Saramago: uma obra que continua além do ponto final

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Yara Fernandes Souza, da redação

Alan (nome fictício) é um operário atualmente desempregado de 31 anos. Em fevereiro deste ano ele leu pela primeira vez um livro do escritor português José Saramago, “O homem duplicado”, emprestado da biblioteca do Senai. Desde esta primeira leitura, Alan se apaixonou pela escrita de Saramago. Leu em poucos meses mais três livros: “O evangelho segundo Jesus Cristo”, “Caim” e “Ensaio sobre a cegueira”. Alan conta que “no começo foi um impacto a forma como ele escreve, com um texto corrido, diálogos sem a separação de parágrafo e indicação de travessão. Mas depois, quando a gente se acostuma, fica interessante. Passei a gostar daquela forma, tanto que às vezes me dá vontade de usar certas palavras e expressões que ele usa e que não usamos normalmente”.

Alan começou a conhecer a obra Saramago poucos meses antes da morte do escritor, ocorrida neste 18 de junho. Este exemplo mostra a capacidade da literatura de Saramago de tocar as pessoas.

Operário, tradutor, funcionário público, escritor
José Saramago morreu de falência múltipla dos órgãos aos 87 anos de idade, ao lado de sua mulher Pilar Del Rio, em sua casa na ilha de Lanzarote, nas Ilhas Canárias. O escritor já estava doente há algum tempo e seu estado se agravou nas últimas semanas. Quando falou sobre a morte, ou autor definiu: “O corpo também é um sistema organizado, e a morte não é mais do que o efeito de uma desorganização”.

Nascido em uma família pobre, ele não teve acesso a uma universidade, apesar do gosto pelos estudos. Assim como Alan, Saramago cursou um ensino técnico e tornou-se operário. Também tinha como fonte de suas leituras e aprendizados as visitas frequentes à Biblioteca Municipal Central de Lisboa.

Saramago publicou seu primeiro romance aos 25 anos, “Terra do Pecado”. Foi funcionário público e, em 1955, para aumentar os rendimentos, começou a fazer traduções de obras de grandes autores como Hegel, Tolstói e Baudelaire, entre outros. Em 1975, ele vai trabalhar no Diário de Notícias.

Hormônio comunista
Viveu a Revolução dos Cravos e levantou até o final de sua vida a bandeira comunista como uma necessidade para a solução dos problemas do mundo. Dizia que “assim como tenho no corpo um hormônio que me faz crescer a barba, há outro que me obriga a ser comunista”.

Uma de suas atitudes políticas mais criticadas foi a defesa dos palestinos contra a ocupação israelense. Recentemente também realizou uma campanha de ajuda aos haitianos, vítimas do terremoto ocorrido no país.

As duras polêmicas com a Igreja marcaram a vida e a obra do escritor ateu. Em livros como “O evangelho segundo Jesus Cristo” e “Caim”, Saramago ousa reescrever a Bíblia em tom de farsa e ironia, arreganhando as frestas das entrelinhas ambíguas dos textos bíblicos, introduzindo humor e conflito na relação entre Criador e criatura.

Saramaguiana
Saramago escreveu diversas obras de prosa e poesia, porém foi em 1980, com a publicação de “Levantados do chão”, que a literatura do escritor ganha suas características mais marcantes. O livro teve como tema a vida da população pobre do Alentejo.

A forma desenvolvida por Saramago, com escassez de pontos finais, longos parágrafos, ausência de travessões, o que a princípio pode causar estranhamento no leitor, é também o que confere ao texto uma fluidez única. Já no livro “O ano de 1993”, por sua vez, sua prosa se contorna em pequenos parágrafos ritmados que quase se tornam poesia. Além disso, marca a literatura saramaguiana a beleza inusitada das metáforas que comandam por livros inteiros a reflexão sobre temas filosóficos e sociais.

Devido a este caráter ímpar de seu texto, Saramago é tido por muitos críticos como um dos principais nomes da literatura de língua portuguesa, figurando lado a lado com nomes como Fernando Pessoa e Guimarães Rosa. Este reconhecimento lhe valeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1998.

A morte
Na conquista de novos e inesperados leitores, como Alan, a obra de Saramago vive. Assim como Alan, muitos ainda poderão conhecer e se apaixonar pela literatura de Saramago.

A morte, que agora chega aos olhos do escritor, foi tema de algumas de suas obras. Em “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, Saramago homenageia Fernando Pessoa, mostrando como teria sido a morte deste seu heterônimo. Já o livro “Intermitências da Morte” se inicia com a frase “No dia seguinte ninguém morreu”. Nele, Saramago expõe as reações da Igreja, do governo, da imprensa, das famílias e instituições diante do fenômeno da ausência da morte.

Falemos, portanto, da ausência da morte de Saramago. Saramago não gostava de pontos finais, apenas salpicava vírgulas a gosto. Sua morte, desta forma, não pontua um final de sua existência, perpetua sua obra em eternos parágrafos intermitentes.