Secretaria Nacional LGBT

Roberta Maiani, da Secretaria LGBT do PSTU (RJ) e Dayse Oliveira, pré-candidata à prefeitura de São Gonçalo e da Secretaria Nacional de Negras e Negros

Para falar o que significa ser uma mulher lésbica, negra e trabalhadora, conversamos com Rosirene Soares, aposentada do sistema judiciário, no Rio de Janeiro. Rosi, como é conhecida, milita há dois anos no PSTU e começou seu ativismo no movimento LGBT no final dos anos 1990, num coletivo de mulheres lésbicas negras.

Em um depoimento dado para o artigo “Lésbicas e bissexuais: resistindo à invisibilidade e à pandemia”, publicado na última edição do jornal Opinião Socialista, Rosi sintetizou sua experiência: “Ser negra e lésbica nessa sociedade é encontrar muitas portas fechadas quando se procura emprego nas ditas ‘boas empresas’. É ser previamente desqualificada e, por conta disso, ter que ficar provando o tempo todo que você é boa no que faz, pois sua capacidade é sempre colocada em xeque”.

Nessa conversa, ela nos falou um pouco mais sobre isto, sobre a importância da luta combinada contra a opressão e exploração, das lutas e dos desafios colocadas para as LGBTs e da necessidade da construção de uma perspectiva revolucionária neste combate.

Agosto é um mês marcante para nós, mulheres lésbicas e bissexuais. Fruto das lutas contra a violência, a lesbofobia, pela visibilidade e direitos, foram estabelecidos o Dia do Orgulho Lésbico, em 19 de agosto, e o Dia da Visibilidade Lésbica, no dia 29. Para você, qual é a importância de termos um Dia da Visibilidade Lésbica?

É importante nos colocar, fazer-nos ver, pois estamos na vida. No mundo. Lutando pela sobrevivência como quase todos estão. E temos as mesmas necessidades. Os mesmos sonhos. E, para além disso, temos medo da violência gratuita que nos é direcionada. Inclusive a questão da visibilidade é de suma importância para ecoar a denúncia quanto ao aumento no número de “lesbocídios”.

É uma forma de lembrarmos à sociedade que também existimos. E, como qualquer pessoa, somos obrigadas a cumprir todo um rol de obrigações, que, na mesma medida, também deveria nos tornar detentoras de direitos, os quais muitas vezes nos são negados.

Na última edição de nosso jornal, você fez uma declaração muito marcante, escancarando que o capitalismo se aproveita da lesbofobia, do racismo e do machismo para explorar a classe trabalhadora. Nos conte mais sobre como a opressão se expressa para você, como mulher negra e trabalhadora?

A opressão se manifesta por meio do preconceito que ela alimenta para nos explorar ainda mais. Tal preconceito, de forma cruel, impede a igualdade de oportunidades. A partir de critérios absolutamente subjetivos, preconceituosos, sou “valorada” em razão da raça e/da orientação sexual. E, sob essa ótica capitalista, são esses traços que me identificam como pessoa e acabam por “depreciar a minha mão de obra”, levando o meu trabalho a “valer menos” pura e simplesmente por eu ser como sou e não pela aptidão que tenho para realizá-lo.

Como foi para você se colocar publicamente em relação ao que significa ser uma mulher negra e lésbica nessa sociedade? E como as pessoas que leram a matéria reagiram à sua declaração?

Primeiramente, foi um desafio, pois tratava-se de uma proposta inédita e com inúmeras possibilidades de repercussão justamente por ser pública. Em razão disso fiquei com um certo receio. Nasci negra, contudo, só mais tarde me construí lésbica. E veja só que contradição: ao nascer negra, “você já nasce militando”, pois essa condição já joga você na luta (querendo ou não), em razão das opressões do dia-a-dia. Porém, enquanto lésbica, fui ensinada a me esconder, a fim de não me tornar alvo de toda sorte de violências, de rejeições…

Por isso, num primeiro momento eu até pensei em restringir a amplitude da publicação, afinal como as pessoas iriam entender essa autodeclaração?  Mas, enfim, decidi publicar e enfrentar as consequências. Não sei como foi repercussão geral, porque essa coisa de redes sociais sai do seu alcance quando os compartilhamentos vão se multiplicando. Agora, quanto ao grupo de amigos com os quais compartilhei diretamente, os comentários foram bem legais, bem afetuosos. Encorajadores, até. E olha que neste grupo havia muitos héteros também.

Temos no Brasil um presidente extremamente LGBTfóbico, preconceituoso e adepto da ideia de que a única forma legítima de família é a “tradicional”: homem, mulher e filhos. Essa ideia também é transmitida por setores conservadores e grupos religiosos. Você, como uma mulher lésbica, que vive com sua companheira e o filho de vocês, o que tem a dizer sobre isso?

Bem, em nenhum aspecto de seu perfil, este senhor me representa. Afinal, eu sou tudo que ele odeia: sou mulher, negra, lésbica, pobre e aposentada. Além disso, a “família ideal” que ele defende é a dele: a família ‘mau caráter’, que também não me representa. Até porque ele teria que comer muito feijão com arroz para constituir uma família como a minha:  honesta e batalhadora.

Quanto às igrejas, sabemos que as religiões de um modo geral (com exceção das de matriz africana) são excludentes. Historicamente vêm excluindo pobres, mulheres, indígenas, negros, homossexuais… Muitas vezes afastam-se do que deveria ser a sua essência, como o amor ao próximo, por exemplo. Isso acaba por constituir um grande paradoxo.

No Brasil, o movimento LGBT começou a se reorganizar nas lutas contra a ditadura militar, a partir da imprensa alternativa, como o Lampião de Esquina, Chanacomchana e de grupos, como o Somos, do qual a nossa corrente (na época Convergência Socialista) fez parte. Nessa época, que questões estavam colocadas para você? Que dificuldades se colocavam para as mulheres lésbicas quando surgiu esse movimento?

Nessa época, para mim especificamente, a questão lésbica não era uma preocupação. Ainda me era um mundo desconhecido… Poucos anos depois eu comecei a frequentar boates e bares, que na ocasião, eram chamados de “locais GLS”. E era pura curtição. Eu ia com amigos gays, mas ainda não me relacionava homoafetivamente (nem sei se já havia essa palavra). Porém eu tinha uma amiga que se assumiu lésbica muito cedo e precisou encarar a militância muito de frente porque era alvo constante de violência. Ela sofria pressão da família em casa e comportamentos agressivos na rua, nos transportes coletivos… Puxado!

Para você, o que mudou de lá pra cá?

Mudaram, por exemplo, alguns aspectos legais. Lembrando que todos eles foram frutos de muita luta e que, na verdade, algumas destas mudanças ainda não são legais. São jurisprudenciais, ou seja, ainda não viraram leis porque o nosso Congresso é bastante LGBTfóbico e consequentemente, lesbofóbico. Bons exemplos disso são o “casamento homoafetivo”, o “direito de herança para casais homoafetivos”

Outra mudança interessante ocorreu para o registro de crianças filhas de duas mães que tenham realizado procedimento de “reprodução assistida”: a documentação da criança já sai da clínica com os nomes das duas mães, se estas assim desejarem. Legal isso, né? Mas, aí, já começa outra questão que tem muito a ver com o recorte de classe: é que esse tipo de procedimento é muito caro. Então, as lésbicas periféricas, por exemplo, estão meio longe desta realidade…

E hoje, quais são, para você, as principais lutas e desafios em relação à mulher lésbica?

Ainda há muitas lutas e desafios! Há que se propor uma política pública de saúde para a mulher lésbica. A que se atentar também para a questão legal, no que diz respeito aos assassinatos das lésbicas em razão da orientação sexual, pois seria interessante o reconhecimento do lesbocídio, como um traço de opressão a ser veementemente combatido, para, em consequência, pleitear-se uma majoração da pena. A lista é grande!

Nós temos muito orgulho de você militar no PSTU. O que despertou em você a vontade de militar pelo socialismo? Porque você acha importante que uma mulher trabalhadora, negra e lésbica, esteja organizada em um partido revolucionário?

Sempre foi muito evidente pra mim a desigualdade gritante existente na sociedade capitalista. Mesmo não nomeando desta forma, sempre externei um inconformismo com essa realidade nas conversas informais com amigos. Entre esses amigos há um casal que prezamos muito: Sérgio e Mônica. E nessas conversas informais, Sérgio ia “desmontando” meus argumentos de “fé no reformismo”.  Desta forma, eu diria que o que despertou em mim a vontade de militar pelo socialismo foi a percepção de que o reformismo não tem respostas para solucionar o caos das desigualdades presentes no capitalismo.

Aprendi, também, que o capitalismo tem por base a exploração da classe trabalhadora, utilizando-se das opressões para se fortalecer. Me dei conta de que, nessa dinâmica, a minha existência constitui três alvos de opressão (sexo, raça e orientação sexual). Logo, a minha sobrevivência é triplamente atacada!!!

Bem, diante destas constatações concluí que só dentro de um partido revolucionário eu posso lutar por uma sociedade sem exploração e sem opressões.