Na Venezuela está ocorrendo um processo de endurecimento do regime, com o governo tomando medidas para aumentar o seu controle sobre os distintos setores, entre eles os meios de comunicação. Uma manifestação clara disso foi o fechamento por parte do governo da emissora de televisão RCTV no dia 27 de maio. Aparentemente esta parece ser uma medida progressiva. Com certeza muitos trabalhadores e estudantes a viram com bons olhos, já que ataca uma emissora burguesa e reacionária, que sempre fez campanha contra os interesses do povo venezuelano.

No entanto, se analisamos essa medida mais de perto, vamos ver que não é bem assim. A experiência histórica também mostra que medidas desse tipo, aparentemente populares, acabam se voltando mais cedo ou mais tarde contra os interesses dos trabalhadores.

Um argumento falso: atacar os golpistas
Com o argumento de que o governo Chávez é popular e “está construindo o socialismo do século 21”, praticamente todas as correntes de esquerda apoiaram essa medida. O principal argumento é que esse era um canal golpista, o que é verdade. A RCTV e todas as demais emissoras, controladas por burgueses milionários, de fato fizeram campanha aberta e violenta pelo golpe contra Chávez em abril de 2002, algumas inclusive chegando ao extremo de incentivar o assassinato do presidente.
De fato, teria sido uma medida plausível ter fechado a emissora no momento do golpe para evitar que ela continuasse funcionando como correia de transmissão da política orquestrada pelo governo norte-americano.

Mas fechá-la agora, quando já passou o momento do golpe e não se vislumbra no horizonte qualquer perigo de uma nova tentativa golpista, é algo que não se justifica. Nada indica que haverá outro golpe a curto prazo, justamente porque há um acordo entre Chávez e a burguesia golpista para manter o governo. Inclusive alguns dos principais burgueses estão dentro do PSUV, o partido de Chávez.

É certo que o imperialismo, a burguesia e a direita venezuelana quiseram derrubar Chávez com o golpe de 2002 e o lockout econômico. Mas essa política fracassou, derrotada pela mobilização operária e popular, e eles foram obrigados a aceitar o governo Chávez como a única alternativa para controlar o movimento de massas. Por isso, abandonaram a linha golpista e passaram a aplicar uma outra política: apostar em seu desgaste a longo prazo para poder derrubá-lo eleitoralmente. As duras críticas à medida de Chávez de fechar a RCTV, vindas do imperialismo e da imprensa internacional e nacional fazem parte dessa política de desgaste, e não de uma hipotética preparação de um clima golpista. Ao mesmo tempo, o imperialismo e os grandes burgueses venezuelanos passaram a fazer bons negócios com o governo, como o grupo Mendoza-Polar, os novos “empresários socialistas” e os banqueiros que tiveram no último ano um astronômico crescimento de seus lucros – 38%.

Supondo ser verdade que Chávez fechou a RCTV para atacar os golpistas, a pergunta que fica é: por que ele não fechou as demais emissoras, que também são golpistas? Por que não fechou a emissora de Cisneros, o golpista dos golpistas? Principal empresário do setor de comunicações do país e dono da Venevisión, ele encabeçou o golpe contra Chávez e não só não foi reprimido como hoje tem um acordo com o governo e saiu beneficiado com o fechamento da RCTV, abocanhando os espaços publicitários da concorrente.

Pretexto
O outro argumento levantado pelos defensores do fechamento do canal é que essa é uma forma de liquidar uma emissora reacionária, que veicula programação contaminada pela ideologia burguesa.

Chávez chegou a argumentar que estava fechando o canal não por sua posição golpista, mas como um ato de censura a sua programação. “Esse canal trouxe muitos prejuízos ao país durante muito tempo: os antivalores, o bombardeio midiático da violência, o ódio, o racismo, o sexo mal visto e mal entendido, a falta de respeito para com a mulher, as crianças, a falta de respeito contra muitas manifestações da vida social, contra os homossexuais, contra o país e o mundo, contra as pessoas que têm alguma deficiência física, essa é a razão de fundo!” (Folha de S. Paulo, 5/6/2007).

De fato, trata-se de uma emissora reacionária que propaga a nefasta ideologia burguesa e defende os valores e interesses opostos aos da classe trabalhadora, em particular das mulheres trabalhadoras e pobres, das crianças e dos oprimidos. Segundo Chávez e as organizações que o defendem, este seria um motivo para não permitir que a RCTV continuasse no ar. Mas este não é mais que um pretexto, já que todas as emissoras da Venezuela (e não só a RCTV) são dirigidas pela burguesia ou pelo governo e todas propagam o mesmo tipo de ideologia.

Verdadeiras razões da medida de Chávez
Mas, se não é o golpe o motivo do ataque à RCTV, dado que dito movimento não existe – nem está sendo preparado –, nem tampouco o motivo do ataque é a ideologia burguesa desse canal de televisão, já que ela não é exclusiva da emissora, cabe perguntar: quais são os verdadeiros motivos deste ataque à RCTV?

A resposta está no que dissemos no início desta declaração: “Na Venezuela vem ocorrendo um processo de endurecimento do regime, com o governo tomando medidas para aumentar o seu controle sobre os distintos setores, entre eles os meios de comunicação”. Prova disso é que, quando Chávez assumiu o governo, controlava em Caracas um canal de televisão. Agora são seis.

Outra prova mais recente: todos os institutos de opinião publicaram os resultados de suas pesquisas indicando que entre 65% e 80% dos venezuelanos se opõem ao fechamento da RCTV. Chávez respondeu à opinião pública punindo os institutos de pesquisa. Suspendeu dois dos mais importantes por dois dias. O argumento usado nesta oportunidade foi “violação tributária”.

Esta política do presidente venezuelano no terreno da comunicação acompanha sua estratégia no terreno político. Por exemplo: Chávez está chamando a construir o PSUV, que tem como objetivo controlar a todos os setores da sociedade, em especial os trabalhadores, a tal ponto que exige a entrada de todas as organizações operárias neste partido (as que não o fazem são acusadas de “contra-revolucionárias”) e junto com isso declara que não existirá autonomia sindical. As organizações dos trabalhadores deverão se submeter às decisões do PSUV, quer dizer, às decisões do governo Chávez.

Histórico
Não é a primeira vez que na América Latina ocorre um caso como o da RCTV. A medida tomada por Chávez contra a liberdade de imprensa, com o pretexto de atacar um canal golpista ou reacionário, provocou muita confusão nas fileiras da esquerda, inclusive
entre aqueles setores que, com posições revolucionárias, se opõem ao governo. Muitos deles, em função da justa vontade de lutar contra o imperialismo e a burguesia golpista, acabam apoiando o governo Chávez em sua investida contra a liberdade de imprensa. Ofensiva que hoje é contra um setor da burguesia e amanhã será contra os trabalhadores que tenham a ousadia de se opor ao governo. Esta confusão se deve, em grande medida, à existência de muitos setores de vanguarda surpreendidos e que acreditam no caráter inédito das medidas tomadas por Chávez. Mas isso não é assim.

O general Perón, para aumentar seu controle totalitário sobre os trabalhadores na Argentina, expropriou em 1951 o diário La Prensa, que era de um setor da oligarquia. Os argumentos usados por Perón foram os mesmos que usa Chávez hoje e também houve uma parcela da esquerda que apoiou a medida. Mas houve um setor do movimento trotskista, dirigido por Nahuel Moreno, que não se deixou enganar pelo discurso demagógico de Perón e se opôs firmemente a essa medida, o que não o impediu de exigir tempos depois do governo que entregasse armas aos trabalhadores para enfrentar os golpistas que o acabaram derrubando. No México, o governo Cárdenas havia tomado medidas contra o imperialismo muito mais profundas que as de Chávez, e a imprensa reacionária o atacava de forma permanente. Leon Trotsky, que residia no país e destacava o caráter progressivo das medidas tomadas por Cárdenas, não se deixou enganar pela campanha do presidente contra a liberdade de imprensa.

Falando sobre a situação, alertava para o caráter de classe das medidas do governo e opinava que qualquer medida de um governo burguês, por mais popular que possa parecer, está sempre dirigida contra os trabalhadores e não contra a burguesia: “tanto a experiência histórica como teórica provam que qualquer restrição à democracia na sociedade burguesa é, em última instância, invariavelmente dirigida contra o proletariado, assim como qualquer imposto que se crie recai sobre os ombros da classe operária” (México, agosto de 1938).

Já em relação aos dirigentes sindicais do Partido Comunista que apoiavam os ataques à imprensa reacionária, ele dizia que “qualquer ‘dirigente’ da classe operária que arma o governo burguês com meios especiais para controlar a opinião pública em geral e a imprensa em particular é simplesmente um traidor. Em última instância, o acirramento da luta de classes obrigará as burguesias de qualquer tipo a chegar a um acordo entre elas mesmas; aprovarão então leis especiais, todo tipo de medidas restritivas e toda classe de censuras ‘democráticas’ contra a classe operária. Quem ainda não compreendeu isso deve deixar as fileiras da classe operária…”
“Mas há momentos, dizem alguns ‘amigos’ da URSS, em que ‘a ditadura do proletariado’ se vê forçada a recorrer a medidas especiais, particularmente contra a imprensa reacionária. ‘Essa alegação’, responderemos, ‘provém principalmente’ de identificar a um Estado operário com um Estado burguês. Apesar de o México ser um país semicolonial, também é um estado burguês e de forma alguma operário.”

E se o governo Chávez fosse socialista?
Possivelmente muitos dos que leiam esta declaração nos dirão: “o que dizia Trotsky é válido para os governos burgueses, mas Chávez luta contra o imperialismo e a burguesia. O governo de Chávez é socialista! É o ‘socialismo do século 21’!”
Em primeiro lugar, quem raciocina desta forma está equivocado, porque considera o governo burguês de Chávez como socialista. O “socialismo do século 21” do político venezuelano em nada se diferencia do reformismo do século 20.

Trotsky dizia que os reformistas falam de socialismo nos dias de festa. Chávez fala de socialismo, de Lênin e até de Trotsky nos atos, mas no dia-a-dia cumpre religiosamente seus compromissos com o imperialismo, mantém os meios de produção nas mãos dos capitalistas, negocia a entrega das reservas de petróleo com as grandes multinacionais e seu governo se apóia fundamentalmente na principal instituição do Estado burguês, as forças armadas.

Em segundo lugar, quem raciocina desta forma se equivoca duplamente porque considera que o fato de ser “socialista” daria a Chávez o direito de censurar a imprensa reacionária da burguesia.

Um dos máximos dirigentes da Revolução Russa, Trotsky tinha uma posição oposta. Para ele, o fato de a classe operária haver tomado o poder expropriando a burguesia não justificava o cerceamento da liberdade de imprensa para a própria burguesia: “No entanto, mesmo desse ponto de vista dos interesses da ditadura do proletariado, proibir os jornais burgueses ou censurá-los não é nem de longe um ‘programa’ ou um ‘princípio’ ou um ideal estabelecido. Medidas dessa natureza só podem ser um mal temporário e inevitável”.

Quando chegar ao poder, o proletariado pode ser forçado por algum tempo a tomar medidas especiais contra a burguesia, se esta assumir uma atitude de aberta rebelião contra o Estado operário. Neste caso, restringir a liberdade de imprensa é uma medida que caminha junto com as outras empregadas durante uma guerra civil. Naturalmente, se você se vê forçado a usar artilharia e aviões contra o inimigo, não pode permitir que esse mesmo inimigo mantenha seus próprios centros de informação e propaganda dentro do campo armado do proletariado. No entanto, também nesse exemplo, se as medidas especiais se ampliam a ponto de converter-se em um padrão permanente, trariam em si mesmas o perigo de se tornarem incontroláveis e de que a burocracia operária consiga um monopólio político, o que seria uma das fontes de sua degeneração. As verdadeiras tarefas do Estado operário residem não em colocar uma mordaça policial sobre a opinião pública, mas ao contrário, em libertá-la do jugo do capital. Isso só pode ser feito colocando os meios de produção, incluindo a produção da informação pública, nas mãos de toda a sociedade.

Dado esse passo socialista fundamental, todas as correntes de opinião pública que não tenham se levantado em armas contra a ditadura do proletariado devem ter a oportunidade de expressar-se livremente. O dever do Estado operário é tornar acessíveis a elas, em proporção a seu número, todos os meios técnicos que requeiram, como máquinas impressoras, papel e transporte. “Uma das principais causas da degeneração do aparato de Estado é o monopólio da imprensa por parte da burocracia stalinista, que ameaça reduzir todas as conquistas da Revolução de Outubro à ruína total.”

O Combate à Imprensa Reacionária
Quando Chávez decide atacar a liberdade de imprensa, a maioria da esquerda fala de um golpe inexistente para defender o governo e uma de suas medidas mais reacionárias.

A maioria da esquerda faz assim um desserviço à causa do socialismo, já que deixa de lutar pela liberdade de imprensa nas mãos do imperialismo e dos setores mais reacionários da burguesia venezuelana e latino-americana.

Os trabalhadores são os primeiros interessados em combater toda imprensa reacionária, mas não às custas de combater a liberdade de imprensa. Neste sentido, mais uma vez nos apoiamos em Trotsky: “é essencial empreender uma luta incansável contra a imprensa reacionária. Mas os operários não podem permitir que o punho repressivo do Estado burguês substitua a luta que eles travam por meio de suas próprias organizações e de sua própria imprensa. Hoje o Estado pode aparecer como bondosamente disposto em relação às organizações operárias; amanhã o governo pode cair e cairá inevitavelmente nas mãos dos elementos mais reacionários da burguesia. Nesse caso, qualquer legislação restritiva que exista será lançada contra os operários. Somente aventureiros que só pensam nas necessidades do momento seriam incapazes de levar em conta esse perigo.”

Nós temos nos estendido em citar as opiniões do grande revolucionário russo porque as consideramos bastante atuais. Os trabalhadores venezuelanos seguramente não as conhecem. No entanto, possivelmente por instinto de classe, estão tirando conclusões parecidas. Isso explica por que a ampla maioria da população venezue-lana, que ainda apóia o governo Chávez, segundo todas as pesquisas questiona suas medidas contra a liberdade de imprensa. Agora é necessário que a maioria da esquerda, em especial a que se reivindica trotskista, faça o mesmo.

Post author Declaração da LIT
Publication Date