Há 25 anos, em 23 de novembro de 1982, morria Adoniran Barbosa, um dos músicos mais geniais e irreverentes da MPB. Nascido em Valinhos (SP), em 1910, com o nome de João Rubinato, este filho de imigrantes italianos talvez tenha sido um dos que mais profundamente incorporou as contradições e o “espírito” da capital paulista que, entre os anos 1930 e 60, transformou-se no centro industrial e financeiro do país no mesmo ritmo em que suas “malocas” eram derrubadas e seu povo empurrado para os arredores das estações da ferrovia.

Um compositor que, como poucos, soube mergulhar no sofrido cotidiano do povo, em seus amores muitas vezes destrambelhados e nas muitas facetas da sociedade brasileira.

Crônicas com sotaque popular
Com cerca de 12 anos, Adoniran abandonou a escola e passou a percorrer as ruas da Grande São Paulo como entregador de marmitas. Anos depois, já na capital, fez um pouco de tudo. Foi vendedor, pedreiro, garagista, mascate, encanador, garçom e metalúrgico.

Foi vagando pela cidade e no contato direto com suas camadas mais populares, que Adoniran compôs sambas embriagados pelo linguajar das ruas e de seus muitos migrantes e imigrantes. Nesse sentido, o fato do bairro do Bexiga estar no centro de sua obra não é mero acaso. Afinal, no decorrer do século, suas ruas e vielas abrigaram sucessivamente ex-escravos negros, migrantes italianos pobres e, finalmente, um agitado centro da boemia paulistana.

Sua carreira teve início em 1934, depois de vencer um concurso de marchinhas. O sucesso lhe rendeu um convite para trabalhar como ator cômico, locutor e discotecário na Rádio Record, onde Adoniran criou personagens tão antológicos, críticos e populares quanto os de suas músicas, como Charutinho que, direto do fictício Morro do Piolho, espinafrava a elite, os preconceitos e os costumes da época.

O sucesso chegou em 1955, com a gravação de dois de seus “clássicos”: “Saudosa maloca” e “Samba do Arnesto”. E, mesmo assim, foi passageiro, fazendo com que Adoniran só voltasse a estourar de novo dez anos depois, quando – numa evidente demonstração de sua “universalidade” – a paulistaníssima “Trem das Onze” venceu um concurso de músicas carnavalescas em plena “capital do samba”, o Rio de Janeiro, tornando-se a música mais tocada no Carnaval de 1964. Na ocasião, a música foi interpretada pelos “Demônios da Garoa”, grupo desde sempre identificado com a obra do compositor.

Sua obra foi marcada por um caminho bastante diferente da maioria dos sambistas, de sua época. Enquanto na década de 50, a maioria dos sambistas – seduzida pelo mercado radiofônico e pelo discurso desenvolvimentista dos “Anos J.K.” – embalava os ritmos populares em letras recheadas de exaltações ao modo de vida e aos valores burgueses, Adoniran caminhava no sentido oposto.

Seus personagens e “heróis” são os desabrigados, os trabalhadores informais, os negros e, também, as mulheres que, apesar de marcadas pelo machismo, vez ou outra conseguem romper com a opressão, como são os casos da “Malvina” e da “Gerarda”, que abandonam seus chorosos maridos, ou da “Carolina”, que sai da favela para se tornar escritora.

São, enfim, os “desajustados”, que vagam solitários em meio à crescente multidão que ocupa uma cidade cuja elite quer transformar em símbolo do “progresso”, do trabalho e da ascensão social. Um projeto obviamente pensado a partir da marginalização de um povo jogado à sua própria sorte.

Malandragem “à paulista”
Em “Güenta mão, João”, por exemplo, Adoniran se remete ao sempre trágico problema das enchentes (“Não reclama / porque o temporal / destruiu teu barracão. / Não reclama, / güenta a mão, João. (…) Não reclama,/ pois a chuva só levou a tua cama”). Já em “Conselho de mulher”, os alvos são o discurso patronal e desenvolvimentista (“Progréssio, progréssio / Eu sempre escuitei fala / Que o progréssio vem do trabaio / Então amanhã cedo nois vai trabaia”). E, em “Luz da Light” a ironia se volta contra os apagões na periferia e nos morros.
Uma das carac­terís­ticas mais marcantes de Adoniran é o uso da fala das ruas, que revestida com sarcasmo e ironia, inverte valores e desmonta a “seriedade” do discurso dominante, inclusive do ponto de vista gramatical. Adoniran levava para suas músicas a rica fala que brotou do encontro de negros e imigrantes. Como ele próprio dizia: “O que eu escrevo está lá direitinho no Bexiga. Lá é engraçado… o crioulo e o italiano falam igualzinho”.

Esse passeio pelas bordas da sociedade contaminou até mesmo seu universo “romântico”. “Iracema” (1956), por exemplo, vítima da urbanização da cidade, parte para “juntinho de nosso sinhô”, depois de ser atropelada na Av. São João, deixando para trás apenas suas meias e sapatos. Fato, diga-se de passagem, inspirado numa notícia de jornal.

Contudo, foi em “Tiro ao Álvaro” (1960) que Adoniran promoveu um dos encontros mais belos entre as coisas do coração e as conturbações da realidade. Afinal, foram poucos o que conseguiram traduzir os descaminhos do amor de forma, ao mesmo tempo, tão “mundana” e poética como nos seus versos: “Teu olhar mata mais do que bala de carabina / Que veneno e striquinina / que peixeira de baiano / Teu olhar mata mais do que atropelamento de automóvel / Mata mais que bala de revórver”.

Viveu e morreu entre os seus
Uma faceta pouco conhecida de Adoniran foram suas passagens pela TV e pelo cinema, onde foi para lá de eclético. Fez chanchadas, como “Pif-Paf” (1945); teve uma participação de destaque em “O cangaceiro” (1953), um dos maiores sucessos do cinema brasileiro. Na televisão, participou de novelas como “Mulheres de Areia” e “Ovelha Negra”.

Esse “ecletismo” também se manifestou em sua obra musical, da qual consta, por exemplo, o belíssimo samba-canção “Bom dia, tristeza”, em parceria com Vinícius de Morais e gravado por Aracy de Almeida.

Apesar de ter conhecido o sucesso pouco antes de sua morte, Adoniran nunca foi totalmente digerido pelos meios de comunicação, tendo gravado só três discos (todos entre 1973 e 80), além dos “compactos” da década de 50.
No final de sua vida, um tanto amargurado por ver sua música saindo das periferias para ser resgatada apenas nos círculos “intelectuais”, Adoniran ainda enfrentou uma situação financeira bastante delicada.

Conhecido por gastar seus rendimentos com a boemia e com uma “generosidade” desgovernada com seus amigos de boteco, Adoniran morreu empobrecido. Mas não só devido a seus “exageros”. Pelo contrário. Assim como muitos daqueles que o inspiraram, Adoniran viveu, a partir de 1972, dependendo de uma mísera pensão de aposentado e dos poucas e mal pagas apresentações que fazia em circos e pequenos shows.

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