vista primeiro e fundamental da teoria do conhecimento. E ele conduz inevitavelmente ao materialismo, afastando desde o princípio as invencionices intermináveis da escolástica professoral. Naturalmente, não se deve esquecer que o critério da prática nunca pode, no fundo, confirmar ou refutar completamente uma representação humana, qualquer que seja. Este critério é também suficientemente ‘indeterminado’ para não permitir que os conhecimentos do homem se transformem num ‘absoluto’, e, ao mesmo tempo, suficientemente determinado para conduzir uma luta implacável contra todas as variedades de idealismo e agnosticismo. Se aquilo que a nossa prática confirma é a única e última verdade objetiva, daí decorre o reconhecimento de que o único caminho para esta verdade é o caminho da ciência assente no ponto de vista materialista. […] A única conclusão a tirar da opinião partilhada pelos marxistas, de que a teoria de Marx é uma verdade objetiva, consiste no seguinte: seguindo pelo caminho da teoria de Marx, aproximar-nos-emos cada vez mais da verdade objetiva (sem nunca a esgotar); mas, seguindo por qualquer outro caminho, não podemos chegar senão à confusão e à mentira.7

Esse indissolúvel nexo entre teoria e prática com o objetivo de transformar a realidade foi uma das maiores contribuições do materialismo dialético para o pensamento humano. Ao propor o fim da dicotomia entre teoria e prática, assim como o fim da divisão entre o trabalho manual e intelectual, a abordagem materialista dialética desvenda os mecanismos de alienação nas sociedades de classes e convoca todos os interessados na real transformação da sociedade a não só refletir sobre a realidade que nos cerca, como, também, tomar parte ativa nas lutas e questões prementes de nossa época.

Na atualidade, a negação do materialismo determinista é um sentimento justo e legítimo que reflete a experiência histórica concreta com as revoluções burguesas e as ditas revoluções socialistas do século XX, que demonstraram ser incapazes de libertar a humanidade das amarras da opressão e da exploração. Mas para fazer avançar o conhecimento e as práticas sociais vigentes neste inicio do século XXI, precisamos ir muito além da mera negação das experiências do passado, precisamos buscar uma solução que nos aponte um novo rumo, sem que retrocedamos ao idealismo que, tão pouco, mostrou-se capaz de nos oferecer saídas.

A superação para esta tragédia que faz, de maneira quase hegemônica, o pensamento humano neste início do século XXI voltar-se ao obscurantismo e ao irracionalismo pré-renascentista passa, necessariamente, pelo resgate de uma abordagem que contraponha simultaneamente o materialismo ao idealismo e a dialética ao determinismo, rompendo as fronteiras entre os diferentes campos do conhecimento, assim como aquelas supostamente existentes entre teoria e prática. Afinal, como sintetizou Marx: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de diferentes maneiras; a questão, porém, é transformá-lo!8“.

1 LÊNIN, V. I. Materialismo e empiriocriticismo. Edições Avante. Lisboa, 1982.

2 TROTSKY, Leon. O Programa de Transição.

3 MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. Trad. Castro e Costa, L.C. Martins Fontes. São Paulo, 2002.

4 Idem

5 Idem

6 Idem

7 LÊNIN, V. I. Materialismo e empiriocriticismo. Edições Avante. Lisboa, 1982.

8 MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. Trad. Castro e Costa, L.C. Martins Fontes. São Paulo, 2002.