Jornalista britânico, um dos poucos que ainda circulam livremente pelas ruas iraquianas, relata Bagdá, um dia após as eleiçõesO voto dos iraquianos foi para libertar-se da ocupação dos EUA

Robert Fisk,
publicado em www.lajornada.com.mx

O vento açoitou Bagdá nesta segunda-feira, arrancando os cartazes eleitorais dos muros, enviando pequenos redemoinhos entre as cortinas das lojas da rua Rashid e dando uma nova utilidade aos capuzes e casacos dos policiais na praça Tahrir.

Tahrir – independência – é uma palavra pela qual muitos votaram no domingo. Não pela “democracia“, como querem os meios ocidentais, mas sim pela liberdade: para ser livre para falar, votar; para livrarse dos norte-americanos, que também estavam aqui nesta segunda-feira, conduzindo seus Humvees pelo distrito de Karada, voando em círculos sobre a cidade em seus apaches e seus pequenos helicópteros rastreadores Sioux, semelhantes à abelhas.

Teremos de esperar vários dias pelos resultados da eleição. Um representante da Aliança Nacional Iraquiana (ANI), partido muçulmano xiita, declarou ao New York Times que os norte-americanos e britânicos dizem que seu partido obteve provavelmente 50% dos votos – a república xiita alcançou a maioridade – , e não se fala de outra coisa em Bagdá quando as pessoas escutam a notícia em árabe ou em suas próprias estações do Golfo.

Mas, como poderiam os norte-americanos saber que a ANI teria recebido mais da metade dos votos? No fim da Rua Jumhuriya, policiais à paisana, em pé na caçamba de uma caminhonete picape, alguns com o rosto escondido, apontam seus rifles para nós.

É meio-dia. No entanto, é possível supor que estamos sob toque de recolher. As casas e lojas estão fechadas. É como se, depois de votar, os xiitas esperassem o equivalente político de um tsunami como castigo, mas os sunitas simplemente não fazem nada.

O shish kebab iraquiano, no restaurante de Bagdá que menos me agrada, parece papelão. Não me estranha que meu amigo Haidar diga que a única ocasião na qual se come algo decente nestes dias é em um funeral: a carne é mais delicadamente preparada, os vegetais mais frescos, os pasteis mais bonitos, todos servidos para honrar o mais novo mártir.

Na Rua Nidhal, um ônibus da Haj (viagem a Meca) vem logo atrás de nosso carro: é um grande caminhão negro com uma bandeira iraquiana na frente e seu destino, a Meca, escrito com uma grossa tinta negra em um cobertor. Atrasados pelo toque de recolher eleitoral, os peregrinos partiam em sua longa viagem pelo Sul, através de Najaf e Kerbala, Basora e Kuwait e Arábia Saudita, para caminhar em torno à Kaaba e apedrejar os pilares que, na imaginação popular, representam o diabo. Ignorando a insurgência, a eleição e o eterno e irremediável otimismo de Bush e Blair, este muito mais eterno ritual de fé muçulmana e oração segue adiante.

Meu guia libânes estava na Haj e telefonei para ele de Bagdá para certificar-me de que havia chegado a salvo em casa – os peregrinos têm o inquietante hábito de morrer esmagados nas proximidades do “diablo“ -; logo me dei conta do que deve ser para os iraquianos, prisioneiros em sua pátria, fazer uma ligação para o estrangeiro. Apenas uns dias na claustrofobia de Bagdá e uma chamada internacional é um sopro de oxigênio. Sim, disse-me Ahmed, faz frio em Beirute, há neve nas montanhas, a senhora da limpeza fechou as janelas e ele voltou sem novidades de la Haj. “Lembrei de você quando apedrejei o diabo“, conta com alegria. E ali, sentado con meu almoço de papelão, me pergunto no que quis dizer.

A imagem salta da televisão de meu quarto. O ex-agente da CIA e primeiro-ministro “interino“, Iyad Allawi – quem sabe também próximo primeiro-ministro “interino“ -, disse aos iraquianos que seu voto de domingo significa que “os terroristas estão sendo derrotados“. Isso colocando os coletes à prova de balas, digo para mim mesmo.

Por quê estas pessoas – os britânicos faziam o mesmo na Irlanda do Norte – convida novos ataques? Este é o mesmo Allawi que, na segurança de seu bunker na Zona Verde, chamou seu vulnerável povo a votar há dois dias.

Escondem o tamanho da tragédia

Cada vez mais sentimos esta distância cósmica entre o verdadeiro Iraque e o de mentira, de Washington e Londres. Observo Blair falar com nervosismo, contando do estupendo êxito das eleições. Mas, quando calculo o momento em que a mensagem foi filmada, concluo que a essa hora Blair já devia saber que o Hércules da Força Aérea de seu país se espatifou, que 15 britânicos morreram, e contudo escolheu ocultar de seu povo o tamanho da tragédia ao dar sua mensagem na noite de domingo. Então, por que nos surprendemos de que norte-americanos e britânicos mantenham em segredo a quantidade de iraquianos que morrem a cada dia?

Duas vezes nesta manhã houveram tremendas explosões em Bagdá. Escutei um tiroteio próximo de Cidade Sadr. Mas a rádio iraquiana não dá nenhuma explicação. No meio da manhã, dois carros da polícia me ultrapassam, com as sirenes ligadas e rifles Kalashnikov apontados das janelas aos motoristas; os policiais lançam xingamentos para qualquer pessoa que atravesse seu caminho. Mais uma vez, ninguém sabe o motivo. Eles são o mundo real, encapuzado e impossível de identificar.
Poeira que se agita com rapidez.
Como o vento.