Apresentado como a democratização do sistema de saúde, projetos de Obama preservam lucros das seguradoras, mantêm exclusão dos mais pobres e aumenta cobrança sobre a maioria dos trabalhadoresO senado norte-americano aprovou um projeto de lei de reestruturação do sistema de assistência à saúde nos Estados Unidos em 24 de dezembro passado. A última vez que o Senado reuniu-se na véspera de natal foi em 1895.

O projeto que garante o acesso ao seguro de saúde para dezenas de milhares de pessoas e corta os custos do sistema obteve os 60 votos necessários. Há um mês, o Congresso havia aprovado um projeto semelhante, por 220 votos contra 215.

A imprensa norte-americana deu grande destaque, pois se tratava de uma das principais promessas da campanha presidencial de Barack Obama. Segundo o New York Times, se uma lei assim “seria um marco da política social, comparável à criação da Seguridade Social em 1935 e do Medicare em 1965”.

A secretaria de orçamento do Senado estima que a lei ofereceria cobertura para mais 31 milhões de pessoas atualmente sem seguro, mas deixaria de fora 23 milhões até 2019.

Os projetos de lei do Congresso e do Senado tiveram o apoio de apenas um deputado republicano. Segundo Mitch McConnell, senador republicano por Kentucky, “nossos membros estão saindo felizes e otimistas; o público está do nosso lado. Esta luta não acabou”, de olho nas eleições legislativas desse ano. Tal otimismo pode ser explicado pelo fato de os projetos autorizarem um aumento de impostos, em tempos de crise econômica, para bancar um custo extra de US$ 871 bilhões no orçamento federal em 10 anos. O novo imposto atingiria principalmente aqueles que já têm seguro, isto é, o grosso da classe trabalhadora das grandes empresas norte-americanas que oferecem planos de saúde para seus empregados.

Por sua vez, Obama declarou que “estamos incrivelmente perto de fazer a reforma do seguro saúde tornar-se realidade”. A reforma pretende proibir que as empresas seguradoras neguem cobertura a pessoas com pouca saúde, ou que cobrem mais em função de sexo ou idade ou ainda que não ofereçam cobertura a pessoas com determinadas doenças.

Parece mas não é
À primeira vista, trata-se de uma disputa entre democratas que pretendem reparar “uma grande injustiça, um grande erro imposto ao povo americano” – como disse o senador Tom Harkin – e republicanos ávidos por manter os lucros da indústria privada da saúde.

No entanto, um exame mais detalhado dos projetos mostra que os grandes beneficiados serão justamente as empresas privadas de seguro. Todos os planos de saúde serão gerenciados pelas seguradoras, exatamente aquelas que mais prejuízos acumularam com o estouro da bolha imobiliária em 2008. Ao contrário do Senado, o projeto do Congresso ainda propõe um tímido plano de saúde estatal para concorrer com as seguradoras. Porém, enquanto estas receberão US$ 87 bilhões por ano de subsídios para fornecer o seguro a pessoas de baixa renda, o sistema estatal começaria com a irrisória quantia de US$ 2 bilhões.

Talvez o ataque mais pesado seja o corte no orçamento do Medicare, o sistema público que abrange cerca de 40 milhões de norte-americanos acima de 65 anos, deficientes e pacientes terminais por doenças renais. Está prevista uma redução de US$ 500 bilhões em 10 anos para esse sistema. Ou seja, ocorrerá uma transferência do atendimento público para o setor privado; um projeto semelhante à reforma da previdência realizada pelos governos FHC e Lula no Brasil.

Um negócio sem risco
Apenas 10 companhias de seguro privado controlam quase 70% de todo o mercado. São elas que controlam a gestão e o financiamento do sistema de saúde dos Estados Unidos.

Apesar das limitações que serão impostas aos planos de saúde, as seguradoras não acionaram seus “lobbies” para impedir a aprovação dos projetos. É que a redução dos lucros nos planos atuais será mais do que compensada pelo aumento forçado do público comprador dos novos planos de saúde.

Isto ocorrerá porque ambos os projetos impõem multas aos cidadãos que não aderirem a algum plano, com pouquíssimas exceções. As multas aprovadas pelo Congresso chegam a US$ 9 mil por pessoa, enquanto o Senado defende um aumento progressivo das multas que chegariam a US$ 750 ou 2% da receita em 2016. Em outras palavras, paga-se um plano privado de saúde ou se paga uma multa, a escolha é do “freguês”…

A pouca chiadeira das seguradoras se explica ainda pela relação da indústria de saúde com o Partido Democrata. Barack Obama recebeu muito dinheiro da indústria da saúde para financiar sua campanha. Foram 19 milhões de dólares de empresas de saúde e outros 2,25 milhões das seguradoras. As seguradoras, que tiveram seus subsídios audmentados em 170% entre 2003 e 2007, também investiram milhões nas campanhas dos senadores que integraram a equipe à frente do projeto.

Os “sem-plano”
Como os novos segurados terão que pagar a empresas privadas que não admitirão inadimplência, os congressistas tiveram o cuidado de deixar os mais pobres de fora da obrigatoriedade. Estes continuarão sem qualquer assistência médica.
Além dos que vivem abaixo da linha de pobreza, ficarão sem cobertura cerca de oito milhões de imigrantes “ilegais”, o custeio subsidiado de aborto será proibido e o Programa de Seguridade da Saúde da Criança, que beneficia os filhos dos trabalhadores mais pobres, seria abolido.

Para resumir, o novo sistema de saúde proposto acaba ou sucateia o já frágil sistema estatal norte-americano de seguridade social, destina quase um trilhão de dólares de verba pública às empresas privadas de seguros, força os trabalhadores de baixa renda a comprarem um plano de saúde e deixa os mais pobres, os imigrantes e as mulheres que optarem por aborto de fora do programa.

É esta a reforma pela qual tanto lutou o novo presidente norte-americano. Bem-vindos à “era Obama”.

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  • A reforma da Saúde nos EUA

    15/9/2009