Hierarquia da discussão é o direito à saúde pública de qualidade para o conjunto da população

 
O governo Dilma, através do ministro da saúde Alexandre Padilha, tem vindo a público, quase diariamente, para anunciar sua preocupação com o déficit de médicos em várias regiões do país. A solução apresentada pelo governo diante dessa situação, que de fato é grave, foi a proposta de importação de médicos.
 
Em abril, as manchetes anunciavam os seis mil médicos cubanos que chegariam ao Brasil para trabalhar nas regiões mais carentes. Por um lado, esta notícia gerou forte reação de entidades e corporações médicas como o Conselho Federal de Medicina (CFM), que não aceitaram a vinda de médicos que não prestassem a prova para o reconhecimento de seu diploma (conhecida como Revalida).
 
Esta ideia de trazer médicos cubanos gerou também editoriais raivosos da grande imprensa, como no caso do Estadão que afirmou em texto que “como essa não é a primeira vez que a medicina cubana é apresentada como valiosa ajuda para a solução de nossos problemas, sem base em nenhum dado objetivo, tal insistência torna inescapável a conclusão de que o governo está misturando perigosamente política com saúde da população.” Por outro lado, tal medida alimentou as ilusões de muitos ativistas honestos da saúde, que de fato, se preocupam com as condições de saúde da população brasileira, pois acreditam que a vinda de médicos cubanos, representaria um elemento de qualidade para o Sistema Único de Saúde (SUS).
 
As reações negativas fizeram com que o Ministério da Saúde trocasse o foco: deixou de falar dos médicos cubanos e iniciou a busca por médicos espanhóis e portugueses, aproveitando o alto índice de desemprego nestes países devido à crise econômica mundial e a língua similar, que facilitaria o contato com nossa população. O ministro Padilha, inclusive, se valeu de sua presença numa reunião da Organização Mundial de Saúde, na Suíça, para encontrar-se com autoridades espanholas.
 
Em entrevista concedida a uma emissora de rádio de Bragança Paulista, interior de São Paulo, o ministro Padilha atualizou o montante de médicos que pretende importar: nada menos do que treze mil profissionais. A princípio, estes médicos só terão autorização para trabalhar em áreas restritas e por um período de dois ou três anos.
 
O PSTU não endossa discursos corporativos e xenófobos reproduzidos pela grande imprensa no que se refere à importação de médicos. Contudo, também não nos iludimos com as soluções mágicas apresentadas pelo governo petista. Para nós, a hierarquia dessa discussão é o direito à saúde pública de qualidade para o conjunto da população, inclusive para as camadas mais empobrecidas que acessam exclusivamente o SUS. Nesse sentido, apresentamos nossos argumentos e o posicionamento contrário à importação de médicos.
 
O que está por trás desta proposta de importação de médicos?
É fato, faltam médicos em várias regiões do país, pois é desigual a distribuição destes profissionais. Segundo dados do CFM, o estado do Rio de Janeiro, por exemplo, têm 33,8 médicos por 10 mil habitantes, enquanto no Maranhão há apenas 6,1 médicos por dez mil habitantes. A média nacional é de 17,6 médicos por dez mil habitantes, ou seja, há médicos, porém mal distribuídos.
 
Este é um dos fatores que tornaram a área da saúde pública a maior preocupação da população em quase todas as pesquisas de opinião pública realizadas no Brasil. Mesmo os eleitores mais governistas, que apoiam o governo Dilma, têm uma opinião negativa sobre a questão da saúde. Esta rejeição acaba respingando ainda mais em prefeitos, vereadores, deputados e governadores. Isso porque, após o processo de descentralização da gestão promovido na implantação do SUS, a saúde pública ficou sob a responsabilidade de estados e, principalmente, municípios, independentemente de suas possibilidades de ofertar serviços de saúde. A exceção é o município do Rio de Janeiro, que por ter sido capital federal, abriga ainda uma importante rede de hospitais e institutos federais. O Ministério da Saúde está tentando privatizar esta rede, por meio da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) e sua subsidiária Saúde Brasil, mas tem encontrado a resistência dos servidores.
 
Alexandre Padilha é pré-candidato ao governo de São Paulo pelo PT para as eleições de 2014 e sabe que a avaliação ruim da saúde pode acabar com seu projeto eleitoral, tanto pela insatisfação popular, quanto pela indisposição de prefeitos da base aliada do governo para realizar acordos eleitorais devido à insatisfação dos mesmos com a incapacidade do ministro em resolver os problemas de saúde dos municípios. É por isso que Padilha tem frequentado a mídia com esta desenvoltura, prometendo médicos importados mesmo sem ainda ter os convênios acertados com os outros países.
 
Porém existe outra preocupação que vem crescendo dentro da burocracia governamental federal. O Brasil tem apresentado índices fracos de crescimento econômico, a inflação dá sinais de crescimento e o setor de serviços é um dos puxadores da inflação. Dilma quer deixar como marca a redução de juros. Por isso, o Banco Central tem sido cauteloso em usar a arma de aumento de juros para derrubar a inflação.
 
Nesse sentido, outra forma de derrubar a inflação é a diminuição do poder de compra dos trabalhadores. A importação de mão de obra, como já aconteceu em outros países, pode auxiliar nesta tarefa. O mesmo diagnóstico de falta de médicos é feito para engenheiros, profissionais da área de telecomunicações, programação e várias outras. Se a moda com os médicos pegar, outras categorias profissionais podem se preparar para enfrentar a mesma situação.
 
Nunca é demais lembrar que um dos objetivos centrais do governo Dilma é o da flexibilização dos direitos trabalhistas, ou seja, diminuição do custo do trabalho. Esta é uma das exigências do empresariado brasileiro, dentro do discurso chavão do “Custo Brasil”. Constantemente, o governo e o empresariado discursam contra a CLT e defendem sua atualização, sempre com propostas que retiram direitos dos trabalhadores. Outra forma de conseguir esta redução do custo do trabalho é através da aplicação de medidas pontuais, como por exemplo, esta importação de mão de obra.
 
Rigor na análise
Muitos ativistas honestos da saúde apoiaram ou ficaram em dúvida sobre a vinda de médicos cubanos. Eles sabem das terríveis dificuldades que a população, principalmente os estratos mais pobres, enfrenta para conseguir atendimento nos serviços de saúde públicos. Muitos acreditam que é melhor um médico temporário do que não ter nenhum. Outros se entusiasmaram com a possibilidade de que os médicos cubanos, com uma formação voltada para a atenção primária, ajudassem a implantar uma visão mais socialista da saúde, mais próximas das ideias originais do movimento pela reforma sanitária dos anos 1980, e que com isso, seria possível qualificar a saúde da família. Houve quem imaginasse que os médicos cubanos fossem capazes de desencadear uma mobilização reivindicatória por ampliação de serviços e aumento nos recursos financeiros governamentais para a saúde.
 
Esta visão é errada e utópica. Para fazer uma análise correta da proposta do governo, devemos partir do projeto político deste governo para o Estado, particularmente do projeto para a saúde. O governo Dilma, assim como o governo Lula, tem um projeto na essência muito parecido com o da oposição de direita: privatização e subfinanciamento. 
 
É um governo que ainda mantém a confiança da maioria dos trabalhadores, mas que de fato governa com e para a burguesia. Toda medida aparentemente progressista traz embutida um ataque à classe trabalhadora e a seus direitos. Como exemplo, temos a EBSERH, que os governistas defendem ser um projeto melhor do que as Organizações Sociais (OS) porque teria concurso público para substituir a precarização dos contratos hoje realizados nos hospitais universitários. Afirmam que, no caso dos hospitais e institutos federais, ela qualificará a gestão. É uma argumentação perversa, pois o centro do problema é que tanto a EBSERH e suas subsidiárias propostas pelo governo petista e rechaçadas pela comunidade acadêmica, quanto as OS ou parcerias público-privadas do PSDB, são modelos de privatização, ou seja, ataques ao SUS e ao direito à saúde.
 
Na questão do financiamento do SUS, há muitos anos estava no congresso nacional a Emenda Constitucional nº 29, de 2000, que era uma reivindicação histórica do movimento de saúde. A EC 29 era vista como uma esperança de garantir uma destinação de verbas mais adequada para a saúde. Em dezembro de 2012, esta emenda foi aprovada, porém sem a sua parte essencial, que era a definição de um mínimo de gastos do governo federal com a saúde. Em outras palavras, foram anos de discussão destruídos por uma decisão do governo federal, apoiada pelo PT e demais partidos da base, de não aumentar os gastos com saúde pública. Deste modo, o Brasil continua a apresentar uma defasagem em relação ao porcentual do orçamento público investido na saúde em relação à média mundial.
 
O governo tem deixado vazar, também, notícias de encontros com a cúpula dos proprietários de grandes planos de saúde privados, com a ideia de dar (mais) incentivos fiscais para que eles possam baratear os planos e atender à “nova classe média emergente”. Em outras palavras, prefere subsidiar os planos privados a aumentar a destinação de verbas para os serviços estatais.
 
Este governo privatista, que economiza na saúde para garantir o pagamento de juros para os banqueiros nacionais e internacionais, que faz acordos políticos com o que há de pior na direita brasileira (Maluf, Renan Calheiros, Sarney, Collor, Barbalho, Kassab, Feliciano- a lista é interminável e assombrosa), não vai produzir nenhuma medida política genuinamente progressiva para o povo brasileiro. Os ativistas da saúde pública, os verdadeiros socialistas, tem obrigação de desmascarar este governo em todas as suas medidas e destruir a ilusão que ainda existe. Não fazer isso só alimenta ainda mais a força e a possibilidade do governo na destruição da saúde pública.
 
Por que faltam médicos no SUS e no interior?
O déficit de profissionais especializados só pode ser revertido com medidas mais estruturais, como a garantia para os recém-formados que de fato vale a pena ir trabalhar nas áreas mais carentes. Isso exige a implantação imediata de um Plano de Cargos, Carreiras e Salários para os profissionais do SUS, que garanta salários atraentes, estabilidade no emprego e estimule a formação técnica permanente. O Brasil pode até aumentar a quantidade de médicos formados por ano, mas sem uma carreira decente no SUS eles serão drenados para a saúde privada, como atualmente já acontece. Portanto, é necessário reverter o projeto de destruição do SUS. Precisamos de um plano oposto para chegarmos à estrutura de saúde pública que defendemos.
 
No interior do país, além da inexistência do PCCS no SUS, não há infraestrutura adequada. Muitas vezes, há péssimas condições de trabalho, impossibilidade de uso de tecnologias de saúde (exames, avaliações de profissionais mais especializados, trabalho multiprofissional, medicação e aparelhagem hospitalar adequada). Esta infraestrutura só pode ser construída e mantida com pesados investimentos em saúde, que obrigam a uma verdadeira inversão de prioridades governamentais: no mínimo dobrar as verbas para a saúde pública, implicando em romper com a lei de responsabilidade fiscal e acabar com o mecanismo de desvinculação das receitas da união.
 
Hoje, já existem médicos estrangeiros trabalhando no Brasil e eles não estão no interior do país e sim nas grandes cidades. Há cerca de 2.400, dos quais 40% são bolivianos. A presença deles ocorre por iniciativa individual, são trabalhadores em busca de uma vida melhor. Porém o que é inaceitável é que a importação de profissionais se transforme numa ação de governo. Diante desses dados, outro questionamento que surge é o de como o governo conseguirá impedir que estes médicos trabalhem fora dos locais designados. Ao definir que a periferia das grandes cidades faz parte do território onde serão colocados estes profissionais, o governo federal está também decretando que não poderá controlá-los, pois é óbvio que eles serão convidados a trabalhar em serviços privados de categoria mais baixa, em que o controle legal é muito precário.
 
Por fim, é necessário transformar a formação dos novos profissionais médicos. O Brasil tem muitas escolas de medicina, contudo estão concentradas nos centros urbanos e seu acesso é restrito a estratos sociais mais altos da população. Tal situação ocorre seja porque apenas esses setores têm condições financeiras de pagar os altos valores das mensalidades das faculdades privadas, ou ainda, porque as pessoas oriundas desses setores, durante sua trajetória escolar, tiveram acesso a bons colégios e com isso, se cacifaram para passar na injusta peneira do vestibular das universidades públicas. Desse modo, alimenta-se um ciclo-vicioso, por um lado, esses segmentos da sociedade desejam manter seu “status quo” e, por outro, o setor público apresenta limites impostos pelos governos, deste modo, os médicos se voltam para a atuação liberal, na iniciativa privada, e a população que depende do SUS é prejudicada.
 
Como agravante e elemento consequente dessa situação, os currículos médicos não refletem as necessidades do SUS e nem os problemas de saúde da população, principalmente as mais carente. Deste modo, medidas de grande importância para fixar médicos no SUS inclui democratizar o acesso às faculdades de medicina e reorientar a formação dos novos profissionais. É importante também capacitar os médicos que já estão no mercado para atuarem no SUS.
 
Uma palavra sobre os médicos cubanos
O PSTU sempre defendeu as conquistas da revolução cubana, particularmente no campo da saúde, em que uma pequena ilha latino-americana conseguiu alcançar indicadores de saúde de países desenvolvidos. Não podemos fechar os olhos, porém, aos fatos. A restauração capitalista já ocorreu em Cuba com o retorno da propriedade privada em setores chave da economia, o fim da planificação da economia e do monopólio do comércio exterior e muitas conquistas estão se perdendo. Isso vale também para a saúde.
 
Este posicionamento contra a importação de médicos para o Brasil não pode, sob hipótese alguma, se confundir com um discurso xenófobo, contra os imigrantes em geral ou contra imigrantes de um país em particular. A xenofobia é uma ideologia a serviço da divisão da classe trabalhadora e só serve para atrasar a organização de nossa classe para a luta contra o capitalismo.
 
O PSTU é contra a importação de médicos, inclusive cubanos, porque compreende que este projeto de governo é um ataque aos direitos trabalhistas, é altamente precário e porque não representa uma medida estrutural para construção do SUS. Não podemos deixar de assinalar, também, que o déficit de profissionais não é apenas de médicos. Há vários outros especialistas que são insuficientemente presentes e valorizados no SUS, como psicólogos, terapeutas ocupacionais, dentistas, farmacêuticos, fisioterapeutas, enfermeiros etc.
 
Nenhum profissional isoladamente é capaz de resolver os problemas de saúde da população. É insuficiente colocar médicos em áreas de vazio sanitário para iludir a população, principalmente os setores mais pobres, a pensar que está de fato esta sendo assistida em seu direito à saúde. É perverso semear esse tipo de ilusão, que mascara um viés eleitoreiro e o descompromisso com a construção de um verdadeiro sistema de saúde público, estatal, de qualidade e com financiamento adequado. Um SUS efetivamente universal no qual a população tenha acesso não apenas a serviços de saúde básicos, mas também aos tratamentos mais modernos e complexos, quando necessário.  Apenas com estas mudanças estruturais começaremos a trilhar o SUS inspirado em ideias socialistas de saúde.
 
Nosso programa frente ao déficit de médicos no SUS
– Defender o SUS 100% estatal, público e de qualidade, sob o controle da população
– Não à privatização! Seja na forma de terceirização das relações de trabalho e da gestão pública (por meio de OS, fundações, parceira público-privadas, EBSERH e suas subsidiárias, como a Saúde Brasil), seja por meio de incentivos a rede privada e aos planos de saúde
– Fim da lei de responsabilidade fiscal
– Por concurso público com Regime Jurídico Único (RJU)
– Dobrar, no mínimo, o financiamento para a saúde pública e estatal
– Implantar o PCCS no SUS
– Criar uma rede de atendimento de qualidade, com serviços básicos, de média e alta complexidade, incluindo exames, profissionais especializados e medicamentos.
– Fim da desvinculação das receitas da união (DRU) e da exigência perversa do superávit primário
– Democratizar o acesso às faculdades de medicina a estratos sociais mais populares, por meio, da qualificação do ensino público, e com a ampliação de medidas afirmativas, como a ampliação de cotas sociais e raciais neste curso
– Reorientar os currículos médicos para atender às necessidades de saúde da população e ao SUS
– Combater a flexibilização dos direitos trabalhistas com a importação de médicos e outros profissionais como política de governo
– Condenar discursos xenófobos, racistas e fascistas utilizados para impedir a importação de médicos, principalmente cubanos