Na noite de quarta-feira, 6 de agosto, Ana Paula Padrão abriu o Jornal da Globo com vestido preto e cara de velório anunciando a morte do “jornalista” Roberto Marinho. Nos dias seguintes, o público foi exposto a um bombardeio de depoimentos que nos apresentavam o falecido como um apaixonado jornalista e “companheiro” de trabalho e, acima de tudo, um incansável batalhador pela revolução da comunicação e da cultura brasileiras (que, ainda, dedicava parte de seu precioso tempo para projetos sociais).

Pode-se dizer que a farsa encenada pela Globo e seus coadjuvantes — a imprensa em geral, o governo Lula e eminentes petistas à frente —, apesar de repugnante, fechou com chave-de-ouro a trajetória de Roberto Marinho. Afinal, se há algo que pode sintetizar a longa biografia desse homem é a manipulação da comunicação, a distorção da história, a convivência promíscua com o “poder” e o potencial em transformar qualquer fato em fonte de lucro.

À sombra do poder

Roberto Marinho acumulou uma fortuna pessoal de US$ 1,5 bilhão. As empresas do império (cerca de 100) fatura, a cada ano, cerca de US$ 6 bilhões. Sendo à Rede Globo de Televisão — a quinta maior do mundo —, a mais importante.
A base de tudo isso foi o jornal O Globo, fundado em 1925. De lá para cá, Marinho expandiu seus domínios com um invejável senso de oportunidade e uma série de falcatruas econômicas e políticas.

Em 1944, quando o rádio era o principal meio de comunicação, ele inaugurou a Rádio Globo; em 1957, ganhou a primeira concessão de TV, no Rio de Janeiro, que resultou na inauguração da Globo, em 1965 e, mais recentemente, nos anos 90, passou a investir nas chamadas novas mídias.

O elemento comum neste percurso, longe de ser o empenho do abnegado jornalista, foi sua defesa dos interesses burgueses e, conseqüentemente, uma longa ficha corrida de serviços prestados a todas as ditaduras.

Na década de 30, ao mesmo tempo em que fazia críticas ao Estado Novo de Getúlio Vargas, Marinho tinha assento permanente no Conselho do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), responsável pela censura dos jornais. Neste mesmo período, o empresário ganhou rios de dinheiro, monopolizando a edição de história em quadrinhos norte-americanas e na especulação imobiliária.

Também não foi por coincidência que a Globo nasceu um ano após do golpe militar. Como parte do financiamento norte-americano para o “combate ao comunismo”, Marinho recebeu US$ 4 bilhões da revista Time-Life, além de todo apoio logístico para a implementação da emissora.

A transação foi totalmente ilegal, já que a Constituição vetava a participação acionária de estrangeiros em empresas de comunicação e o congresso chegou a abrir uma CPI. Contudo, a Comissão concluiu que, de fato, a lei havia sido desrespeitada, mas que…a operação havia sido legal. Marinho, então, pagou a dívida com a revista e, na seqüência, recebeu outro empréstimo (de US$ 3,8 bilhões) do Citibank.
A “tríplice-aliança” que envolveu Marinho, os ditadores e o imperialismo foi descarada. Para se ter uma idéia, a área técnica da emissora ficou nas mãos de um general e a administração financeira tinha à frente um executivo da Time-Life.
Em retribuição, a Globo prestou valiosos serviços à Ditadura. Através de “programas-exaltação” como Amaral Neto, o repórter, ou manipulando o noticiário — com um criminoso silêncio sobre a tortura e a repressão. A tal ponto que um dos maiores facínoras da história brasileira, o ditador Emílio Médici, declarou, na década de 70: “Sinto-me feliz todas as noites quando assisto ao noticiário. Porque, no noticiário da TV Globo, o mundo está um caos, mas o Brasil está em paz”.
Mais recentemente, no segundo mandato de FHC a Globo recebeu um empréstimo de US$ 38 milhões da Caixa Econômica Federal, apesar da operação ter contrariado um parecer técnico da própria CEF.

Distorcendo a história

Há um pouco de tudo neste lamaçal. Quando as greves do ABC explodiram, no final dos anos 70, a emissora fez o possível e o impossível para omitir os fatos, gerando um descontentamento crescente entre os ativistas e resultando na criação de uma palavra-de-ordem que seria ouvida muitas vezes nos anos seguintes: “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo!”

Na Campanha pelas Diretas, enquanto centenas de milhares ganhavam as ruas do país, as telas da Globo sequer citavam os atos ou, pior, falseavam a história. Foi assim, por exemplo, que um ato com cerca de 300 mil pessoas, realizado em S. Paulo, no dia 25 de janeiro de 1985, foi transformado pelo Jornal Nacional em uma homenagem ao aniversário da cidade.

Quatro anos depois, na campanha eleitoral que levou Lula e Fernando Collor para o segundo turno, Marinho interveio na edição de um debate entre os dois candidatos e reproduzido no Jornal Nacional. O empresário beneficiou Collor — amigo pessoal e filho de um sócio da Globo — não só dando-lhe mais tempo na edição, como também manipulando as imagens e o som para prejudicar Lula.

Em suma, o fato é que a ingerência da família Marinho no poder foi ilimitada: tentaram fraudar eleições (como a de Brizola, para o governo do Rio de Janeiro, em 1982); indicaram diretamente ministros — como ACM (Comunicações) e Maílson da Nóbrega (Finanças), no governo Sarney e transformaram seus principais produtos — incluso as telenovelas — em canais de propaganda contra os movimentos sociais.

A serviço de quem?

Além de decretar três dias de luto oficial, Lula foi ao velório de Roberto Marinho acompanhado de sete ministros e uma infinidade de aliados. Para surpresa de muitos, até mesmo Brizola, velho “inimigo” do empresário, também esteve lá para lembrar da “admiração” que todos os brasileiros deveriam dedicar a Marinho.

Na fala de todos eles, ouviu-se muito sobre o importante papel que Marinho desempenhou no desenvolvimento das comunicações e na divulgação da cultura. Uma opinião que, com certeza, muitos brasileiros compartilham, já que têm na TV seu único meio de diversão e lazer.

Contudo, o que Lula e seus aliados esquecem são os objetivos e os meios que Marinho tinha por trás de seu império. Em primeiro lugar, é falso dizer que a Globo cumpre um papel progressista na cultura nacional. Por mais que as pessoas apreciem seus produtos — e mesmo considerando-se que existem artistas e profissionais de alto gabarito entre seus funcionários —, o fato é que o Império Marinho é um dos principais instrumentos de padronização e dominação ideológicas do país.

Algo que, por exemplo, fica evidente na tentativa de homogeinização cultural através de padrões do sul do país, como também através de seu mal disfarçado racismo, que, durante décadas afastou negros e negras de seus principais programas. Machismo e homofobia mereceriam “capítulos à parte”.

E mais: as Organizações Globo não só cresceram à sombra da ditadura e dos governos patronais, como também tem cumprido um papel de destaque na defesa dos interesses do capital e do imperialismo.

E, para tal, não se acanhou em ser cúmplice da perseguição, tortura e até mesmo assassinato de dezenas de verdadeiros jornalistas e artistas que, no decorrer de décadas, realmente lutaram para revolucionar o país, sua cultura e sua comunicação. Gente como Vladimir Herzog e Patrícia Galvão, só para citar dois exemplos de lutadores que sofreram nas mãos dos governos acobertados por Marinho.
Desvincular Roberto Marinho disto significa manipular e distorcer a história. Algo que, por mais que seus novos amigos tenham se esforçado, Marinho certamente sabia fazer com mais capacidade e “profissionalismo”.

Post author Wilson H. Silva,
da redação
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