Brasilia DF 05 08 2019 Presidente do Senado, senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), recebe na Residência Oficial da Presidência do Senado, o ministro da Economia, Paulo Guedes e o presidente da Camara dos Deputados, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) Foto: Marcos Brandão/ agencia Senado

No momento em que o Brasil registrava 53.874 mortes pelo coronavírus, o Senado aprovava, na noite desta quarta-feira, 24, a privatização da água no país. O chamado novo marco regulatório do saneamento básico (PL 4162/2019), eufemismo para concessão e entrega do setor à iniciativa privada, foi aprovado por 65 votos contra 13.

Como o projeto do governo Bolsonaro já havia sido aprovado na Câmara, ele vai agora à sanção do presidente. Sua aprovação foi articulada entre o ministro da Economia Paulo Guedes e o relator Tasso Jereissati (PSDB-CE), votado a toque de caixa e contando com amplo apoio de um largo espectro que vai da mais fiel base bolsonarista até o senador Cid Gomes (PDT-CE), além dos aplausos da imprensa.

O tal novo marco está sendo vendido como uma solução para a universalização do saneamento básico. Com um inacreditável cinismo, de repente, até os mais liberais “descobriram” a existência de pobres e miseráveis sem acesso à água e esgoto, e os números constrangedores do tratamento do saneamento básico no país. Além de universalizar o setor, sem aumentar a tarifa, a privatização, segundo seus defensores, ainda aumentaria os empregos em mais de 1 milhão.

A concorrência do setor privado, assim, seria o responsável por levar saneamento a mais de 100 milhões de brasileiros, além de 35 milhões que hoje sequer contam com água potável.

Se você está achando muito estranha essa história, essa desconfiança tem toda a razão de ser.

O que diz o projeto

O projeto aprovado pelo Senado obriga estados e municípios a abrirem licitação para a concessão de serviço de saneamento básico e tratamento de água. Os investimentos, e os lucros das empresas contratadas (que podem ser multinacionais), serão cobertos pelas tarifas e taxas, e poderão contar com subsídios do Estado. Hoje, os municípios já podem estabelecer contratos (os chamados contratos de programa) com empresas estatais, privadas, de capital misto, ou estabelecer parcerias público-privadas. Ou seja, hoje já é permitida a presença de capital privado no setor, embora 70% do serviço seja fornecido por estatais. O que muda é que será obrigatória a abertura de licitação e o oferecimento do serviço à iniciativa privada (grandes empresas, oligopólios e multinacionais).

Os defensores do projeto argumentam que serão estabelecidas metas para a universalização dos serviços, a serem cumpridas até 2033. O texto aprovado pelo Senado, porém, mostra que essa meta é uma ficção. Primeiro, pela própria fiscalização sob responsabilidade da ANA (Agência Reguladora de Águas). “A primeira fiscalização deverá ser realizada apenas ao término do quinto ano de vigência do contrato“, nas quais as metas “deverão ser sido cumpridas em, pelo menos, 3“. Não cumpriu a meta? O máximo que pode acontecer é terminar a concessão, sem qualquer punição ou sanção à empresa.

Ou ainda, constatada a “inviabilidade econômica financeira da universalização“, o prazo é estendido até 2040. Ou seja, uma grande empresa privada, ou um consórcio de empresas, inclusive internacional, pode pegar um contrato de concessão, não cumprir qualquer meta, ter o contrato prorrogado até 2040, período no qual, ao final, pode simplesmente entregar de volta a concessão.

Uma das experiências de gestão privada do setor é a capital do Amazonas, Manaus. Após ter o setor privatizado em 2000, hoje a capital figura no 6º lugar entre os piores municípios em termos de saneamento, com só 12,5% de coleta de esgoto. Dados do SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento) mostram que, nos últimos 5 anos, a cidade, que representa o 6º maior PIB do país, arrecadou mais de R$ 1,6 bilhão, e investiu no setor só R$ 311 milhões. Não é à toa que a região foi protagonista das cenas mais bárbaras da pandemia no país.

Na contramão do mundo

Enquanto o governo e o Congresso Nacional aprovam a privatização da água no Brasil, no resto do mundo ocorre o oposto. O Instituto Transnacional (TNI), em estudo publicado em maio último, mostra que 312 cidades de 36 países reestatizaram serviços na área de água e esgoto entre 2000 e 2019. Incluem-se aí cidades como Paris e Berlim. Os problemas constatados foram de descumprimento de metas, sobretudo nas regiões mais pobres, às tarifas abusivas.

O caso mais emblemático dessa política, porém, está mais próximo. O Chile privatizou a água durante a ditadura Pinochet, em 1981, através do “Código de Águas. A situação levou a que, em certas regiões, famílias chilenas tenham que se submeter ao dilema entre lavar roupa ou cozinhar (leia aqui).

Água como mercadoria

A privatização do setor elétrico já mostrou como a entrega de um serviço público essencial ao capital privado, ao invés de universalizar e melhorar esses serviços, provoca justamente o contrário. Aumento de tarifas, desmantelamento do que resta das estatais, forte precarização dos trabalhadores do setor e, principalmente, a perpetuação e aprofundamento da falta desses serviços, principalmente à população mais pobre.

Não é difícil imaginar o que vai acontecer em relação ao saneamento. Nos grandes centros urbanos que já contam com infraestrutura, as tarifas vão aumentar. E onde não tem, vai continuar não tendo.

Investimentos caíram nos últimos anos

O discurso privatista do governo, do Congresso Nacional e da grande imprensa, esconde o verdadeiro problema do saneamento básico no Brasil e o estado de calamidade que nos encontramos atualmente: a absoluta falta de investimento no setor. De acordo com o SNIS, a média de investimento caiu nos últimos anos, passando de R$ 13 bilhões em 2010 para pouco mais de R$ 10 bilhões em 2017. Para chegar à modesta meta de universalização do serviço em 2033, estabelecido pelo antigo Plano Nacional de Saneamento Básico, seriam necessários R$ 508 bilhões em investimentos de 2014 a 2033, ou algo como R$ 18 bilhões ao ano. Cifra que não parece não tão grande perto do R$ 1,2 trilhão entregue pelo governo Bolsonaro aos bancos no início da crise.

As promessas cínicas de universalização do saneamento vão entrar na mesma conta dos milhões de empregos que viriam com a reforma trabalhista, ou do tsunami de investimentos que aportariam no Brasil após a reforma da Previdência.

A aprovação do PL 4162/2019 mostra como, apesar da crise política, Bolsonaro e o Congresso Nacional, incluindo Rodrigo Maia, Alcolumbre, PSDB, Rede, Cid Gomes, etc., contam com o mesmo projeto neoliberal de ataques aos direitos mais básicos do conjunto da população. E faz lembrar ainda que o PT, apesar de ter votado contra o projeto agora, passou 14 no poder sem que esse problema tenha sido minimamente resolvido.