alvaro bianchi*, de São Paulo
Há gestos que sintetizam uma história. No dia 9 de fevereiro, quando a direção do Partido dos Trabalhadores decidiu comemorar o 27º aniversário em um jantar na área verde do Othon Palace Hotel de Salvador, sua trajetória era resumida. Vinte e sete anos atrás, o PT era fundado com a presença de sindicalistas, militantes populares e intelectuais. Neste jantar comemorativo o público era outro. Compareceram, segundo noticia o site oficial do partido, “ministros, governadores, parlamentares, dirigentes, delegações estrangeiras”.

No jantar havia também, segundo informado pela assessoria de imprensa do PT, “militantes”, mas só os poucos que puderam pagar o convite de R$300. Ao todo eram 500 felizardos, que também aproveitaram para comemorar “outras conquistas recentes, como os governos estaduais eleitos – em especial o da Bahia, em que a eleição de Jaques Wagner pôs fim a décadas de domínio carlista – e a vitória de Arlindo Chinaglia na presidência da Câmara”.

Nos discursos falou-se muito de eleições, de eleitos, de ministros e do presidente, é óbvio. Mas não houve referências à luta sindical ou aos movimentos populares que deram origem ao partido. Falou-se de uma “volta por cima” e das “conquistas do partido”, mas existiu um silêncio constrangedor sobre José Dirceu, José Genoíno ou os demais líderes petistas que articularam o mensalão.

“Transformismo”
A distância que separa o PT da fundação deste que comemora seu aniversário em um hotel de luxo é gigantesca. Mudou o discurso, mudou o partido e mudou sua base social. Uma pesquisa de Paulo Roberto Figueira Leal, publicada recentemente no livro O PT e o dilema da representação política (RJ: FGV, 2005), ajuda a compreender como o partido transformou-se em uma agremiação de gabinetes e engravatados. A pesquisa revela que o eixo sobre o qual giraria a atividade parlamentar dos petistas não seria aquele que conectaria os deputados com os movimentos sociais e sim o que vincularia os representantes com o partido.
Apenas 14,89% dos deputados entrevistados por Leal afirmaram dever fidelidade aos movimentos sociais, categorias profissionais ou localidades, enquanto para 63,82% o partido mereceria essa fidelidade. Esses dados reafirmariam a concepção, presente nos estatutos e nos documentos do partido desde sua fundação, de que o mandato pertence à agremiação. Daí que 61,7% dos entrevistados por Leal possam responder, sem constrangimentos, que o mandato é eminentemente partidário, mesmo que em desacordo com os desejos da base.

Contrariar suas bases eleitorais poderia, entretanto, ter para os deputados um custo medido em votos perdidos. Para anular ou reduzir esses custos, a regulação partidária da atuação legislativa dos deputados teria como contrapartida, aponta Leal, a transformação da estrutura de seus gabinetes em máquinas eleitorais de atendimento aos movimentos sociais. Os deputados petistas compensariam uma atividade legislativa centralizada pelo partido, e não por suas bases sociais, com uma política de profissionalização de quadros oriundos dos movimentos que lhes dão apoio eleitoral.

A profissionalização de dirigentes dos movimentos sociais pelos gabinetes de deputados e, agora, pelos postos controlados pelo PT no Estado, é um modo de operacionalização do “transformismo” político. Os movimentos sociais, em vez de serem incorporados ativamente na esfera da política, ingressam passivamente por meio da transformação de seus dirigentes em funcionários do Estado. Encontram-se aqui processos de reconversão social e política. Social, pela passagem de sindicalistas, líderes comunitários, ambientalistas ou estudantis à condição de membros de uma burocracia estatal. Política, pela passivação dos interesses e práticas desses sujeitos sociais e a adequação bem comportada destas a seu novo ambiente institucional.

Neoclientelismo
Ao transformismo dos quadros dirigentes dos movimentos sociais soma-se o processo de constituição de uma nova base social por meio do neoclientelismo. Privilegiando a alocação de recursos de programas como o Bolsa Família nas regiões nas quais teve pior desempenho nas eleições de 2002, o Partido dos Trabalhadores conseguiu construir uma nova base social.

Comparando os dados de 2002 com os resultados de 2006, é possível perceber que a votação de Lula cresceu nos municípios com menos de 50 mil habitantes e caiu nos municípios com mais. Essa nova geografia eleitoral coincide com as regiões nas quais os trabalhadores são menos organizados e contrasta com a força que o partido sempre demonstrou nos grandes centros urbanos. Analisando esses resultados, os cientistas políticos Jairo Nicolau e Vitor Peixoto concluíram que “Lula obteve percentualmente mais votos nos municípios que receberam mais recursos per capita do Bolsa Família”.

Foram esses votos os que permitiram ao governo “dar a volta por cima”, como gostam de dizer seus dirigentes. Mas o preço foi alto. A crise do mensalão evidenciou que o Partido dos Trabalhadores perdeu o monopólio das ruas e dos movimentos sindicais e populares. As eleições mostraram que para enfrentar a crise o partido de Lula buscou refúgio no mesmo lugar no qual o partido da ditadura, a Arena, foi lutar pela sua preservação: no interior das regiões mais pobres do país.
Ao invés de representar um projeto de emancipação social, o PT e o governo Lula trocam pão por voto.

Os trabalhadores da cidade e do campo cujas lutas povoavam a retórica desse partido não são mais citados e em seu lugar apareceu um novo personagem o “o povo pobre desse país”, ao qual Lula fez referência em seu discurso comemorativo. Mas quem é esse “povo”? Ele não está nos sindicatos, nos movimentos de trabalhadores sem terras, ou em associações de moradores. Ele não aparece nunca como um sujeito organizado ou mobilizado.

O “povo” que agrada os dirigentes do PT é a dispersa e atomizada clientela dos programas assistencialistas. É uma soma de indivíduos que se manifesta apenas isoladamente na cabine eleitoral. Ao invés de estimular a atividade do movimento social, Lula e seu partido promoveram a passividade de indivíduos isolados acorrentados a redes neoclientelistas. A sigla que comemora 27 anos continua, é verdade, a existir, mas ela não é mais a expressão das forças sociais que se fizeram presentes em sua fundação.
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