`SandraHá mais de um ano, o Haiti vive uma ocupação militar, com tropas da ONU nas ruas e com um governo fantoche. O governo Lula, que enviou tropas e chefia a missão da ONU, alega que a ocupação é necessária para a “estabilização“ do país. No entanto, enquanto o Brasil presta um serviço ao imperialismo norte-americano e permite que ele reforçe suas tropas no Iraque, cresce o repúdio e as denúncias contra os capacetes azuis da ONU. Leia os principais trechos da entrevista com a economista SANDRA QUINTELA, da campanha Jubileu Sul e integrante da Missão Internacional de Investigação e Solidariedade. De 3 a 9 de abril, o grupo percorreu o Haiti, com o Nobel da Paz Adolfo Perez Esquivel, a atriz Lucélia Santos e Nora Cortiñas, das Mães da Praça de Maio – Linha Fundadora

GOLPE À DIREITA
“O governo Aristide foi de muita violência, de muita perseguição aos movimentos, e com uma agenda neoliberal, de transformar o país em uma grande maquiladora.
Em dezembro de 2003, as organizações populares começam a preparar um plano para a saída de Aristide. Mas ele é retirado do país em um avião das forças armadas americanas, antes que as forças populares pudessem tirá-lo. É um golpe à direita. Ele foi ‘saído’ em função de uma crescente mobilização popular que estava tornando ingovernável o seu mandato.”

OCUPAÇÃO
“Para as organizações sociais, sindicais e de mulheres, a missão não é necessária. O país não está em guerra, eles se sentem invadidos e acham que é uma ocupação militar. Estas organizações dizem que o quadro de violência aumentou no país, desde a vinda das tropas. Se o objetivo é combater a violência, a missão não está conseguindo. E criticam que a Minustah (missão da ONU) não conseguiu apresentar um balanço real de suas atividades, de acordo com os objetivos traçados para a missão. Há um clamor geral das entidades sociais para a retirada das tropas.”

“Há um governo ilegítimo. Já tem um ano e meio de mandato. É um governo indicado, não é eleito. O presidente Boniface Alexander é um desconhecedor da realidade haitiana. Ele dizia que não há violações dos direitos humanos enquanto na prisão central, dos 1.100 presos, só sete são sentenciados. O restante está lá apenas detido para averiguação, há meses.”

DENÚNCIAS CONTRA AS TROPAS
“Há muitos casos, mas há muito medo de fazer as denúncias. Medo da represália dos soldados. Nós apresentamos a denúncia ao comandante Heleno, e ele disse que a política é de tolerância zero com os soldados. No entanto, no varejo, isso tem acontecido. Esse é um problema seriíssimo. As entidades de mulheres têm registrado os casos e os apresenta ao Ministério da Justiça. Não levam as denúncias à ONU, pois não a reconhecem como interlocutora.”

DESEMPREGO
“A maior parte da população, 67%, está nas áreas rurais. O país vivia da cana-de-açúcar, do arroz e do café e essas culturas estão acabadas. Agora, o Haiti importa arroz dos EUA, uma humilhação. O Haiti é marcado pela economia informal, o comércio é praticamente na rua. Você compra azeite, óleo, tudo. Tem mercados, mas o povão mesmo compra na rua. Então, é uma economia completamente desmantelada. Uma em cada 50 pessoas tem emprego.”

BANDOS ARMADOS
“O lumpesinato começa a achar que, se o Aristide voltasse, iria ser melhor. É o mito da ausência. Os mais miseráveis voltam a tratar Aristide como salvador da pátria e isso cria situações ainda mais complexas e uma situação violenta. Há grupos armados, ligados ao partido de Aristide. Foram armados pelo próprio Aristide, antes de sair. Eles criam um clima de terror no país, pra forçar sua volta.”

UM POVO EM LUTA
“Em 1804, os escravos tinham uma vida média de três a cinco anos. Este povo, submetido a isso, conquistou a independência e continua lutando por isso, porque esta independência de fato nunca se realizou. É uma história marcada por golpes e por muita violência. Mas esse povo não perdeu a dignidade, nem a capacidade de luta e de resistência.

Trouxemos esta imagem muito forte, de um povo em luta. O nível de consciência da juventude é uma coisa impressionante. Eles têm uma clareza histórica de seu papel no mundo e de porque estão sofrendo esta intervenção. O nível de politização é muito grande. A imagem vendida pela imprensa é de um povo que se mata, de um país onde só tem lixo e miséria. É claro que tem muito lixo e miséria, mas trouxemos uma imagem do Haiti que é outra. De um povo que está lutando pela independência após 200 anos.”

ESQUERDA HAITIANA
“Nós nos reunimos com cerca de 60 organizações sociais, de direitos humanos, de bairro, de mulheres e sindicatos. O Batalha Operária é uma organização sindical muito importante. Atuou de forma clandestina na zona franca, onde há várias maquiladoras estrangeiras e é proibida a organização sindical. Os trabalhadores são trancafiados nas fábricas, ganham cerca de R$ 5 por dia e trabalham de 12 a 14 horas. As fábricas, como a da Levi`s, vem da República Dominicana, de El Salvador e da Nicarágua, atrás de condições de trabalho ainda piores.”

“Fizemos duas palestras que terminaram com a Internacional, cantada em criollo. Há uma cultura da canção, da luta revolucionária e da mística da esquerda. Mas ela ainda está muito fragmentada. Se não houver uma unidade, mesmo que tática, pra enfrentar a situação atual, o Haiti será tragado pelas forças internacionais do capital.”

PLANOS DO IMPERIALISMO
“Basicamente, são dois: um editorial do Washington Post atacava a Minustah, porque não está sendo agressiva o suficiente. E dizia que teriam que desembarcar os marines. Todo o Caribe está cercado por bases norte-americanas e há interesse no controle geopolítico na região. O Haiti, por estar muito próximo do México, dos EUA e de Cuba, joga um papel importante.

Por outro lado, a proposta do capital é transformar o Haiti em uma grande zona franca, uma área de maquiladoras. É uma nova forma de escravidão.

Um outro ponto importante é o da dívida. Países, como os EUA e o Canadá, têm passado recursos ao Haiti, mas eles têm ido para pagar a dívida com organismos internacionais. Em fevereiro de 2005, o país desembolsou 50 milhões de dólares para pagar a dívida com o FMI e com o Banco Mundial. É um crime. Os EUA são os principais acionistas desses organismos. Como é que eles dão dinheiro pra pagar a dívida a eles mesmos? O Haiti não deve pagar mais um centavo.”

SOLIDARIEDADE
“Temos de abraçar a luta do povo haitiano como se fosse nossa própria luta. Ouvimos os trabalhadores dizendo o seguinte: que nós não estamos ali em uma missão de solidariedade, estamos ali na mesma luta, a luta contra o capital e o império. Ali está em jogo o direito de a gente determinar nosso próprio destino. É uma síntese do que está acontecendo em nossos países. Temos de fazer de tudo para que estas tropas saiam do Haiti. Não só as brasileiras, mas qualquer presença militar.”

Post author Por José Eduardo Braunschweiger, do Rio de Janeiro (RJ)
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