O professor Octavio Ianni faleceu na capital paulista, na madrugada de 04 de abril, aos 77 anos. Nascido na cidade de Itu (SP), cursou Sociologia na Universidade de São Paulo, onde foi docente entre final de 1950 até 1968, quando compulsoriamente foi aposentado pela ditadura militar. Participou do grupo Seminário d’O capital, constituído por jovens estudantes e professores uspianos que iniciaram discussões sobre o método de análise marxista na academia. Como assistente de Florestan Fernandes desenvolveu pesquisas sobre a escravidão no Brasil e sua relação com o capitalismo no país, de onde elaborou o livro Metamorfoses do escravo. Ainda antes do golpe militar de 1964, participou do Centro de Estudos da Sociologia da Indústria e do Trabalho (CESIT), fundado por Florestan, no qual realizou investigações científicas sobre Estado e industrialização. Em 1969, ao lado de outros acadêmicos, constitui o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). No final da década de 1970 vincula-se à PUC-SP e, posteriormente, à Universidade de Campinas. Estava há uma semana internado no Hospital Alberto Einstein por causa do câncer.

Em mais de quarenta anos dedicados à pesquisa e à docência, Ianni formou diversas gerações de pesquisadores e docentes. O rigor teórico esteve aliado à simplicidade intelectual; a perspectiva socialista ligou-se ao compromisso ideológico com o proletariado. Assim pudemos conhecê-lo em debates com militantes operários, em congressos científicos e através de suas publicações. Em inúmeros trabalhos analisou a nossa formação social, o escravismo e as relações raciais, o Estado brasileiro e o desenvolvimento capitalista, a configuração das classes sociais, o populismo e a dependência estrutural. Também trouxe contribuições importantes para a constituição de uma sociologia da cultura, através de estudos sobre o pensamento social brasileiro, as relações entre imperialismo e cultura, como também aspectos relacionados à subjetividade humana. Na década de 1990 passa a enfocar o tema da globalização capitalista.

Eixos principais de seu pensamento

Com inúmeras publicações de livros e artigos, ao nosso entender o fio condutor de suas pesquisas apresentam-se a partir da análise crítica que realiza ao populismo e à dependência estrutural ao imperialismo. Essa será uma característica distinta inaugurada pela “sociologia uspiana”, baseada em investigação rigorosa e norteada por método de análise dialético. No entanto, no transcorrer da década de 1960 e posteriormente, Ianni se diferenciará de seus antigos colegas de cátedra como Fernando Henrique e Francisco Weffort, especialmente sobre a análise do caráter de classe do Estado brasileiro a partir de 1964 e as determinações estruturais que condicionariam os caminhos do capitalismo no país.

Em O colapso do populismo no Brasil (1967), o sociólogo sintetiza um eixo de preocupações que se desenvolverá nas décadas seguintes, através de suas reflexões cada vez mais apuradas. Naquele livro procura explicar as determinações presentes no golpe civil-militar de 1964. Nesse período vencera um projeto político determinado pela dependência estrutural, que nada mais era do que o aprofundamento da submissão ao imperialismo. Em sua avaliação, as condições políticas pré-64 haviam aberto possibilidades para uma revolução socialista ou a saída política em torno de um projeto nacional. No entanto, os setores majoritários da burguesia nacional e estrangeira, com o apoio ostensivo do imperialismo norte-americano, inauguram uma ditadura burguesa aberta com tendência fascista. O populismo, forma política e ideológica provinda da burguesia e seus ideólogos, na prática constituía um movimento político de harmonização entre trabalho e capital. Desta maneira, tornou-se a base ideológica que possibilitou o desarme político e organizativo da classe operária e da esquerda política.

De acordo com o autor, a referida obra estaria superada em decorrência do processo de globalização que integrou o Estado brasileiro ao circuito internacional do capital. Ao nosso entender, ela referencia uma importante crítica ao frentepopulismo desenvolvido através do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e setores políticos nacionalistas. Ou seja, expressou uma trilha acadêmica e na esquerda política contrária ao aliancismo de classe do PCB e suas variantes.

Em A ditadura do grande capital (1981), Ianni apresenta uma radiografia dos resultados da política econômica da ditadura, evidenciando sua centralização no planejamento econômico, jurídico, político-repressivo e cultural que expressavam o caráter burguês do Estado brasileiro em sua forma ditatorial. Essa análise, como as anteriores, realiza-se sob o ponto de vista da classe operária, submetida a um processo de espoliação e expropriação da “mais-valia extraordinária”, como definia, através das políticas salariais e repressivas, que haviam possibilitado o “milagre” econômico brasileiro. E retoma a crítica aos acontecimentos de 1964:

Diante de uma conjuntura talvez pré-revolucionária, em desenvolvimento nos anos 1961-1964, na qual estavam amadurecendo as possibilidades de um amplo avanço popular no cenário político do país, a grande burguesia organizou o golpe de Estado. Esse golpe foi posto em marcha também com a colaboração (por omissões ou mesmo ativa) da “burguesia nacionalista”, que era aliada do Governo Goulart e participava da máquina populista. A deposição desse Governo realizou-se sem obstáculos maiores para as forças reacionárias e fascistas que se mobilizaram para evitar o ascenso popular no Brasil (Ianni, 1981, p.208).

Nesse livro manteve a mesma perspectiva crítica ao populismo e ao aliancismo de classe, visto que esse movimento político visava orientar ou manipular a força política dos trabalhadores, com “o objetivo de afastar os operários dos movimentos de esquerda”. Assim, a ideologia populista, que podemos certamente defini-la como frentepopulista, falava em “direitos dos trabalhadores, humanização do trabalho, paz social, harmonia entre o capital e o trabalho”, mas na realidade impedia o desenvolvimento de uma visão classista e revolucionária.

As críticas ao governo Lula

Nos primeiros meses após a instalação do Governo Lula, o sociólogo caracteriza esse governo como neoliberal. Em junho de 2003, quando já tramitava no Congresso Nacional o projeto de Reforma da Previdência, ele afirmava: “A virada da opinião pública em relação a Lula e ao governo já está em marcha (…). E vai se agravar. Já ficou evidente para a opinião pública, a despeito da mídia, que esse governo é totalmente prisioneiro do modelo neoliberal” (FSP, 11/06/2003).

Para ele, haveria na história política recente do país uma sucessão de frustrações na maioria da população, desde o governo da “nova” República. No entanto, a maior frustração estaria ocorrendo com o Governo Lula e seu partido (PT), visto que nasceram da luta contra a ditadura militar e como reivindicação das classes subalternas. Na medida em que se desenvolveu o processo político, o Partido dos Trabalhadores fora se ajustando às instituições e se acomodando. Desta maneira, “o comprometimento crescente do governo com o neoliberalismo significa o abandono de qualquer compromisso social, salvo na retórica” (entrevista Jornal da Unicamp, edição 203, 14-20 de julho de 2003).

Em sua avaliação, Ianni não considerava existir diferença de fundo entre o projeto político materializado por Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Lula. É a consideração que realiza em entrevista a periódico pernambucano:

Alguns com mais malícia, com mais habilidade, outros com menos. Mas, na verdade, os três entraram no palco mundial de acordo com as diretrizes do Consenso de Washington, ou seja, o neoliberalismo. (…). Eles não são dirigentes. Eles são funcionários, burocratas. (O popular, 10/03/2004).

Uma sociologia comprometida com as causas socialistas

O professor Octavio Ianni compõe uma importante tradição da sociologia crítica, comprometida com as questões políticas e sociais. A última saudação a Ianni, assim como à obra de Florestan Fernandes, não significa um acordo incondicional com suas análises. Temos ainda muito o que verificar, especialmente sua análise sobre globalização. No entanto, o conjunto de sua obra devemos retê-la como possibilidade de entendimento dos diversos níveis de conexões e determinações entre a nossa formação social e o processo de mundialização do capital, ao lado das expressões singulares relacionadas à nossa realidade social, política e cultural. Por sua vez, também nos serve como uma referência para um caminho necessário de pesquisa no qual a relação com categorias marxistas como totalidade não se dobrem aos “cantos das sereias” da pós-modernidade. Por último, a obra e vida do professor Ianni possibilita às gerações atuais de cientistas sociais pensarem seu papel social e político enquanto pesquisadores, docentes e, principalmente, trabalhadores.

* Luiz Fernando da Silva é professor do Depto. de Ciências Humanas – Unesp Bauru. Mestre e doutor em Sociologia, Unesp-Araraquara. Militante do PSTU.

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