Em 2014 a UNESCO reconheceu a capoeira como patrimônio cultural imaterial da humanidade, consagrando-a como uma das manifestações populares mais expressivas da cultura brasileira. Atualmente ela é praticada em mais de 150 países, por milhões de pessoas, e é uma das grandes responsáveis pela difusão da língua portuguesa pelo mundo. Mas se hoje ela desfruta desse reconhecimento, isso tudo se deve a um homem: Manoel dos Reis Machado, mais conhecido nas voltas do mundo como Mestre Bimba. Visionário e grande reformador da cultura baiana, Bimba foi quem institucionalizou a capoeira, deu a ela um código moral, um método de ensino, resgatou seus fundamentos e, principalmente, transformou o que era um crime aos olhos da elite em patrimônio cultural. A capoeira que conhecemos hoje só é o que é e continua existindo graças a ele.

Mestre Bimba nasceu em 23 de novembro de 1899 em Salvador. Sua mãe havia apostado com a enfermeira que tratava-se de uma menina. Quando a enfermeira pegou o menino nos braços exclamou: “É um menino! Olha a bimba dele!“. Filho de negros em uma sociedade que havia acabado com a escravidão há pouco mais de dez anos apenas, Bimba era o caçula de 25 irmãos. Começou a trabalhar cedo. Foi garimpeiro, carpinteiro, almoxarife, condutor de charretes, trabalhou como estivador no cais da Bahia e como carvoeiro no bairro da Liberdade.

Da série “Capoeira”, do fotógrafo francês Pierre Verger, feita entre 1946-1948.

Vadios e capoeiras
Quando Bimba nasceu, a capoeira era praticada nos portos e mercados populares, onde a maioria dos trabalhadores eram negros e literalmente lutavam, se enfrentavam fisicamente, pelo emprego, pelo trabalho ou simplesmente pela atenção das mulheres. Capoeira não era apenas uma prática, era também um tipo social. O “capoeira” era um marginal que ameaça a ordem pública.

Junto com a proclamação da República em 1889, o novo código penal dedicava um capítulo inteiro aos “vadios e capoeiras”. O artigo 402 do código tratava como crime “fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem“. A pena ia até seis meses de prisão, podendo ser dobrada para os “cabeças” e até deportação para os estrangeiros (é possível ler o Código Penal de 1890 no Portal da Câmara). Criminalizada, a capoeira era “brincadeira de negro” e como tal deveria ser praticada escondida, nos fundos de quintal, do mesmo jeito que eram tratadas as rodas de samba e os terreiros de candomblé. Na prática, o que a República dizia para os negros era: “você agora é livre, mas é crime ser negro”.

Ô menino com quem tu aprendeu?
Foi com um africano chamado Bentinho que Bimba aprendeu a capoeira de angola, estilo que praticou durante 12 anos de sua vida. Mestre Bimba, contudo, achava que a prática passava por uma “folclorização”. Ou seja, estava perdendo suas raízes e seu caráter de luta. Outras práticas também passavam pelo mesmo processo e Bimba percebia isso. Seu pai, por exemplo, chegou a ser campeão de batuque, que na época era um esporte bem violento, mas que hoje, para nós, é apenas sinônimo de música improvisada.

Além disso, para Bimba, a vida da capoeira como crime estava indissociavelmente ligada à repressão policial da República. Se a escravidão havia acabado, porque negros, mesmo livres, ainda são obrigados a viverem assim?

Mestre Bimba decide então assumir para si duas coisas. A primeira delas foi tirar a capoeira da marginalidade. A segunda, foi resgatar suas raízes. Mas aqui não no sentido conservador, para preservar uma suposta pureza, mas no sentido dinâmico da cultura. Para impedir que as raízes da capoeira se perdessem era preciso modernizá-la. É então em 1932, no bairro do Engenho Velho de Brotas em Salvador, que Bimba decide abrir a primeira academia de capoeira. Como a prática só ia deixar de ser crime com o código penal de 1940, a academia recebeu o nome de Centro de Cultura Física Regional. Daí o nome que hoje damos a capoeira regional, herança direta de sua criminalização. Em 23 de junho de 1937, a academia recebeu o alvará da Secretaria de Educação, Saúde e Assistência Pública da Bahia e o fato é um marco na história da capoeira.

Mestre Bimba demonstrando seus golpes.

Reformador
Bimba promoveu uma mudança global na capoeira. Desde a musicalidade ao jogo propriamente dito. Seu estilo é mais cadenciado e ao mesmo tempo enérgico, resgatando o caráter de luta. Para o ensino, os golpes foram divididos em categorias como golpes básicos, traumatizantes e desequilibrantes. A formação musical passou a ter dois pandeiros e um berimbau apenas, para facilitar o ensino da música, que também foi dividida em chulas, quadras, ladainhas e corridos. Estipulou as graduações, o uniforme e as formaturas. Essas mudanças vieram de influências diversas desde a própria cultura negra, como era o caso do batuque, como de suas experiências profissionais como estivador ou como educador em quartéis. Bimba é o primeiro a estabelecer um método rigoroso de ensino para a capoeira e isso é um importante passo para tirá-la da marginalidade.

Mas mais do que isso, na esteira de sua reformulação da capoeira, Bimba resgata uma série de outras tradições negras. Em suas mãos essa práticas deixam a marginalidade e passam ao status de “apresentações culturais negras”, como é o caso do samba de roda, maculelê e as puxadas de rede. Bimba, diante de uma sociedade racista que criminalizava o negro, se impõe como educador e divulgador cultural.

Nota publicado no jornal A Tarde sobre a patrulha derrotada por Bimba. 1936.

A construção de um mito
Mestre Bimba era um homem audaz. Costumava dizer que estava “fazendo capoeira para o mundo“. E ele sabia que tudo isso, incluindo a superação da marginalidade, dependia da visibilidade dada à cultura negra. Por isso não perdia a oportunidade de criar um fato.

No Pelourinho, onde hoje está o Monumento da Cruz Caída, ficava o Parque Odeon. Lá praticantes de diferentes modalidades de luta de exibiam e faziam apostas. Em 1936 Mestre Bimba desafiou a todos os lutadores da Bahia a enfrentarem a sua “nova luta regional baiana”. O desafio foi publicado no jornal A Tarde. Mestre Bimba, um estivador negro com seu 1,90m de altura, saiu invicto do Parque Odeon. “Bimba é bamba”, dizia o jornal.

No mesmo ano, Bimba se deparou com uma patrulha policial com sete soldados agredindo pessoas na Ladeira da Vila América. Bimba não só derrotou a patrulha como recolheu as armas e as levou para a sede do jornal, onde deu entrevista denunciando o caso. “Não é fácil pegar um capoeirista… livrou-se da agressão com cabeçadas e rabos de arraia“, dizia a nota publicada no A Tarde.

A fama de Bimba corria a Bahia. Graças a isso os espaços vão se abrindo e Bimba passa a ensinar capoeira também para os filhos da elite nordestina que ia para Salvador estudar medicina e direito. Especialmente depois de conhecer Sisnando, que abriu as portas das repúblicas estudantis para Bimba. Sua fama era tanta que chegou a apresentar pessoalmente a capoeira para Getúlio Vargas em 1953. “A capoeira é o único esporte genuinamente brasileiro“, declarou Vargas.

Mestre Bimba e Getúlio Vargas.

Legado
O período de efervescência política da época também contribuiu muito com Mestre Bimba. Vale lembrar que na década de 1930 o movimento modernista já olha com outros olhos e buscava assimilar manifestações populares, especialmente da cultura negra. E na política vivíamos em um período de efervescência nacionalista na América Latina.

Mais do que apenas para a capoeira, Mestre Bimba foi um visionário e um grande reformador da cultura negra no Brasil. Mas Bimba foi também um homem sensível às mudanças de seu tempo, que soube muito bem perceber. Se por aqui passávamos a reconhecer a capoeira, o candomblé, o samba e formar as primeiras escolas e agremiações modernas, na América do Norte explodia o sucesso das big bands de jazz. Bimba fez parte de uma geração de negros que mudou a cultura negra nas Américas.

Aos 73 anos e contrariando a todos os seus discípulos e infeliz com falsas promessas do governo baiano e a falta de apoio à capoeira, mudou-se para Goiânia. Em 1974, após uma apresentação, faleceu por conta de um derrame. Em 1996, a Universidade Federal da Bahia deu a Bimba o título de doutor honoris causa.

Bimba foi um gigante, no corpo e na alma. Alto, forte e com uma destreza ímpar, ganhava mesmo era contagiando a todos com seu carisma. Ensinou de carroceiro a doutor, homem menino e mulher. Os mais pobres não podiam pagar? Treinavam mesmo assim. Bimba fez de cada academia de capoeira um pequeno quilombo, onde os negros podiam resistir à marginalidade, ao desemprego e deu a muitas crianças a escola que lhes faltava. Se hoje a capoeira não se perdeu nem continua a ser tratada como crime, devemos muito a Bimba. Ele, que tanto lutou para se impor como educador e sair da marginalidade, acabou morrendo longe de sua terra que tanto defendeu. Mas para nossa felicidade, não antes de espalhar essa cultura pelo mundo. Ele estava certo. Viva Mestre Bimba!