Ruy Braga é especialista em sociologia do Trabalho

Em entrevista ao Portal do PSTU, o professor da USP e sociólogo Ruy Braga fala sobre o Projeto das Terceirizações que poderá ser votado nesta terça-feira, 7 de abril, e significará um dos piores ataques à classe trabalhadora da história do país

Portal do PSTU: Qual o significado das MPs 664 e 665, que ataca direito como seguro desemprego, e qual a intenção do governo por detrás dela?
Ruy Braga: Importante destacar que o mercado de trabalho brasileiro nos últimos 12 anos tem se caracterizado pela elevação das taxas de rotatividade. Isto, obviamente, denota um aprofundamento da deterioração das condições de trabalho. Quando se tem taxas de rotatividade muito elevadas combinadas com baixas taxas de desemprego significa, em geral, que as empresas procuram alcançar ritmos mais intensos de produtividade por meio da intensificação dos ritmos e do consequente manejo degradante da força de trabalho.

As empresas contratam, intensificam o trabalho e, quando os trabalhadores deixam de dar os resultados esperados por conta da pressão pelos resultados, elas demitem. Isto é uma regra hoje no mercado de trabalho brasileiro principalmente no tocante às atividades de baixa qualificação e principalmente no setor de serviços, que sustenta as taxas mais elevadas de rotatividade. Como na legislação brasileira havia, pela regra antiga, uma proteção para o trabalhador que ficou mais de 6 meses empregado com carteira de trabalho assinada – o seguro-desemprego – a elevação da rotatividade naturalmente amplia a demanda pelo seguro.

Dentro do último ciclo econômico, o trabalhador tem ficado, em média, cerca de 14 meses empregado. Uma vez demitido, fica entre 2 a 3 meses vivendo do seguro desemprego e tentando recuperar a saúde pelo SUS até conseguir um novo trabalho. Isto pressiona a previdência social, por isto, o governo decidiu endurecer as regras de acesso ao seguro-desemprego, tornando o acesso cada dia mais restrito. Isto naturalmente terá um impacto sobre uma massa de trabalhadores subempregados que normalmente são semiqualificados ou não qualificados, de maneira geral, e trabalham sobretudo no setor de serviços. O governo, com estas medidas, busca fazer uma economia de gastos com direitos sociais às custas do aumento da exploração e da degradação do trabalho assalariado.

Qual o perfil dos mais afetados pela medida?
Nos últimos 12 anos, esboçou-se nitidamente um perfil de trabalhadores que ascendem ao mercado de trabalho e conquistam o emprego formal, formado por um crescente assalariado feminino. Cerca de 63% das carteiras de trabalho assinadas nos últimos anos foram assinadas para mulheres. Há também um número crescente de trabalhadores não brancos. A maior parte do emprego formal foi ocupado por estes grupos de trabalhadores.

Percebe-se também nitidamente no padrão de assalariamento um deslocamento daquela faixa entre 25 – 30 para uma fatia mais jovem, com crescente participação de jovens no trabalho entre 18 e 24 anos. Estas características apontam para um perfil: trabalhador no setor de serviços, mulher, não branco, mais jovem, e finalmente, um tipo de trabalho mais ‘escolarizado’. A ampliação do acesso – e não universalização, posto que isto nunca aconteceu – ao ensino médio implica que uma parcela cada vez maior de jovens termina o ensino médio, passando a ocupar estes postos de trabalho em condições cada vez mais precárias.

É importante destacar que o trabalho formal hoje paga muito mal. Apenas no ano passado, para citar dados do Caged, 97,5% dos postos com carteira assinada remuneravam até 1.5 salários mínimos, com um acentuado aumento da participação da faixa que paga meio salário mínimo, subcontradado e subremunerado. Ou seja, as condições vão se deteriorando, o número de terceirizados aumenta, assim como aumenta igualmente o número de acidentes de trabalho.

Como explicar a ampliação de jovens nas universidades com um mercado de trabalho cuja expansão/precarização não exigiu maior formação profissional?
Há uma tremenda contradição no atual modelo de desenvolvimento. Os motores da acumulação dos últimos 12 anos concentram-se em setores que não empregam trabalho especialmente qualificado, tais como o agronegócio, o setor de serviços, a indústria financeira, os call centers, isto é, o telemarketing, além da construção civil e pesada e do petróleo. Estes são geralmente setores que não exigem qualificação especial.

Os empregos melhor remunerados, por via de regra, concentram-se ao longo de cadeias produtivas mais longas. Isto significa que quanto maiores as cadeias, mais chance haverá de se incorporar o emprego qualificado. O que aconteceu no Brasil nos últimos 20 anos pelo menos, é que as cadeias intermediárias foram sendo destruídas levando-se em conta o processo de declínio na participação da indústria de transformação, em especial em metal-mecânica, no PIB. Este tipo de emprego migrou para locais como Europa, Estados Unidos, mesmo a China. Portanto esta nova inserção do Brasil na divisão internacional do trabalho privilegia setores primários exportadores, em particular a mineração, agroindústria, construção civil e pesada, não privilegiando o emprego qualificado.

Ao mesmo tempo ocorreu outra tendência. A sociedade evoluiu rumo ao aumento dos investimentos em educação que foram garantidos pela Constituição de 1988, ou seja,  vinculados ao orçamento público, assim como ao acesso mais amplo das famílias trabalhadoras e dos mais jovens à educação. Consequentemente, houve um aumento do tempo de permanência na escola. No final, há um conflito entre uma economia que se especializa em criar empregos que exigem pouca qualificação e, de outro, uma parcela crescente da população mais escolarizada que a geração anterior. Isto não significa mais qualificada para o trabalho por uma simples razão: a qualificação profissional tem características distintas da escolarização formal. Há uma carência notória de quadros técnicos intermediários em alguns setores e uma baixa oferta de trabalhadores em setores técnicos. O jovem que se forma em uma escola técnica, por exemplo, ganha cerca de 14% a mais que o jovem formado em uma escola colegial. Estas contradições continuam se acumulando tendo em vista a incapacidade da economia brasileira de criar empregos que exigem qualificação e salário melhor.

Como compreender a PEC das empregas domésticas, recém-regulada no Congresso, e que foi apresentada e apoiada pelo governo, com os atuais ataques contidos nas MPs 664 e 665?
São dois momentos diferentes de um governo que mudou acentuadamente e pra muito pior. Ou seja, há inflexões. A PEC, apesar de discutida agora pelo Senado, foi proposta no final do segundo ano do governo da Dilma. Aquele era um momento em que o governo ainda flertava com uma via de fortalecimento dos setores com carteira assinada. Havia uma resposta à pressão de suas bases sociais, principalmente setores do PT e da CUT, em suma. Agora estamos em outro momento totalmente diferente, isto é, entramos na era da austeridade. O ônus da crise está recaindo exclusivamente nas costas dos trabalhadores pela via do desemprego e do ataque aos direitos trabalhistas. E isso é simplesmente inadmissível. Precisamos lutar contra isso até nossas últimas forças.

Uma observação lateral, pois é importante destacar que a PEC das empregadas domésticas não cria nenhum direito novo, simplesmente equipara o maior grupo sócio-ocupacional da classe trabalhadora brasileira, com cerca de 7.2 milhões de pessoas, aos direitos já garantidos pela CLT. Não há propriamente a criação e direitos novos, mas a equiparação do que já existe. Por conta da jornada de trabalho e da formalização, seguridade social e aposentadoria é uma medida importante. Em São Paulo, no mercado mais desenvolvido do país, apenas 36% das trabalhadoras domesticas são formalizadas, o que é muito pouco. Se é assim em São Paulo, imagine no resto do país. Isto faz da PEC uma medida de fato excepcionalmente importante. Obviamente passou pela cabeça do governo um cálculo eleitoral, afinal são 7,2 milhões de pessoas. No entanto, agora, vivemos outro momento.

Passamos de um esboço imperfeito, cheio de contradições, de um neo-desenvolvimentismo, com alguma intervenção do Estado em certos setores chave, principalmente de energia, com preços regulamentados, e uma política industrial capenga, problemática, mas com um esboço de uma política industrial, para um rentismo, financismo, mercantilização do trabalho, ataques a direitos trabalhistas em nome do combate à inflação sob o argumento da retomada do crescimento econômico. Vale destacar que não acredito que será possível retomar o crescimento por meio destes instrumentos que fortalecem o rentismo e aprofundam o neoliberalismo no país.

Foi publicado na imprensa que o senador do PT do Rio Grande do Sul, Paim, reuniu-se com Lula e Dilma ameaçando romper com o PT caso as MPs 664 e 665 fosse ate o final. Há alguma possibilidade do governo recuar da medida por medo de perder ainda mais sua base e a crise no partido?
Não acredito. Acredito que o governo possa negociar. As medidas já estão implementadas, já estão valendo. Acredito que se o governo ceder, será muito pouco e apenas para acenar para suas bases sociais com alguma medida simpática. Mas acredito que não, que o governo deverá manter na essência estas medidas como elas estão agora.

Qual o peso das MPs com o atual desgaste da presidente Dilma?
Esta é uma pergunta difícil, mas entendo que não houve tempo suficiente para haver uma compreensão mais profunda entre os trabahadores a respeito do real significado destas medidas, principalmente as MPs 664 e 665. Mas, de fato, são projetos de lei que irão aprofundar ainda mais um descontentamento, já muito alto, que tem a ver com um cenário de contração econômica, um clima generalizado de pessimismo, medo entre trabalhadores a respeito do desemprego, alta da inflação, etc. Entendo que, no atual momento, pelo menos, isto seja mais importante que o impacto da MP 664 e 665. Agora, o impacto delas virá. Conforme as pessoas forem sendo demitidas, haverá uma inconformidade maior com a perda deste direito básico. No entanto, a impressão que tenho é que a massa da população acumula esta tensão com o governo há mais tempo.

Usei este argumento para explicar o fenômeno Marina Silva nas eleições passadas, e do próprio Aécio Neves, que na faixa entre 2 e 5 salários mínimos – em que se acumula praticamente metade do precariado brasileiro – este mal estar já era sensível. Nesta faixa salarial, Aécio cresceu e bateu Dilma no primeiro turno, perdendo no segundo. Desde aquele momento, percebia-se nitidamente que existe um descompasso entre as promessas do governo e de fato o que estava sendo entregue.

Por que Dilma ganhou o segundo turno nesta faixa? Para a massa desta população você teve uma campanha, e foi isto que Dilma fez para ser eleita, em que a presidente sistematicamente dizia que não aumentaria tarifas, que não haveria aumento de desemprego, e que as medidas de austeridade não seriam adotadas, eram coisa de Aécio, etc. Esta massa votou na Dilma seduzida por este fio de esperança na promessa da presidente. Imediatamente depois de ser eleita, Dlima mudou radicalmente de posição, adotando o programa do candidato derrotado. Isto é, a rigor, o que afastou totalmente o governo da massa trabalhadora com estas características que elenquei anteriormente.

Como a MP do seguro-desemprego se relaciona com os outros ataques a direitos dos trabalhadores que vem sendo articulados no Congresso, como a PL 43/30, do deputado Sandro Mabel, que elimina as barreiras da terceirização e que será votada dia 7?
Neste contexto de ataque do governo aos direitos sociais, existe a iminência de se aprovar a reforma trabalhista brasileira que FHC tentou aprovar nos anos 90. Ou seja, travestida de medida que busca modernizar ou regulamentar a terceirização, a rigor, o que se faz é eliminar qualquer tipo de entrave jurídico à terceirização. Pretende-se acabar com qualquer diferenciação entre atividades meio e atividades fim que os tribunais do trabalho seguiam como regra geral para julgamentos relacionados a este tema.

É real a possibilidade de em um congresso muito conservador, com um governo na defensiva e setores interessados em barrar a PL das terceirizações, como os ligados à CUT, muito fragilizados no parlamento, aprovar na prática o fim da CLT. Estamos na iminência de uma derrota histórica, a maior derrota da classe trabalhadora desde 1964.

A proposta cria a possibilidade de surgir o modelo da “flexibilidade total”, ou seja, você pode ter empresas que não tem propriamente empregados. Seria permitido criarem cooperativas ou empresas de sub-contratação, quarterirização, etc., afim de precarizar o trabalho ainda mais. Em quaisquer condições, em qualquer lugar do mundo, isto é devastador para os interesses dos trabalhadores. No Brasil, seria absolutamente desastroso por conta das condições do mercado de trabalho, da escassez de fiscalização. Isto tudo cria um modelo ainda mais degradante das relações de trabalho.

Temos que entender que a terceirização é sobretudo uma estratégia empresarial que avança prioritariamente sobre os direitos dos trabalhadores a fim de explorá-los ainda mais. O salário médio dos trabalhadores terceirizados é cerca de 36% menor, os acidentes de trabalho concentram-se no setor terceirizado, 64% dos acidentes de trabalho são em empresas ou atingem trabalhadores terceirizados. O baixo investimento em qualificação, tudo isto faz com que você tenha a terceirização como política empresarial prioritária. Então caso esta porta seja aberta, sem dúvida alguma que as empresas farão exatamente isto que desejam fazer, mas por barreiras legais não foram capazes de implementar, ou seja, implementar o modelo da terceirização e da flexibilidade total.

Hoje, debate-se muito na Europa os tais “mini-jobs”. O trabalhador fica em casa com o celular até receber um SMS dizendo para ele se apresentar em 1 ou 2 horas num McDonalds da vida para trabalhar por 4 horas e receber exclusivamente pelas 4 horas que trabalhou. Ou seja, sem nenhum tipo de direito. Este é o horizonte que temos pela frente. Segundo dados do Ministério Público do Trabalho, das 36 principais operações de libertação de trabalhadores em situação análoga à escravidão, 35, não menos que 35, foram em empresas terceirizadas.

A terceirização é a grande expressão da tragédia do trabalho no Brasil e estamos na iminência de vermos este modelo generalizar-se, aprofundando-se como nunca antes.

Pode estar se abrindo um processo de ataques muito mais graves do que foi a reforma da previdência do início do governo Lula?
Não tenho a menor dúvida a respeito disto. Ao contrário da reforma da previdência, que foi um ataque brutal, mas incidiu sobre o funcionalismo público, ou ao contrário de medidas relacionadas as privatizações dos anos 90, que incidiam sobre setores monopolistas, esta estratégia da terceirização inclui todos os setores da economia. Absolutamente todos os setores, públicos e privados, todos os setores da classe trabalhadora em todas as empresas. Não há empresas que não adotem estratégias de terceirização, são dados da CNI. 77% das empresas paulistas, no ano passado, utilizaram trabalhadores terceirizados.

Se esta mínima barreira que ainda existe contra a terceirização, se ela ruir, você vai decretar o fim da CLT. É, o pior, sem dúvida nenhuma, o pior ataque aos direitos da classe trabalhadora na história do Brasil.

E é de se imaginar que o governo vai se portar de qual forma?
O governo perdeu a mão no congresso. Ele não dirige mais o congresso. As bases sociais do governo serão contra, e o governo de alguma forma tentará responder a esta pressão. Eu ficaria, apesar de tudo, surpreso se o governo não tentasse bloquear a aprovação da 43-30, eu ficaria um pouco surpreso, por conta da composição das bases do governo.

No então, no atual quadro de austeridade, tudo está em aberto. Se isto fosse no primeiro governo Dilma, diria que o governo iria tentar bloquear. Mas na atual conjuntura não descarto nenhuma possibilidade.

Caso a PL 43-30 do famigerado deputado Sandro Mabel, empresário da indústria dos alimentos, seja aprovada, com ou sem apoio do governo, com ou sem resistência do governo, não tenho a menor dúvida em afirmar que foi o maior ataque à classe trabalhadora brasileira desde o golpe militar. Isto em um governo do PT, com o PT como principal partido brasileiro. Algo importante de entendermos, uma situação trágica.