Sammi, durante o encontro da Conlutas, no Fórum Social Mundial
José Eduardo Braunschweiger

Durante o Fórum Social Mundial, entrevistamos Sammi Alaa, membro da Aliança Patriótica, e que, desde o exílio, participa da Resistência Iraquiana à ocupação imperialista no país.

Apesar de não concordarmos com algumas das posições expressas por Sammi, estamos publicando sua entrevista na íntegra, não só por considerarmos importantes que os leitores brasileiros conheçam suas opiniões, mas também por compartilharmos com ele de algo fundamental, que, infelizmente, não é a posição majoritária dentro do movimento anti-guerra: a necessidade de dar apoio incondicional à Resistência Iraquiana, inclusive em todas as ações que possam a ajudar a derrotar militar e politicamente os exércitos invasores e seus colaboradores.

Neste momento em que estamos conversando, hoje é 30 de janeiro, estão sendo publicados os resultados das eleições no Iraque. Na internet, estão falando na morte de pelo menos 40 pessoas durante o processo e os números de votantes ainda não foi divulgado. Contudo, independentemente do que tenha acontecido, qual é sua análise sobre as eleições e o que você pensa que irá acontecer?
Sammi Alaa –
Nós, da Aliança Patriótica do Iraque, consideramos a guerra, a agressão e a ocupação como processos ilegítimos. São atos da guerra imperialista contra o mundo. Nós não reconhecemos nenhum processo político que seja resultado da ocupação de nosso país. Isto implica todas as instituições que foram formadas ou estabelecidas pelas forças de ocupação, que são ilegítimas e ilegais, de acordo até mesmo com as leis internacionais e de acordo com a nossa estratégia de resistência no Iraque. O propósito desta eleição é político; trata-se de estabelecer um governo títere no Iraque para legalizar e legitimar a presença das tropas imperialistas.

Você é parte do movimento de Resistência, então, fale-nos um pouco sobre sua organização, a Aliança Patriótica, como ela funciona etc.
Sammi –
É uma honra para nós participar da Frente de Resistência do Iraque. Mas nós somos uma Frente de Resistência política, nós não somos representantes da Resistência Iraquiana. Com isso eu quero dizer que, até o momento, nós, infelizmente, não conseguimos estabelecer contatos para sermos representantes formais da Resistência Iraquiana. A Aliança Patriótica tem uma posição muito clara, desde o início: nós não reconhecemos nem a eleição nem qualquer processo político resultante da ocupação e nós conclamamos todas as forças políticas para se unificar e criar uma Frente de Resistência Iraquiana que possa cumprir a tarefa de construir o trabalho político necessário contra a ocupação. Infelizmente, devido às circunstâncias da ocupação, até o momento nós tivemos dificuldades para estabelecer as conexões necessárias para construir tal Frente.

Você mencionou anteriormente que a internet fala na morte de mais de 40 iraquianos durante a eleição. A Resistência Iraquiana, já há um mês, publicou um documento alertando todo o povo iraquiano para ficar distante da eleição, centralmente porque os locais de votação seriam alvos para a Resistência. E nós sabemos que a população iraquiana está ouvindo esse chamado, pois está cooperando com a Resistência e irá seguir essa orientação. É lamentável que as tropas de ocupação estejam forçando a população a participar das eleições.

Como você se tornou parte da Aliança Patriótica? E também eu gostaria você falasse um pouco sobre sua história pessoal, como um iraquiano que agora vive no exílio e é parte da Resistência.
Sammi –
Eu venho de uma família de comunistas. Meus pais eram muito ativos no movimento comunista e eles foram forçados a sair do Iraque no final dos anos 1970. Durante os anos 1980, vivemos no exílio, depois meus pais voltaram para o Iraque e, posteriormente, foram para a Dinamarca, como refugiados. Eu me juntei à Aliança Patriótica em fevereiro 2003, num congresso em Paris. Eu vi naquela conferência que era muito necessário que todo comunista patriótico fizesse uma declaração clara de que o povo iraquiano no exílio estava do lado de seu país contra a agressão imperialista. A Aliança Patriótica é uma formação de grupos políticos. Há três grupos fundamentais: uma fração do Partido Baath, que o abandonou em 1971; o movimento patriótico comunista e grupos pan-árabes de diferentes origens (socialistas, marxistas etc.); nós temos também grupos nacionalistas, como turcos e curdos, e outras minorias étnicas. Temos também pequenos, muito pequenos, grupos religiosos na nossa Aliança. O principal perfil de nossa Aliança é o antiimperialismo. Nós não temos o que possa se chamar de uma ideologia comum porque naquele momento era muito importante para nós unificar todos os grupos com posições políticas diferentes para apoiar nosso país contra a agressão.

A palavra “patriótica” em nossa cultura política pode causar alguma confusão. Qual é o conteúdo desse termo em sua língua?
Sammi –
Nós usamos esse termo porque a maioria de nós vive na Europa. E, na Europa, depois do colapso da URSS houve uma enorme onda de nacionalismo que está muito vinculada às ideologias racistas e chauvinistas. Então, nós queríamos nos distinguir desses grupos, porque o nacionalismo na Europa está conectado com essas idéias. Outra razão para a escolha do termo foi a intenção de nos distinguirmos dos grupos iraquianos que se autodenominam nacionalistas. O termo “patriótico”, no Iraque, significa as pessoas ou grupos que estão contra a intervenção estrangeira.

Voltando à Resistência. Muita gente já disse que Iraque é o Vietnã do Bush e em muitas partes do mundo, o movimento antiguerra levanta a palavra-de-ordem “paz” como a maior reivindicação para o Iraque. O Iraque pode ser o Vietnã de Bush e qual é a sua posição sobre a exigência de “paz”?
Sammi –
Depois de dois anos, nós temos uma conclusão clara. O imperialismo norte-americano foi derrotado no Iraque, particularmente desde o ano passado, durante a primeira Batalha de Falujah. Naquela batalha a resistência iraquiana teve êxito ao derrotar militarmente o imperialismo. Foi a primeira derrota militar imperialista desde a guerra do Vietnã. Teve um general que, em maio, foi entrevistado por um grupo de jornalistas em seu apartamento em Nova Iorque sobre a situação no Iraque. Ele disse, “Todo dia, depois de Falujah, em abril, toda vez que eu durmo eu sonho com a letra ‘V’”. Os jornalistas disseram: “Está tudo bem, então, ‘V’ é a letra da vitória”. E ele respondeu: “Não, ‘V’ é Vietnã”.

Naquela batalha, a Resistência iraquiana forçou as tropas imperialistas a irem para a mesa de negociação, não incondicionalmente, mas sob as condições da Resistência iraquiana. A Resistência conseguiu capturar 50 soldados e oficiais e eles foram obrigados a concordar sobre dois pontos: libertar 250 membros da Resistência que estavam sob a custódia norte-americana e concordar em retirar todas as forças de ocupação, não somente de Falujah, mas também dos vilarejos que ficam nos arredores da cidade, sem nenhuma condição. E os norte-americanos tiveram de aceitar isso e a população de Falujah estabeleceu polícia e governo próprios. Ficou claro naquele momento que a recordação do Vietnã estava se tornando uma realidade para Bush. E foi por essa razão que ele hesitou muito em realizar uma revanche antes das eleições americanas em novembro, porque ele não estava certo do que resultaria dessa tentativa. Conversando com um companheiro iraquiano que é de Falujah, hoje, no FSM, ele me disse que até os dias de hoje 40% da cidade vive sob uma batalha entre a Resistência iraquiana e os norte-americanos.

Quando nós falamos de paz, nós dizemos: “É óbvio, nós precisamos de paz, ninguém está feliz com a guerra, ninguém está feliz com os massacres”. Mas veja, nós aprendemos através da história que nenhuma força de ocupação jamais deixou o território ocupado voluntariamente. A experiência destes dois anos de resistência à ocupação no Iraque, com pessoas boicotando todas as instituições, e os norte-americanos insistindo em manter a ocupação nos mostra que é uma ilusão pensar que é possível liberar o país por meio de negociações, por meio de uma solução pacífica. O maior grupo xiita tentou fazer isso durante todo um ano, entre o início da ocupação, em março de 2003 e janeiro de 2004. Tentou essa forma de solução pacífica para livrar-se da ocupação, mas não conseguiu nada. E então se juntaram à Resistência à ocupação. Há uma confusão dentro do movimento pacifista contra a guerra. Tem pessoas que não conseguem fazer uma distinção entre uma guerra de libertação, uma luta por libertação, e uma forma de luta pacífica. A luta por libertação precisa de resistência armada.

Antes da próxima pergunta, gostaria de esclarecer algo: aqui no Brasil, nós do PSTU somos um dos poucos que defende que o apoio à Resistência iraquiana deve ser incondicional e, também, movida por meio das armas. Defendemos que o povo iraquiano tem o direito de derrotar o imperialismo, que a única forma de conseguir a “paz” é por meio da expulsão dos EUA. E foi isso que nós defendemos, hoje, aqui no FSM, em uma assembléia do movimento antiguerra, em que foram votadas várias resoluções. Uma delas falando sobre uma jornada de lutas em nível mundial contra a guerra, nos dias 19 e 20 de março. O que você teria a dizer para as massas que irão para as ruas nesses dias? Quais são as tarefas para esse movimento?
Sammi –
Veja, eu estava esperando por essa pergunta. Nós estamos muitos felizes com o movimento antiguerra no mundo e, particularmente, na América Latina, onde ele parece ser muito forte, quando comparado com o movimento Europeu. Nós acreditamos que a ocupação não chegará a um fim por si própria, é necessária uma ação ativa para que nos livramos dos ocupantes. Com todo respeito ao movimento antiguerra, eu tenho de dizer que sem a Resistência iraquiana o movimento antiguerra não teria essa vida e essa energia que nós estamos vendo. Não podemos nos esquecer disso, principalmente, se compararmos com a agressão e a ocupação imperialistas no Afeganistão. Devido ao fato de que a Resistência afegã não era tão intensa e sofisticada quanto a do Iraque, a ocupação foi quase que totalmente esquecida pelo movimento antiguerra. Eu acho que o movimento antiguerra deveria, agora, colocar o apoio à Resistência iraquiana em sua pauta, porque é muito importante estabelecer um movimento antiimperialista e antiguerra que considere o apoio à Resistência iraquiana como uma plataforma para unificar todas as forças contra o imperialismo.

Em relação ao FSM, o evento oficial, nós da Aliança Patriótica viemos aqui, mas não estamos participando do FSM porque discordamos do slogan oficial adotado: “Não à guerra, não à violência”. Essa é uma palavra-de-ordem que não faz nenhum sentido. Não há conteúdo nesse slogan. Qual é o significado de “Não à guerra, não à violência”? Há uma ocupação, há uma resistência no Iraque. O que eles querem dizer com “violência”? Eles querem dizer que a Resistência iraquiana é responsável pela violência? Mesmo não tenhamos participado do FSM, nós tivemos muito êxito em organizar, com companheiros brasileiros, inclusive do seu partido, uma marcha muito boa, com a presença de pessoas de vários países. Foi muito importante para marcar nossas diferenças com a posição oficial do Fórum.

Nós do PSTU também viemos para o FSM com uma perspectiva semelhante à de vocês. Você deve saber que o principal slogan do Fórum é “Um outro mundo é possível” e nós dizemos que somente “Um outro mundo socialista é possível”. O que você pensa sobre isso?
Sammi –
Sim, eu concordo com vocês. Principalmente, quando vocês dão ênfase ao fato de que um outro mundo socialista é possível. É preciso especificar isso. É preciso dizer que nós temos outra alternativa. Sobre que “outro mundo” eles estão falando? Eu concordo com vocês quando vocês colocam uma perspectiva socialista como pauta política.

Nós, no PSTU, também temos uma análise de que a ofensiva sobre o Iraque é apenas uma das faces da política do imperialismo no mundo. Onde eles podem ocupar o país economicamente, como aqui na América Latina, por meio dos planos neoliberais e da Alca, eles o fazem; em outros países, eles optam por governos títeres, por meio de eleições. E, onde nenhuma destas soluções é possível, eles vão à guerra. Nós dizemos que tudo isso é parte de um processo de recolonização do mundo. Qual é a sua opinião sobre isso?
Sammi –
Eu concordo totalmente com vocês. Integralmente. Eles não precisam ocupar o Brasil porque eles têm o governo Lula que pode implementar as políticas do Banco Mundial e do FMI no Brasil, então eles não precisam de uma invasão direta, ou de uma ocupação, aqui. Mas em algumas partes do mundo, tornou-se difícil para o imperialismo controlar a situação. Apesar de todos os aspectos negativos do antigo regime iraquiano, o governo era muito patriótico, defendia a soberania iraquiana e evitou a agressão política e econômica ao Iraque. Assim, não havia forma alguma de o imperialismo norte-americano impor o seu poder imperial no Iraque. Ou seja, não havia outra forma para os EUA de usar o petróleo iraquiano para construir seu projeto de império mundial.

Agora, em tudo o mundo, todos, mesmo nos EUA, sabem que todas as justificativas dadas para a ocupação foram mentiras. Como você analisa o processo de construção do discurso sobre a guerra? Os porquês dessa história. Em outras palavras, por que, na sua opinião, os EUA tiveram de levar a cabo essa ocupação?
Sammi –
Nosso problema no Terceiro Mundo, incluindo a América Latina, a Ásia e a África, é que nós não temos uma forma de garantir nossa soberania, nem mesmo nossa segurança nacional. No passado, concordemos ou não com a linha política da ex-URSS, havia alguma contra-pressão que evitava a invasão do Iraque pelos norte-americanos. Mas, depois do colapso da URSS, o imperialismo norte-americano percebeu que havia uma ameaça aos seus interesses no mundo, que vinha especificamente do estabelecimento da União Européia, que se transformou num real desafio político e econômico para os EUA. Também o poder emergente da China tornou muito necessário para o desenvolvimento do imperialismo norte-americano avançar na sua política de guerra e de ocupação, para manter-se como a única potência imperialista do mundo. Daí a necessidade de usar o petróleo iraquiano como um instrumento político contra a União Européia e o poder emergente da China.

Como você e sua organização vêm o papel exercido por Saddam Hussein durante todo esse processo?
Sammi –
Veja, a verdadeira história do antigo governo iraquiano até o momento ainda não foi contada. Eu acho que há injustiças e um retrato injusto sobre o que era o governo iraquiano e seu presidente, Saddam Hussein. Eu não sou parte do partido Baath e estava na oposição a Saddam, mas o imperialismo, como parte de sua preparação para a agressão, teve uma política de demonização dele. Eles demonizam todos os oponentes às suas políticas. Eles demonizaram Fidel Castro, em Cuba, Mugabe, no Zimbábue, e, também, aqui na América Latina, Hugo Chávez, porque ele desafia os interesses imperialistas na Venezuela. Agora, no Iraque, as pessoas estão muito envolvidas ou preocupadas com a idéia de democracia, sem precisar que tipo de democracia é essa. É verdade que nós tivemos, nos anos 1980 e 1990, opressão política imposta pelo antigo governo iraquiano, mas nós também tivemos total, realmente total, justiça econômica e social no nosso país. Educação gratuita da pré-escola à universidade, direitos para os trabalhadores, serviço de saúde gratuito, pensões para os mais velhos e todos os iraquianos tinham o direito de ter um pedaço de terra para construir uma casa (também financiado pelo Estado). Havia vantagens e desvantagens, aspectos positivos e negativos, no antigo governo iraquiano.

Quando a guerra teve início, qual foi a posição de sua organização em relação a Saddam? Aqui no Brasil, nós do PSTU dizíamos que Saddam deveria armar a população para resistir à ocupação.
Sammi –
Essa é uma pergunta excelente, e eu agradeço por iso. Uma das lembranças positivas do ex-governo iraquiano é a de que eles armaram a população iraquiana antes da guerra. Esse é um fato não conhecido fora do país. Um mês antes da agressão, o governo abriu todos os arsenais militares para o povo iraquiano e distribuíram as armas para o povo. Eu tenho um amigo, que agora está numa universidade na Suécia, que documentou em vídeo a abertura dos arsenais em vários vilarejos do Iraque. Quando nós falamos sobre esse assunto, há a estimativa de que existam entre 45 e 50 milhões de armas nas mãos do povo iraquiano. As forças de ocupação norte-americanas não conseguiram achar uma única arma nos arsenais iraquianos.

Como as organizações de esquerda, o Partido Comunista, por exemplo, atuaram durante a ocupação e atuam no momento?
Sammi –
Nós temos um fenômeno histórico único no Iraque. É a primeira vez que um Partido Comunista coopera com o imperialismo. O que quero dizer é que o Partido Comunista Iraquiano é um dos cinco principais partidos políticos que cooperam com a ocupação norte-americano. Falando da esquerda iraquiana, ela é muito fragmentada, isolada das massas, do povo. E isso se deve a duas razões: primeiro, a opressão política do antigo governo e, ao mesmo tempo, e com a mesma intensidade, a situação de exílio. O Partido Comunista Iraquiano deixou o país e seu povo e, agora, os partidos de esquerda iraquianos têm muitas dificuldades de trabalhar, devido à ocupação. Para ser honesto com você, nós não falamos sobre o PC Iraquiano, há outros. Há grupos trotskistas, há o Partido Comunista (Comando Central), que começou uma resistência armada em 1967. Há um representante deles, no FSM, que é muito oportunista, não tem nenhuma posição firme sobre o imperialismo e sua posição sobre a Resistência iraquiana não é nada clara. O povo iraquiano secular é muito aberto ao socialismo, ao comunismo. Há um espaço muito grande para isso, mas, como disse antes, a situação é muito difícil para a esquerda, embora eu ache que ainda haja possibilidade de estabelecer um Partido Comunista no Iraque que possa ser construído pelo povo.

Quantas pessoas vivem no exílio?
Sammi –
Nós não sabemos o número exato, mas os norte-americanos apostam na participação dos exilados iraquianos participarem da eleição, devido ao boicote popular dentro do país ser muito grande. Eles disseram que havia cerca 4 milhões de exilados. Mas, desse total, somente 10% se registrou para a eleição. Nós estimamos que seja algo entre 2 e 3 milhões o número de iraquianos exilados.

A imprensa burguesa dá muita ênfase para a situação no Iraque como sendo uma disputa entre xiitas e sunitas, uma disputa religiosa. O que você pode dizer sobre isso?
Sammi –
Isso não funciona. Nós temos na sociedade iraquiana uma história de diversidade religiosa e étnica. Nossa história tem mais de 5 mil anos. Nós nunca tivemos um conflito mortal baseado em aspectos religiosos e étnicos. Nós temos, turcomanos, curdos, árabes e outros. Nós temos mulçumanos, cristãos, judeus e outras religiões e temos vivido juntos sem conflitos. Os EUA estão muito interessados, depois do fracasso do processo de ocupação do Iraque, em tentar impor uma guerra civil entre xiitas e sunitas, mas eles nunca tiveram êxito. Esse jogo está muito claro para o povo iraquiano.

Algo que afetou a percepção do mundo inteiro em relação à guerra foram as cenas de tortura nas cadeias. Para algumas pessoas foi uma surpresa, para muitos, como nós, é um exemplo de como o imperialismo vem trabalhado há décadas. Como você analisa a repercussão dessas imagens?
Sammi –
A divulgação de qualquer foto de tortura no Iraque não poderia ter acontecido sem a permissão do Pentágono e da administração norte-americana. A divulgação dessas fotos foi uma tentativa de mandar uma mensagem para o povo iraquiano: se vocês resistirem, isto é o que vai acontecer com vocês. Mas a divulgação das fotos não foi suficiente para barrar a Resistência. Pelo contrário. Elas aumentaram a resistência contra a ocupação.

Depois de anos de bloqueio, e agora com a ocupação, quais são as condições de vida da população iraquiana?
Sammi –
A situação é muito desumana. Há falta de água, a eletricidade pode ser cortada por dias e quando é reinstalada é por apenas algumas horas. A situação do trabalho também é péssima. A população sempre dependeu do trabalho estatal. Cerca de 70% ou 80% da população iraquiana trabalhava nos setores públicos. Não há segurança. Nenhuma instituição funciona. Por exemplo, o sistema legal não funciona, as pessoas resolvem seus problemas entre elas próprias. O desemprego atinge 70% das pessoas, não há trabalho. Brenner privatizou todo o Estado iraquiano. Educação e serviços de saúde, que antes eram gratuitos, agora têm de ser pagos.

A imprensa burguesa também adora usar os métodos utilizados pela Resistência iraquiana (os seqüestros etc.) para demonizá-la, como você disse. Mas essa mesma imprensa também diz que o número de pessoas envolvidas na Resistência é desconhecido. Em dezembro falaram em 200 mil pessoas atuando em grupos clandestinos. O que você pode dizer sobre isso?
Sammi –
Há uma estimativa de que cerca 40 ou 50 mil iraquianos estão diretamente envolvidos nesses grupos. Mas não é tudo. Quando a Resistência libera uma cidade como Mosul, por exemplo, ela precisa do apoio do conjunto da população. A Resistência é muito popular. A imprensa ocidental tenta demonizá-la. Até o momento, a Resistência capturou cerca de 1.020 estrangeiros e, destes, 1.002 foram liberados depois de serem checados; depois de se ter constatado que eles não tinham nada a ver com a ocupação ou que não tinham vínculos com o esquema político e militar da ocupação. A situação mudou cerca de sete meses atrás, quando as duas Simonas italianas foram seqüestradas. Ficou claro que a Resistência iraquiana não estava por trás daqueles seqüestros. Outra coisa: eu acho que foi a imprensa australiana que falou sobre a existência de 58 mil mercenários no Iraque, gente que não está diretamente conectada com as forças de ocupação, mas trabalha por meio de contratos com serviços telefônicos, de engenharia etc. Algumas dessas pessoas foram documentadas e filmadas em trabalhos anteriores, na América Latina (El Salvador e Argentina). Um deles foi ferido, e sua fotografia foi mostrada para Richard Stone, o antigo representante sul-africano na Corte de Haia, na Holanda, que ficou surpreso porque esse homem estava sendo procurado por seus crimes no período do apartheid na África do Sul. O Mossad israelense, a CIA, o MI-X britânico, a polícia secreta australiana estão trabalhando no Iraque, inventando crimes pelos quais a Resistência iraquiana é acusada.

Apesar de toda a tragédia causada pela guerra contra o Iraque, há um fato fantástico: ela detonou as maiores manifestações antiimperialistas desde a Guerra do Vietnã. Como um iraquiano, como você vê esse processo?
Sammi –
Em termos políticos eu estou muito feliz, porque, agora, o tema se tornou algo muito importante na agenda política de todo o mundo. Não só em termos filosóficos e ideológicos, mas também em nível popular. As pessoas começaram a discutir a importância do imperialismo e a necessidade de lutar contra ele. Eu acho que o que pode descrever o cenário político hoje em dia é a questão imperialista.

O que você acha que irá acontecer no Iraque a partir de hoje, o dia das eleições? O imperialismo tenta vender a idéia de que hoje é o “Dia Zero” e tudo será diferente a partir daí…
Sammi –
Este é um processo político que não começou com a eleição. Isso começou com o Conselho de Governo, que não funcionou; começou com a retirada da soberania do Iraque, que não funcionou; começou com o governo interino, que não funcionou e, agora, eles tentam esta farsa de eleição. Para nós, da Aliança Patriótica, para toda a Resistência iraquiana, o que há, hoje, é uma ocupação ilegal, ilegítima, baseada num governo títere e, amanhã, depois das eleições, continuará exatamente a mesma coisa. E a resistência continuará, será ainda mais forte e incisiva em suas ações. Nós não reconhecemos esta eleição, como também não reconhecemos nenhum processo político feito pelos poderes de ocupação, pela ONU, pela União Européia ou pela chamada Comunidade Internacional. Há única solução que reconheceremos: será a retirada incondicional das forças de ocupação do Iraque.

Uma pergunta final. Hoje você foi ao Encontro da Conlutas e saudou os trabalhadores e estudantes. Para nós do PSTU isso foi muito importante porque acreditamos que a única forma de sermos vitoriosos, inclusive nas nossas lutas sindicais, é internacionalizando o debate. Internacionalismo é algo fundamental para mudarmos o mundo. O que você pensa sobre isso?
Sammi –
Concordo plenamente. Como dissemos antes, há várias maneiras de se ocupar um país: pela via econômica, pela chamada globalização, ou pela via direta, como no Iraque. Na Conlutas, hoje, eu senti que quando as pessoas me saudaram elas estavam demonstrando que têm consciência de que nossa luta é a mesma, porque aqui vocês estão “ocupados”, indiretamente, pelo FMI, pelo Banco Mundial, pelas multinacionais. Eu acho que esse vínculo é muito importante. Como eu falei no Encontro da Conlutas, eu acho que é necessário que os grupos antiimperialistas se unifiquem e utilizem o apoio à Resistência iraquiana como uma plataforma para combater o imperialismo e o sistema econômico.