Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Há quase 50 anos, em 10 de dezembro de 1955, a desafiadora coragem de uma costureira deu início ao movimento pelos direitos civis de negros e negras norte-americanos. A mulher se chamava Rosa Parks, tinha 42 anos na época e a acusação que gravou seu nome na história da luta contra o racismo, hoje, parece absurda: ela se recusou a ceder seu lugar num ônibus para um homem branco (como mandava a lei) na cidade de Montgomery, no sulista e extremamente racista estado norte-americano do Alabama.

Rosa, chamada por Martin Luther King como a “mãe da luta pelos direitos civis”, morreu no último dia 24 de outubro, aos 92 anos. Sua contribuição para a luta de negros e negras e de todos aqueles que lutam por justiça e liberdade é, literalmente, inestimável.

Cansada de humilhações

Muitas vezes Rosa Parks é mencionada como sendo uma mulher simples, elevada de forma um tanto involuntária à posição de líder negra, que fez o que fez sem muita consciência de seus atos, o que não corresponde à realidade. Rosa era militante da Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP, em inglês), uma das mais importantes e ativas organizações de negros e negras nos EUA.

Como ela própria costumava declarar, o fato de ter se recusado a ceder seu assento para um homem branco, não se deu simplesmente pelo cansaço físico, depois de uma longa jornada de trabalho: “Na verdade senti que tinha o direito de ser tratada como qualquer outro passageiro. Havíamos suportado aquele tipo de tratamento por muito tempo“.

A consciência de Rosa sobre seus atos fica evidente nas fotos da época, que estampam seu orgulho e indignação, diante da prisão. O que ela, contudo, não esperava era a reação desencadeada por sua prisão: durante os 381 dias seguintes, negros e negras protagonizaram um fortíssimo boicote ao sistema de ônibus.

A luta era liderada por um jovem pastor, de 26 anos, chamado Martin Luther King, que dispensa apresentações. Depois de quase levar as empresas de transporte à falência (já que cerca de dois terços dos lucros viam dos bolsos dos oprimidos e explorados negros), o boicote virou tema de uma resolução da Suprema Corte dos EUA, que, no dia 13 de novembro de 1956, determinou que a segregação era inconstitucional.

Impulsionados pela vitória em Montgomery, semanas depois, protestos varriam todos os estados do sul dos EUA, iniciando um processo que se estenderia, no mínimo, pelos dez anos seguintes.

Um luta marcada por importantes vitórias, como a aprovação das Declarações de Direitos Civis de 1964 e 1968, que proibiram (formalmente, ao menos) a discriminação no sistema eleitoral, nas escolas e demais locais públicos, mas que também fez várias vítimas, como o próprio Luther King, assassinado em 1968; Malcolm X, morto em 1965, e vários dirigentes e ativistas dos Panteras Negras.

Um passo importante de uma luta inconclusa

Homenagear Rosa é resgatar um importante capítulo de uma longa história de luta contra os absurdos do racismo mundo afora. Contudo, lembrar sua luta e daqueles que saíram em sua defesa deve significar, acima de tudo, lembrar que, apesar de coisas como ônibus formalmente separados não fazerem mais parte de nosso mundo (pelo menos legalmente), a segregação racial e o racismo são fatos cotidianos no capitalismo.

Por mais valorosa que tenha sido a luta de Rosa e dos ativistas em defesa dos direitos civis nos EUA, a maioria deles não enxergou que essa luta só poderia ser completamente vitoriosa se também se voltasse contra o sistema que patrocina e se beneficia da segregação: o próprio capitalismo.

Foi essa a principal lição que o dirigente trotskista norte-americano James Cannon tirou dos eventos e sintetizou em um panfleto intitulado “Libertação dos negros mediante a revolução socialista”, publicado em maio de 1959:

A política do gradualismo, de prometer liberdade ao negro dentro do marco do sistema social que o subordina e degrada, não está dando resultado. Não vai à raiz do problema. Grandes são as aspirações do povo negro e grandes também as energias e emoções em sua luta. Porém, as conquistas concretas de sua luta até agora são lastimosamente escassas. Tem avançado alguns milímetros, mas a meta da verdadeira igualdade se encontra a muitos, muitos quilômetros de distância.

O direito de ocupar um banco vazio em um ônibus; a integração de um punhado de meninos negros em algumas escolas públicas; algumas vagas abertas para indivíduos negros na administração pública em algumas profissões; direitos de empregos iguais no papel, mas não na prática; o direito à igualdade, formal e legalmente reconhecido mas negado na prática a cada momento: este é estado das coisas na atualidade.

(…) Os negros, mas que ninguém neste país, têm motivo – e direito – para ser revolucionários (…). As reformas e as concessões, muito mais importantes e significativas que as obtidas até agora, serão subprodutos desta aliança revolucionária (…) O movimento negro e o movimento operário combativo, unificados e coordenados por um partido revolucionário, resolverão a questão dos negros da única maneira em que pode ser revolvida: mediante uma revolução social“.

Segregação quase total

Quando se fala em racismo, o apartheid sul-africano geralmente é citado como o exemplo mais abominável de segregação. Apesar de ser impossível se falar em “pior” ou “melhor” racismo, o fato é que os EUA, particularmente o sul do país, produziram um sistema legal de separação de negros e brancos cuja violência era gigantesca.

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que, diferentemente da África do Sul, onde negros e negras são amplamente majoritários, nos EUA, a população afrodescendente sempre compôs uma expressiva minoria, não ultrapassando, até hoje, 13% da população.

Praticamente todos os aspectos da vida social eram “separados”. Escolas, ruas, banheiros, restaurantes, locais públicos ou do comércio cotidiano e todo o sistema de transporte exibiam placas onde se lia “Somente Brancos” ou “Somente Negros”. Negros e negras ainda eram proibidos de exercer várias profissões ou morar em determinadas áreas das cidades.

No Alabama, em 1955, as regras para os ônibus incluíam o seguinte: os 10 primeiros lugares eram exclusivos para brancos; mesmo se não houvesse brancos no ônibus, os negros tinham que se sentar no fundo do veículo; se não houve lugar no fundo (mesmo se a frente estivesse totalmente vazia), os negros deveriam ficar de pé e, se os lugares destinados aos brancos estivessem lotados, os negros deveriam ceder seu lugar para os passageiros brancos.

A humilhação nos ônibus era apenas um reflexo da terrível situação vivida pelos negros, que, em grande medida, persiste até hoje, em uma sociedade onde a população negra, apesar de suas muitas conquistas, é majoritariamente pobre, oprimida e explorada.