Certa feita, afirmou-se que, se os jovens hegelianos avistassem o então ditador Napoleão Bonaparte cavalgando sobre seus domínios no Velho Continente, não hesitariam em exclamar: “lá vai o Espírito do Mundo a galope”. O tour de George W. Bush pela América Latina não teve outro objetivo – em analogia histórica de longo alcance – senão “passar em revista” as fileiras de governos lacaios, comparsas e capachos.

As diferenças são muitas, sendo que duas de fundamental importância. A primeira refere-se ao capitalismo que se gestava no século XVIII versus o império dos monopólios que, atualmente, subjuga todos os rincões do planeta a sua lógica destrutiva e incontrolável. A segunda é que a Filosofia do passado ateve-se à interpretação – meramente contemplativa – do mundo quando hoje, diferentemente, a História conclama os deserdados da Terra à luta por sua transformação. Aí se encontra o significado profundo do ódio dirigido por piqueteiros argentinos, trabalhadores brasileiros e a juventude panamenha ao principal passageiro da aeronave Air Force One.

Segundo o jornal britânico The Times a América Latina constitui a segunda região do mundo no ranking de maior repúdio da população a Bush, logo após o Oriente Médio, sob ocupação militar direta. Na Argentina, o rechaço alcança quase 80% da população, segundo a rádio BBC. De um lado, tapetes vermelhos, parcimônia e elogios de parte a parte: consenso. De outro, gendarmes, cavalaria e armas em confronto aberto com a população: força. Não poderia haver maior distância entre governantes e governados durante a celebração da IV Cúpula das Américas em Mar del Plata, convertida em uma Seattle latino-americana.

Aquele que tentar orientar-se exclusivamente pelas páginas da grande imprensa nacional e internacional ver-se-á enredado por intrincadas tramas ideológicas. Na síntese encontrada por Clóvis Rossi, enviado da Folha de S. Paulo à Argentina, encontramos os aspectos mais significativos de tal imbróglio discursivo: “Chávez ironizou os EUA de George W. Bush, que elogiou Luís I. da Silva, que aplaudiu o discurso do argentino Nestor Kirchner, que atacara duramente os EUA na véspera”. Na verdade, o mis-en-cène do cenário político burguês implica sempre um jogo de luz e sombras – ampliado à larga escala na relação de forças internacional –, que simultaneamente revela e oculta, sempre em benefício das classes dominantes. Neste marco, a Alca projetou-se amplamente como a maior controvérsia entre os diferentes chefes de Estado da Organização de Estados Americanos (OEA). A aparente divergência em torno à redação da declaração oficial – expressa nas diferentes propostas da Venezuela, Mercosul e EUA/México sobre o parágrafo sobre a Alca – oculta a unidade real em torno à lógica do mercado enquanto critério determinante.

Antecedentes
A nova cúpula hemisférica ocorreu sob a consigna de “gerar empregos para reduzir a pobreza e fortalecer a governabilidade democrática”. Nada mais paradoxal do que tal evento acontecer na Argentina. Apontada como exemplo paradigmático dos supostos êxitos da política econômica do FMI para países considerados “em vias de desenvolvimento” – no lastro da queda do Muro de Berlim em 1989 e a partir do “ajuste estrutural” e das contra-reformas orientadas-para-o-mercado, a Argentina era exaltada pelo ideário neoliberal do Consenso de Washington. O ex-líder portenho Carlos Menem mantinha “relaciones carnales” com o Império do Norte. Não obstante, com as jornadas revolucionárias da Argentina em 2001 e 2002, cai impetuosamente por terra um boa parte do arsenal ideológica pró-imperialista da chamada “globalização neoliberal”. O processo de saque, desindustrialização e superexploração eliminou milhões de postos de trabalho fabril, aumentou de forma exorbitante os índices de miséria absoluta e levou à bancarrota a imensa maioria da outrora numerosa classe média argentina.

As contradições sociais que levaram à explosão das jornadas revolucionárias – com o amplas mobilizações de massas e formas embrionárias de duplo poder – seguem abertas sob o governo Kirchner, que só fez continuar e aprofundar a submissão ao FMI e ao capital financeiro internacional. Entre 2002 e 2004, a diferença entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres chegou a 30 vezes. Na região de Buenos Aires essa relação foi ainda maior, de 50 vezes, enquanto que, em 1974, era de 12 vezes. A participação da renda dos trabalhadores no PIB do país também não pára de cair. Era de 49% em 1974, passou a 27,9% em 2001, a 21,5% em 2004, e a 20% em 2005.

Contraditoriamente, governos como o de Kirchner e Tabaré Vasquez, do Uruguai, gozam de amplos índices de apoio. De toda forma, as expectativas e ilusões geradas junto às populações tende a se dissipar em ritmo bastante acelerado – conforme demonstra a história recente – a partir da experiência real com os governos eleitos. Na verdade, desde o final do século XX generalizaram-se situações revolucionárias que sacudiram as estruturas de poder – assentadas em décadas de exploração e ofensivas neoliberais – por toda a América Latina: El Alto, 2005; La Paz, 2003; Caracas, 2002; Buenos Aires, 2001 e Quito, 2000. Governos eleitos tremeram sob a pressão popular de trabalhadores, camponeses, desempregados, indígenas, estudantes e demais setores. A hegemonia regressiva do neoliberalismo impôs violentos golpes aos trabalhadores e fez com que as democracias burguesas fossem largamente questionadas no subcontinente. Neste contexto, a visita de Bush visa assegurar seu poderio na região, afiançando a dominação imperialista em suas dimensões política, econômica e militar.

“Nuvens (…) em plena turbulência”
“Aeromoça nervosa, pede calma (…) Sei que é sonho, incomodado estou num corpo estranho / Com governantes da América Latina”. O início da letra da composição de Chico Buarque – “Sonhos, Sonhos São” – parece ter sido escrito como trilha sonora para o levantamento do vôo da ave de rapina que simboliza o Estado norte-americano, particularmente as dificuldades enfrentadas pelo governo Bush face à Cúpula das Américas. Não é à toa que a Casa Branca aventou a possibilidade de que Bush não figurasse entre os 34 representantes da OEA no evento. A crise experimentada pelas negociações da Alca tem muito mais a ver com os atritos entre as diferentes frações burguesas do próprio bloco de poder dos EUA – capital financeiro e agronegócio – do que à suposta oposição enfrentada pelo Mercosul e a Venezuela. Kirchner, afora dos discursos altissonantes, comprometeu as gerações futuras da Argentina com 30 anos de submissão ao FMI e Lula, por sua vez, foi além: “Veja, vamos trabalhar juntos em Doha para, depois, continuar trabalhando no Acordo de Livre Comércio das Américas”, afirmou a Bush.

Chávez sugeriu que a atuação dos “cinco mosqueteiros” – os quatro países do Mercosul e a Venezuela – teria “sepultado definitivamente” o projeto da Alca. Mas a verdadeira demonstração de força veio das ruas, a partir de cerca de 500 organizações de todo o continente que levaram mais de 40 mil manifestantes a Mar del Plata contra Bush.

O projeto de Área de Livre Comércio das Américas configura-se como proposta de zona hemisférica de “livre comércio” entre os países das Américas, formulada pelos Estados Unidos, abrangendo 34 Estados do sul da Argentina ao norte do Canadá, excetuando-se Cuba, exigência dos EUA. O projeto da Alca tem origem em proposta lançada em 1990 pelo então presidente George Bush, à época conhecida como Iniciativa para as Américas (“Enterprise for the Americas Iniciative” ou EAI), cujo objetivo central tratava-se de estabelecer uma zona hemisférica de livre comércio que abrangesse os territórios do extremo Alasca aos limites da Terra do Fogo. Na II Cúpula (Santiago do Chile, 1998), e III (Quebec, Canadá, 2001), a Alca foi reafirmada, com seus prazos máximos de negociação previstos para 2005, nesta IV Cúpula.

Durante o encontro, Bush disse que estava no Brasil para “mandar um sinal de que a relação entre Brasil e EUA é importante. O Brasil é um amigo dos EUA. O Brasil é importante para criar as condições para fazer um continente de paz. É natural que trabalhemos com o maior país dessa vizinhança”.