Lula quer pôr em prática projeto de transposição do rio São FranciscoO Nordeste está prestes a assistir à versão lulista da “velha integração do rio São Francisco às bacias do Nordeste setentrional”. A idéia não é nova. Com seu império em decadência, o imperador Pedro II já havia incluído entre suas promessas “de governo” a transposição das águas do São Francisco para acabar com a seca no Nordeste e resolver a fome do sertanejo. Portanto, desde o século XIX, alimenta-se as ilusões dos povos da caatinga.

Esse enorme rio permanente, com 2.600 km cortando vários estados entre o serrado e a caatinga, alimenta o imaginário popular e a idéia de que suas águas podem salvar todo o Nordeste. Alimentando esses sonhos do sertanejo, todos os governos usaram a transposição como promessa eleitoral. No final da ditadura militar, o ministro do interior, Mário Andreazza, achou que poderia ser presidente da República e teve como eixo programático a transposição das águas do São Francisco. FHC, em seu segundo mandato, e José Serra, em sua campanha eleitoral, também incluíram esse tema. Agora é a vez de Lula.

Pobre Velho Chico
Com as intervenções da engenharia no São Francisco, sendo a primeira a usina de Paulo Afonso, em 1954, os problemas técnicos deixaram de ser obstáculos intransponíveis. Sabemos que a transposição, do ponto de vista técnico, está resolvida: obras envolvendo recalques, canais, aquedutos, túneis, barramento e reservatórios intermediários podem levar a água de um local a qualquer outro, logo, as águas do rio São Francisco podem ser integradas para as bacias de outros rios do Nordeste, declarou Manuel Correia de Andrade, técnico da Fundação Joaquim Nabuco, responsável por estudar o projeto.

é preciso, no entanto, desvendar alguns mitos: o primeiro é que existe excesso de água no São Francisco. A verdade é que o Velho Chico está muito degradado e suas águas estão sendo usadas para o consumo humano e animal em centenas de cidades; na produção de alimento com irrigação; na pesca; como força motriz na geração de energia elétrica; na navegação; e no lazer, sendo poluído pelos esgotos domésticos e industriais, desmatamento e mineradoras. É, portanto, um dos rios mais aproveitados e agredidos do mundo.

Existe uma vazão de 2.800 metros cúbicos por segundo (m3/s), controlada pelas grandes barragens do São Francisco praticamente para todo um ano. Se forem implementados todos os projetos de irrigação já existentes, absorveria quase toda a água do rio. Qual a utilização prioritária do São Francisco? Mesmo que se concorde que deva ter um uso múltiplo, a geração de energia é a fundamental. O planejamento hidrelétrico da CHESF tem como base uma vazão mínima de 2.060 m3/s. Só esses dois usos já mostram que não existe excesso de água.

Para beneficiar o agronegócio
É preciso discutir os impactos ambientais e suas implicações econômicas, sociais e políticas. O representante da Associação Pernambucana de Defesa da Natureza (ASPAN), Alexandre Araújo, faz uma pergunta ao governo Lula: “Por que Lula não aplica os R$ 4,5 bilhões da transposição em obras de instalação de cisternas, poços artesianos, barragens subterrâneas e perenização dos rios e dezenas de outras obras que alcancem diretamente os milhões de nordestinos?” Diante do silêncio do PT, que sempre foi contra a transposição sem a reforma agrária, Alexandre mesmo responde: “Essa transposição é para favorecer as grandes empreiteiras e o agronegócio; ela não vai chegar ao povo”.

Mais de 200 entidades ambientais divulgaram um manifesto de repúdio a essa obra bilionária, de enorme impacto ambiental, cujo relatório foi aprovado às pressas pelo Ibama sem a menor discussão. Todas as entidades alegam os seguintes perigos: aumento da salinização e desertificação do solo do semi-árido (caatinga) e privatização da água, pois as grandes empresas de uva, manga, criação de camarão e outros produtos de exportação terão acesso à água e os pequenos produtores serão afastados dos pontos de melhor utilização da água. Sem falar que essa será uma água muito cara, já que os gastos vão ser transferidos para a tarifa. Muitos pequenos produtores já foram expulsos dos projetos de irrigação do vale do São Francisco porque não puderam pagar as tarifas de água.

Outro grave problema que já está ocorrendo é a especulação das terras nas áreas de provável irrigação. Os grandes latifundiários esperam valorizar em 400% suas terras hoje improdutivas e amanhã também improdutivas, mas com muita água e abertas ao agronegócio.

Lula espera “irrigar” milhões de votos dos sertanejos para 2006 e garantir mais um mandato para continuar a sua política pró-imperialista. Uma política agrícola que garanta o acesso à terra e à água no Nordeste e no Brasil não pode ser sustentada por um governo dirigido pelo FMI e pelas multinacionais. É preciso fazer uma reforma agrária que exproprie os latifúndios e o agronegócio para garantir terra, água e comida para os milhões de camponeses, povos indígenas e trabalhadores da cidade e do campo.

Entenda o projeto de transposição

A proposta consiste no transporte de águas do rio São Francisco para as regiões necessitadas, aproveitando o potencial de oferta hídrica supostamente disponível no rio (o Nordeste possui apenas 3% de toda a água doce existente no país, 2/3 dos quais estão na bacia do São Francisco). Prevê a retirada de 127 m3/s de água do rio, desde a cidade de Cabrobó (PE), eixo norte (de onde seriam bombeados até 99 m3/s), e do lago de Itaparica (BA), eixo leste (de onde sairiam os 28 m3/s restantes).

No Ceará, o rio Jaguaribe e as bacias metropolitanas de Fortaleza seriam interligadas pelo Canal do Trabalhador. No Rio Grande do Norte, os rios beneficiados seriam o Apodi e o Piranhas-Açu. Na Paraíba, as águas do Velho Chico alimentariam as vazões dos rios Piranhas e Paraíba. Em Pernambuco, os rios Brígida e Moxotó seriam contemplados. Para as águas alcançarem as vertentes desses estados, elas seriam elevadas a 164 metros de altura, no eixo norte, e 304 metros no eixo leste. Passariam por uma rede de túneis e aquedutos e percorreriam 2 mil quilômetros de rios e canais a céu aberto, abastecendo cerca de seis milhões de pessoas e irrigando 300 mil hectares de terra a 500 km de distância das margens do rio.

Post author Joaquim Magalhães, de Recife
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